

Litigância climática: julgamentos de Supremas Cortes e avanços na pauta
Novo relatório é destaque por atualizar os dados e apontar tendências sobre o tema
O Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment publicou, no final de junho de 2022, o relatório Global trends in climate change litigation: 2022 snapshot, que trata dos principais destaques de litigância climática em âmbito global entre maio de 2021 e maio de 2022. Como base, foi utilizada a plataforma de dados mantida por referido instituto, que inclui litígios climáticos perante cortes em 43 países e 15 cortes ou tribunais internacionais e regionais.
Em especial, o relatório indica que, apesar de a maioria dos casos ainda serem em face de governos, continuam a crescer as ações em face dos chamados Carbon Majors – atores privados tidos como responsáveis por aproximadamente dois terços das emissões de gases de efeito estufa (GEE) – e de outras empresas de combustíveis fósseis ou de energia. No ano de 2021, também foi observada uma série de novas ações envolvendo outros setores, tais como alimentação e agricultura, transporte, plástico e setor financeiro.
Como tendência futura, o relatório aponta a expectativa de que o leque de atores e réus continue a se diversificar, refletindo o entendimento de que múltiplos sujeitos exercem papel nas causas e soluções atinentes às mudanças climáticas. Na visão do instituto, é esperado o aumento de litígios que envolvam:
- A responsabilidade de pessoas físicas, desde ações penais a casos centrados nos deveres dos diretores, conselheiros e gestores para gerenciar riscos climáticos;
- Discussões internacionais sobre prevenção e reparação (perdas e danos);
- O questionamento de compromissos de governos e grandes emissores que se pautem na remoção de GEE ou tecnologias de “emissões negativas”;
- A preocupação com a relação entre clima e biodiversidade;
- A necessidade de redução de poluentes climáticos de curta duração com alto potencial degradador;
- Compromissos e metas climáticas empresariais inconsistentes ou que induzam stakeholders ao erro sobre produtos e ações.
Nesse contexto, abaixo, são destacados alguns recentes desdobramentos ocorridos no cenário nacional e internacional.
Supremo Tribunal Federal equipara Acordo de Paris a tratado de direitos humanos
No início de julho, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708, ajuizada em 2020 por partidos políticos em face do Governo Federal. No âmbito desta ação, os autores alegaram a omissão da União ao não fazer funcionar e aplicar os recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) desde 2019.
O julgamento foi marcado pela fixação da tese de que o Poder Executivo possui o dever constitucional de fazer funcionar e alocar, anualmente, os recursos do Fundo Clima para ações de mitigação das mudanças climáticas em decorrência do dever constitucional de proteção ao meio ambiente, assim como dos direitos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Em seu voto, o ministro-relator Luís Roberto Barroso reconheceu que os tratados internacionais de matéria ambiental devem ser enquadrados como tratados de direitos humanos, adquirindo, portanto, caráter supralegal. Destacou, ainda, que a vedação ao retrocesso é limitação à discricionariedade administrativa e é dever administrativo de eficiência perante o meio ambiente.
Como consequência, o STF reconheceu a omissão da União e determinou que ela se abstenha de se omitir em fazer funcionar o Fundo Clima ou em destinar seus recursos, bem como vedou o contingenciamento de receitas que integram o referido fundo.
A procedência da ADPF nº 708 e, em especial, a equiparação do Acordo de Paris a um tratado de direitos humanos, representa um marco para a litigância climática brasileira e pode influenciar o ajuizamento de novas ações.
Suprema Corte norte-americana veda agência reguladora federal de obrigar a descarbonização
No caso Virgínia Ocidental e outros versus Agência de Proteção Ambiental (West Virginia et. al. v. Environmental Protection Agency -EPA, em inglês, a Suprema Corte dos Estados Unidos (Scotus, na siga em inglês) decidiu, no final de junho de 2022, que a EPA não tem autoridade para impor obrigações relacionadas à migração para fontes menos poluentes a usinas de geração de energia a carvão já existentes para cumprir com metas de emissão de GEE.
Em linhas gerais, a Scotus discutiu no julgamento disposições do Plano de Energia Limpa (Clean Power Plan – CPP, em inglês, proposto pela EPA em 2015, durante a administração do ex-presidente Barack Obama. Com fundamento na Lei do Ar Limpo (Clean Air Act – CAA, em inglês), o CPP previa que os Estados deveriam estabelecer metas individuais de redução de emissões das usinas a carvão até 2030. Para alcançar tais metas, as usinas poderiam adotar três ações: reduzir a produção de energia; construir uma nova usina de gás natural, um parque eólico uma instalação solar ou investir em instalações de terceiros; ou comprar permissões de emissão ou créditos de carbono partes de um regime de cap-and-trade.
Em 2016, a Scotus suspendeu referido plano diante de diversas ações ajuizadas por Estados e empresas questionando tais medidas, em especial a determinação de mudança de fontes utilizadas. A administração de Donald Trump, em 2019, substituiu o CPP pela Regra de Energia Limpa Acessível (Affordable Clean Energy – ACE, em inglês), que ampliou a discricionariedade dos Estados para estabelecerem padrões compatíveis com os interesses dos setores.
Tal substituição foi fundamentada na necessidade de conter a competência da EPA. Na opinião do governo, o CAA não permitia à EPA regular as emissões de GEE.
Todavia, entendendo de forma contrária ao governo, em janeiro de 2021, o Tribunal de Apelações vinculado ao Circuito do Distrito de Columbia (DC), no caso American Lung Association versus EPA, suspendeu o ACE e concedeu prazo para a EPA editar regulação complementar com o objetivo de controlar as emissões de GEE.
Em abril de 2021, 18 Estados norte-americanos e o governador do Estado do Missisipi protocolaram petição perante a Scotus objetivando a revisão do entendimento do Tribunal de Apelações vinculado ao Circuito de DC. Apesar de o CPP nunca ter entrado em vigor, os atores destacaram que o caso merecia ser discutido porque não estava “absolutamente claro” que o comportamento alegadamente incorreto da EPA de controlar emissões de GEE não viria a se repetir.
Em decisão acompanhada pela maioria dos juízes (6 a 3), a Scotus substituiu a decisão de referido tribunal, ao declarar incorreta a interpretação de que o CAA conferiu à EPA poderes amplos para regular emissões de GEE das usinas a carvão. No entendimento da Scotus, a linguagem do CAA não permitiria extrair a autorização do Congresso para que a EPA atuasse obrigando geradores de energia a migrarem de fonte utilizada, entendendo que estes podem escolher como reduzirão suas emissões.
A base jurídica para a opinião da maioria da Corte se pautou na “doutrina das grandes questões” (major question doctrine), que determina que, para matérias de grande impacto e relevância, a delegação para ação de uma agência administrativa por meio de regulação deve ser feita de forma expressa pelo Congresso, não podendo ser inferida ou presumida. Como a Corte não enxergava tal delegação de forma clara no texto do CAA para permitir à EPA que obrigasse geradores de energia a mudarem as suas fontes, a maioria dos juízes entendeu que tal regulação se encontrava fora do escopo de autoridade da agência.
Pedidos de ingresso como amicus curiae em litígios ambientais para pleitear dano climático
A organização da sociedade civil sem fins lucrativos solicitou ingresso, na qualidade de amicus curiae, nos autos de três Ações Civis Públicas (ACPs) em trâmite perante os tribunais federais dos Estados do Pará e do Amazonas. Em sua manifestação nos autos, a organização requereu a condenação dos réus envolvidos nas ações ao pagamento total de R$247,3 milhões a título de danos climáticos em decorrência de desmatamentos realizados entre 2004 e 2017 questionados nas lides.
Em breve síntese, tratam-se de ACPs ajuizadas pela União e/ou pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em face de pessoas físicas, no âmbito das quais se discute a responsabilidade civil ambiental por danos decorrentes de desmatamentos alegadamente ilegais causados pelos réus, dentre outras atividades.
Nas manifestações apresentadas pela organização, é pleiteada a condenação adicional pelos danos decorrentes das emissões de GEE emitidos na conversão dessas áreas para pastagem e lavoura.
Litigância climática também mira instituições financeiras no Brasil
No final de junho de 2022, foi ajuizada ACP perante a Seção Judiciária do Distrito Federal por associação sem fins lucrativos em face de duas instituições financeiras. O objetivo do litígio, em linhas gerais, é compelir referidas instituições a adotarem medidas de transparência e apresentarem plano para alinhar suas ações e políticas de investimento aos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris e da Política Nacional sobre Mudança do Clima.
A autora argumenta que um dos réus desempenha importante papel na promoção do desenvolvimento sustentável, de forma que é essencial a incorporação de critérios climáticos às suas diretrizes de negócios. O outro réu foi inserido no polo passivo da ação sob o argumento de que, na qualidade de único acionista do primeiro, concentra poderes para decidir sobre os seus negócios, restando “evidente o dever fiduciário existente enquanto controlador”.
Em julho de 2022, os réus apresentaram manifestação em resposta aos pedidos liminares dos autores. Dentre os argumentos apresentados, para além do detalhamento das ações e políticas já adotadas no que tange às matérias socioambiental e climática, os réus destacaram a sua ilegitimidade passiva – indicando que é responsabilidade da União Federal a execução de políticas públicas relacionadas as questões climáticas na perspectiva nacional, conforme fixado no recente julgamento da ADPF 708 – e a formulação de pedidos genéricos ou impossíveis por parte dos autores.
Além disso, os réus sugerem a notificação de uma série de entidades e instituições em razão da possibilidade de serem afetados com o julgamento e a realização imediata de Audiência Pública com a participação destas, para subsidiar a análise dos pedidos liminares por parte do juízo.
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