Violência de gênero no ambiente de trabalho: aspectos penais
Ordenamento jurídico penal institui medidas voltadas à proteção das mulheres e prevê nova qualificadora em relação ao crime de lesão corporal
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Convenção de Belém do Pará, define violência contra a mulher como “ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado” e recorda que essa violência “permeia todos os setores da sociedade, independentemente de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, nível educacional, idade ou religião”, sendo a sua erradicação “condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social e sua plena e igualitária participação em todas as esferas de vida”, em respeito aos direitos humanos consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Diversas, portanto, são as formas de violência contra a mulher – destacam-se aqui os índices alarmantes de violência doméstica sofrida por mulheres no Brasil em 2022 mas, para fins desse esboço, será traçado um recorte de condutas recentemente instituídas que também afetam mulheres no ambiente de trabalho e seus respectivos aspectos penais.
Características penais da violência em ambiente profissional
É verdade que, para fins penais, a única conduta atrelada a uma relação de trabalho preexistente, ainda que não exclusivamente a ela vinculada – como o ato praticado por professor em relação a uma aluna, é a do crime de assédio sexual.
Para o legislador penal, a conduta de assédio sexual é caracterizada pelo ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. É sabido, porém, que inúmeras outras situações de violência e desrespeito sofridas por mulheres ao longo de suas vidas, em diversos ambientes, que não exclusivamente de trabalho são denominadas popularmente como “assédio sexual”.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha publicados esse ano, 46,7% das mulheres brasileiras acima dos 16 anos sofreram, apenas em 2022, alguma forma de assédio sexual, como uma cantada desrespeitosa, comentários constrangedores, atos obscenos, toques inadequados, humilhações, agressões verbais e físicas.
Desse universo de mulheres brasileiras, 18,6% (quase 12 milhões) dizem ter sofrido cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho em 2022, situações que podem configurar, além do mencionado crime de assédio sexual, outros crimes para os quais o legislador não exige a condição especial de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função do agente mas que, também, podem ser praticados no ambiente de trabalho, tais como condutas contra a liberdade sexual, integridade corporal ou à saúde, a liberdade pessoal, a honra, dentre outras previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
Nos últimos tempos, e não sem grande esforço por parte de advogadas criminalistas mulheres e, felizmente, de homens comprometidos e importantes aliados, os tribunais brasileiros começaram a reconhecer a ocorrência do crime de “lesão corporal” de natureza grave, mesmo nas situações em que o abuso contra a mulher é capaz de gerar “dano psíquico” como, por exemplo, um quadro de depressão, apto a tornar a vítima incapaz de exercer suas atividades, ainda que temporariamente.
O entendimento é correto, pois o crime de lesão corporal ocorre quando há ofensa não só à “integridade corporal” mas, também, à “saúde” de alguém. Por óbvio, o conceito de “saúde” engloba não apenas a saúde física, mas a saúde mental de quem quer que seja.
Proteção legal às mulheres
Recentemente, e reconhecendo como insuficiente a resposta penal aos abusos sofridos pelas mulheres em suas mais variadas formas, o legislador brasileiro preocupou-se em ir além e, assim, introduziu no ordenamento jurídico penal nacional previsões exclusivamente voltadas à proteção das mulheres, enquanto vítimas corriqueiras das mais diversas formas de violência e nos mais diversos ambientes. Como exemplo, instituiu nova qualificadora em relação ao crime de lesão corporal leve quando esta “for praticada contra mulher, por razões do sexo feminino” (art 129, 13º, CP).
Além disso, condutas abusivas praticadas rotineiramente contra mulheres e que, de certa forma, não se enquadravam perfeitamente a tipos penais já existentes no nosso ordenamento jurídico, também passaram a ser consideradas – não sem críticas à técnica legislativa e à descrição típica dessas condutas, como criminosas a partir de 2021. É o caso dos crimes de “perseguição” (art 147-A), conduta conhecida mundialmente como “stalking”, e de “violência psicológica contra a mulher” (art 147-B).
Para o crime de perseguição, sendo a vítima mulher e o ato de perseguir “reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”, for cometido por razões da condição de sexo feminino, a pena de meses a dois anos, prevista para a conduta comum, será aumentada de metade (inc II, art 147-A, CP).
Sobre a violência psicológica contra a mulher, é importante lembrar que, desde 2006, a Lei Maria da Penha reconhecia essa conduta como forma de violência doméstica a autorizar a adoção de medidas protetivas de natureza civil a favor de mulheres em situação de abuso psicológico –inexistia, porém, conduta exatamente correspondente em âmbito penal, a não ser os casos já mencionados de lesão corporal grave, por comprovado dano psicológico, reconhecidos por alguns tribunais.
Apesar de ter seu conceito eminentemente extraído da lei que trata de violência doméstica, o crime de violência psicológica contra a mulher pode ser praticado fora do ambiente familiar, em diversos contextos, incluindo-se o ambiente de trabalho.
Contra àquele que “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”, é prevista pena de seis meses a dois anos, desde que a sua conduta não constitua crime mais grave, como no caso de lesão corporal grave com comprovação de dano psíquico à vítima, já mencionada anteriormente.
Apesar das críticas pertinentes sobre o uso desmedido do Direito penal e dos problemas técnicos na redação dos mencionados novos crimes, reconhece-se uma vontade de se equalizar as assimetrias relacionais entre homens e mulheres ainda que, infelizmente, por meio da criminalização de condutas.
Hoje, 20 anos após a criminalização do assédio sexual, podemos reconhecer que o Direito penal brasileiro está, ao menos, mais atento à violência de gênero, passível de ser praticada em diversos ambientes. O ambiente de trabalho não blinda potenciais agressores e não apenas suas condutas abusivas, praticadas em evidente posição hierárquica superior, estão criminalizadas mas, também, toda a gama de abusos mencionados.
O Direito penal sempre foi, e continuará sendo, insuficiente a coibir ou evitar a prática de crimes. O que se espera é que a informação e a evolução da sociedade, por meio da igualdade e do respeito, tornem cada vez mais evidente a intolerância à violência de gênero em qualquer ambiente. Quem sabe, um dia, consigamos celebrar o desuso desses tipos penais por ausência de qualquer ocorrência de violência contra a mulher.
Esse conteúdo integra a série Mulheres e Negócios, de autoria do grupo de afinidade 4Women, que faz parte do programa de Diversidade, Equidade e Inclusão do Mattos Filho.
Confira outros artigos da série Mulheres e Negócios:
- A diversidade como valor corporativo
- A voz feminina na era digital
- O impacto da maternidade na inserção plena das mulheres no mercado de trabalho
- Liderança feminina nos temas climáticos
- O próximo passo no combate aos vieses inconscientes de gênero no ambiente trabalho
- O valor de lideranças femininas no âmbito jurídico para a promoção da igualdade de gênero
- A chegada e o “abandono”: desafios das mulheres que alcançam posições de liderança
- Liderança feminina e reputação: uma via de mão dupla
- Não existe plano B
- A superação da rivalidade feminina para impulsionar a diversidade no ambiente de trabalho
- Mulheres na tecnologia: como palavras contribuem para sub-representação feminina no setor