Mulheres na tecnologia: como palavras contribuem para sub-representação feminina no setor
Incentivar posturas ativamente inclusivas é importante ferramenta para diminuir a desigualdade em áreas ocupadas predominantemente por homens
No livro “Mulheres invisíveis: O viés dos dados em um mundo projetado para homens”, Caroline Criado Perez examina, por meio de números e estatísticas, como a coleta e o uso dos dados contribuem para o enorme desequilíbrio entre as experiências de homens e mulheres na sociedade. Na sua introdução, a autora destaca um estudo, de 2015, em que cinco palavras usadas para identificar pessoas em artigos sobre interação humano-computador, que são, em inglês, aparentemente neutras da perspectiva de gênero (“user”, “participant”, “person”, “designer” e “researcher”), foram sugeridas a um grupo de indivíduos.
Cada pessoa do grupo deveria pensar nessas palavras por alguns segundos e, na sequência, fazer um desenho representando-as. Os desenhos feitos por homens resultaram em mais de 70% de representações de figuras masculinas. Embora as mulheres tenham feito desenhos um pouco mais diversos, apenas duas palavras foram representadas em uma proporção de gênero 50/50 (“person” e “participant”). As demais palavras foram representadas também, em sua maioria, como figuras masculinas. Exemplos que transmitem a mesma mensagem se repetem ao longo de todo o livro.
O resultado desse estudo provoca uma reflexão necessária: por que os homens são frequentemente mais associados ao setor tecnológico? A resposta é multifatorial. Neste artigo, destacamos um desses motivos, o qual não costuma figurar entre aqueles mais discutidos, mas que contribui igualmente para essa realidade: as escolhas no uso das palavras e, quando aplicável, nas flexões de gênero.
Sob a ótica dos idiomas, Caroline Criado Perez destaca uma análise do Fórum Econômico Mundial, de 2012, na qual concluiu que países que possuem como idioma oficial aqueles flexionados por gênero, tais como o português, que possui diferenças marcadas entre o masculino e o feminino, são os mais desiguais do ponto de vista de equidade de gênero. Por exemplo, quando uma empresa procura um programador ou uma programadora de software, é comum que o anúncio da vaga mencione “procura-se programador”.
A opção pelo uso do gênero masculino nesses casos explica-se, também, pelo fato de a história – especialmente a história da ciência, que se relaciona com a tecnologia – ter sido contada sob a perspectiva de homens e para homens por muito tempo. Assim, por uma herança cultural, a sociedade repete o padrão e adota, como regra e sem muita reflexão, o gênero masculino para fazer referências genéricas. Esse padrão reflete-se em todos os âmbitos da sociedade, o que inclui o setor público, o mundo corporativo e a vida privada.
Por décadas, os efeitos nocivos dessas escolhas sequer estiveram em pauta, mas eles são reais e contribuem para a manutenção da ausência de diversidade. Embora sejam ligeiramente mais impactantes nos países que possuem idiomas flexionados por gênero, eles também influenciam aqueles países que possuem idiomas sem gênero (por exemplo, a Finlândia) ou que possuem “idiomas com gênero natural” (como é o caso dos Estados Unidos).
A presença feminina no setor tecnológico
No evento “Por um Planeta 50-50 em 2030: Mulheres e Meninas na Ciência & Tecnologia”, ocorrido em 2018, a ONU Mulheres indicou que 74% das mulheres tinham interesse em “STEM” (acrônimo para “ciência, tecnologia, engenharia e matemática”, em inglês), mas, apesar disso, apenas 30% das pesquisadoras do mundo eram mulheres. Importante frisar que a questão original não é de desinteresse feminino no assunto, mas de ausência de um ambiente inclusivo que retenha esses talentos. Na mesma linha, o Relatório de Ciências da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, de 2021, indicou que as mulheres representam apenas 35% dos estudantes matriculados em faculdades de STEM. O percentual é ainda menor nas engenharias de produção, civil e industrial, e em tecnologia, não chegando a 28% do total.
Grandes eventos de tecnologia – a exemplo do Web Summit, que tradicionalmente ocorre em Lisboa (Portugal) e, em 2023, teve sua primeira edição no Rio de Janeiro (Brasil) – também evidenciam a falta de diversidade no setor. Com efeito, um estudo do Boston Consulting Group indicou que menos de 15% das startups no mundo foram fundadas por mulheres e que essas startups recebem quatro vezes menos investimentos do que aquelas fundadas por homens.
Vieses de gênero
As mulheres crescem e iniciam suas jornadas acadêmicas e profissionais no mundo tecnológico sendo bombardeadas por conteúdo com referências masculinas. A lei estudada na universidade ensina que uma invenção é reconhecida a partir da opinião de um “técnico no assunto”, como ocorre na Lei de Propriedade Industrial, datada de 1996, que faz referências no gênero masculino, assim como a vaga de emprego é sempre para “[o] programador”. Esse tipo de abordagem contribui para que as mulheres, ainda que inconscientemente, não se sintam contempladas e, por consequência, se excluam ou sejam excluídas do setor.
E essa dinâmica se torna um círculo vicioso. Primeiro, as mulheres não são contempladas e não são incluídas no setor tecnológico. Assim, os homens continuam sendo maioria e permanecem como “porta-vozes” e criadores da tecnologia tal qual conhecemos. Como consequência, os termos empregados continuam acompanhando o gênero masculino. Os vieses de gênero na linguagem são reproduzidos novamente e as mulheres permanecem não se reconhecendo nesse contexto.
Identificando os vieses na prática
Enquanto escrevíamos o presente artigo, testamos essa teoria. Pedimos ao ChatGPT que gerasse um anúncio “para uma vaga para a profissão de quem programa software”. E o resultado se iniciou com “Oportunidade de Carreira: Programador de Software” e continuou “Você é UM mestre em codificação, apaixonadO por resolver problemas (…)?”. Vejam que as instruções dadas por nós não contiveram um viés que pudesse explicar o uso do gênero masculino no retorno. Solicitamos, de forma neutra, um anúncio para uma vaga para a profissão, sem identificar o gênero. Após o resultado, provocamos com o comentário “bias de gênero” e a resposta da IA foi “peço desculpas se o anúncio anterior apresentou algum viés de gênero. Como modelo de linguagem, faço o possível para evitar qualquer forma de discriminação”.
Justamente por ser um modelo de linguagem, o ChatGPT é treinado a partir de dados e reproduz aqueles que representam padrões. Ou seja, a partir desses dados (que muito possivelmente foram gerados, em maioria, por homens), o sistema de Inteligência Artificial (IA) concluiu que quem exerce a profissão de programar software é um programador e não uma programadora. Após nossa provocação, testamos mais uma vez o comando e, dessa vez, pedimos “gere um anúncio para uma vaga para a profissão de quem faz pesquisas”. E dessa vez a ferramenta nos retornou com “Oportunidade de Carreira: Pesquisador(a).” e continuou “Você é curioso(a), apaixonado(a) por conhecimento e tem habilidades (…)”. Não temos dúvidas de que uma pesquisadora que se deparasse com esse anúncio se sentiria, mesmo que inconscientemente, mais contemplada pela oportunidade, do que em relação a uma programadora que detectasse a primeira vaga para “programador”. Nossa simples ação de repreender um padrão da tecnologia baseado em dados comumente associados ao gênero masculino rendeu frutos imediatos, gerando um texto mais inclusivo.
O objetivo deste texto não é criticar a língua portuguesa ou a adoção de linguagem neutra, mas, sim, incentivar posturas ativamente inclusivas para que possamos gerar efeitos positivos e garantir um futuro no qual “programadoras” tenham o mesmo espaço na tecnologia que “programadores”.
Esse conteúdo integra a série Mulheres e Negócios, de autoria do grupo de afinidade 4Women, que faz parte do programa de Diversidade, Equidade e Inclusão do Mattos Filho.
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