STF inicia julgamento sobre constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet
No dia 27 de novembro, o STF julgará os temas 533 e 987 e decidirá se os provedores de aplicação têm a obrigação de remover conteúdo ilícito publicado por seus usuários sem ordem judicial
Assuntos
O Marco Civil da Internet entrou em vigor há pouco mais de dez anos e representou um avanço importante para a regulação da internet no Brasil. A partir de uma legislação moderna e amplamente discutida com diversos setores da sociedade, o legislador buscou garantir, dentre outros direitos, a liberdade empresarial, a privacidade e a inviolabilidade das comunicações dos usuários da internet, a neutralidade da rede e a liberdade de expressão.
Para o regime de responsabilidade dos provedores de aplicação pelo conteúdo de usuário, desenhou-se um mecanismo que aspirava a um equilíbrio da tutela da liberdade de expressão (fundamento e princípio da disciplina do uso da internet no Brasil) e de outros direitos em jogo na internet. De acordo com a regra do artigo 19 do Marco Civil da Internet, os provedores de aplicação apenas poderiam ser responsabilizados pelo conteúdo publicado por seus usuários se deixassem de removê-lo após ordem judicial. Optou-se por uma prevalência, em abstrato, da liberdade de expressão, podendo ceder no caso concreto, após análise do Judiciário, sem prejuízo da aplicação das regras de uso de cada provedor de aplicação.
Nos últimos anos, esse regime tem sido objeto de intenso debate pela mídia, pela sociedade civil e pelos três poderes, que ponderam se ele ainda é suficiente para enfrentar os desafios da internet. Essas discussões, indissociáveis da expansão da internet, da popularização das redes sociais e do contexto social e político do país, revolvem o debate sobre a liberdade de expressão e perpassam outros temas como desinformação médica e eleitoral, discurso de ódio, conteúdo antidemocrático e a proteção de crianças e adolescentes na internet.
No Executivo e no Legislativo, destacam-se iniciativas como a Portaria do Ministério da Justiça 351/2023, que adotava como premissa a possibilidade de responsabilização de plataformas digitais pelo “eventual descumprimento do dever geral de segurança e de cuidado em relação à propagação de conteúdos ilícitos” (art. 2º), e o descontinuado Projeto de Lei 2.630/2020, que recebeu a alcunha de “PL das Fake News” e que previa a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet e a criação de novos standards de responsabilidade das plataformas pelo conteúdo de usuário, por meio de obrigações relativas ao chamado “dever de cuidado”, por exemplo. O tema também segue em debate no Anteprojeto de alteração do Código Civil.
Agora, no Judiciário, o STF se debruçará sobre esse assunto à luz da Constituição Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 1057258 e 1037396 (Temas 533 e 987 de repercussão geral), pautados para a próxima quarta-feira, dia 27 de novembro.
Histórico dos Temas 533 e 987
O Tema 533, cuja repercussão geral foi reconhecida em junho de 2017, teve origem em ação de obrigação de fazer cumulada com pedido indenizatório ajuizada por uma professora contra o Google, para que fosse removida comunidade da antiga rede social “Orkut” criada por alunos para publicar conteúdo ofensivo, com condenação do Google ao pagamento de indenização por danos morais. Foi proferida sentença de procedência que determinou a remoção da comunidade e a condenação do Google ao pagamento de indenização por danos morais. A sentença foi mantida pela Turma Recursal de Belo Horizonte (MG).
O Google interpôs recurso extraordinário em que alegou que não poderia ser responsabilizado por não fiscalizar o conteúdo postado por seus usuários, pois isso implicaria censura prévia, em afronta aos artigos 5º, IV, IX, XIV, XXXIII e 220, §§ 1º, 2º e 6º da Constituição Federal, e violação à reserva de jurisdição (art. 5º, II e XXXV da Constituição Federal). Embora a ação originária e seus fundamentos sejam anteriores ao Marco Civil da Internet, a apreciação do Tema 533 pelo STF obrigatoriamente impactará a interpretação da regra prevista pela lei. O Relator do recurso extraordinário é o Ministro Luiz Fux.
Já o Tema 987, cuja repercussão geral foi reconhecida em março de 2018, teve origem em ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de indenização por danos morais ajuizada contra o Facebook em razão de perfil falso que utilizava o nome e imagem da autora. Além da exclusão do perfil e do fornecimento de dados para identificação do usuário, a autora também pretendia a condenação do Facebook ao pagamento de indenização por danos morais pelos danos à sua honra e imagem. A sentença determinou a exclusão do perfil e o fornecimento dos dados de usuário. No entanto, afastou o pedido de indenização por danos morais, por entender que não houve ato ilícito praticado pelo Facebook nos termos do artigo 19 do Marco Civil da Internet, já que não houve descumprimento de ordem judicial de remoção do conteúdo.
A Turma Recursal de Piracicaba (SP) reformou a sentença e condenou o Facebook ao pagamento de indenização por danos morais, sob o fundamento de que a inércia para a retirada da página, após a empresa ter sido notificada extrajudicialmente, configuraria falha na prestação de serviço, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor. Com isso, o acórdão declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
O Facebook interpôs recurso extraordinário sob a alegação de que o acórdão violou os princípios da legalidade e da reserva de jurisdição (art. 5º, II e XXXV da Constituição Federal) ao deixar de aplicar o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Ainda, argumentou que impor aos provedores de aplicação a obrigação de fiscalizar e excluir conteúdo publicado por terceiros configura risco de censura (art. 220, caput, §§ 1º e 2º e art. 5º, IX e XIV da Constituição Federal) e restrição à liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX da Constituição Federal). O Relator do recurso extraordinário é o Ministro Dias Toffoli.
Ao longo dos anos de tramitação dos recursos extraordinários, o STF protagonizou diversos debates laterais, mas a eles relacionados, envolvendo a compatibilidade entre a liberdade de expressão e outros direitos constitucionalmente previstos, como o direito à proteção do consumidor, à imagem, honra e dignidade da pessoa humana. Além disso, houve discussões sobre a conveniência do regime de responsabilização de provedores de aplicação previsto no Marco Civil da Internet e sua suficiência diante da nova realidade da internet.
Diversas organizações, empresas e institutos foram admitidos como amicus curiae nos dois casos. O STF realizou audiência pública nos dias 28 e 29 de março de 2023 com ampla participação de representantes de diversos setores da sociedade, incluindo acadêmicos, representantes da sociedade civil e provedores de aplicação de internet. O julgamento dos Recursos Extraordinários 1037396 e 1057258 estava marcado para o dia 17 de maio de 2023, mas foi adiado a pedido dos Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.
O Mattos Filho acompanhará o julgamento no dia 27 de novembro de 2024 e compartilhará com seus clientes e parceiros os principais destaques.
Para mais informações e atualizações sobre o tema, acompanhe as práticas de Contencioso e Arbitragem e Tecnologia do Mattos Filho.