Dois anos da lei que simplificou quóruns de deliberação das sociedades limitadas
Relembre as principais alterações e confira como a jurisprudência vem lidando com as relações societárias previamente estabelecidas
As sociedades limitadas são o tipo de sociedade empresária mais comum no Brasil, mas até recentemente tinham regras complexas e variadas para a tomada de decisões pelos sócios. A Lei nº 14.451/2022 mudou essa situação ao simplificar os quóruns de deliberação para a maioria dos assuntos relevantes da sociedade. Essa foi a primeira alteração legislativa nesses quóruns desde a vigência do Código Civil.
Confira o que mudou com a lei, especialmente quanto aos quóruns de deliberação para alteração de contrato social e as possíveis interpretações sobre a incidência das novas regras a sociedades limitadas constituídas anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 14.451/2022.
O que mudou?
Antes da Lei nº 14.451/2022, o Código Civil previa três quóruns diferentes para as deliberações dos sócios nas sociedades limitadas, conforme o assunto a ser decidido (artigo 1.076, Código Civil):
Quóruns de aprovação | Matérias | Dispositivo |
Três quartos (≥75%) |
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Antigo art. 1.076, I |
Mais da metade do capital social (maioria absoluta) |
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Antigo art. 1.076, II |
Maioria de votos dos presentes na assembleia ou reunião de sócios (maioria simples) |
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Art. 1.076, III |
A lei revogou o quórum de três quartos do capital social e previu para as matérias que ele abrangia o quórum de mais da metade do capital social. Assim, o quórum de maioria absoluta passou a ser a regra geral para as deliberações nas sociedades limitadas (artigo 1.076, II, Código Civil), exceto para assuntos residuais, que continuam sujeitos ao quórum de maioria simples ou outro mais elevado que venha a ser pactuado (artigo 1.076, III, Código Civil).
A Lei nº 14.451/2022 também alterou o quórum para a designação de administradores não sócios, reduzindo-o de dois terços para mais da metade do capital social, quando o capital estiver integralizado, ou de unanimidade para dois terços, quando o capital ainda não estiver integralizado.
Publicada em 22 de setembro de 2022, a Lei nº 14.451/2022 entrou em vigor trinta dias depois, em 21 de outubro de 2022.
Quais são as consequências?
A redução dos quóruns de deliberação nas sociedades limitadas altera a estrutura de poder de controle nas sociedades limitadas. Antes, uma minoria com pouco mais de 25% do capital social tinha, na prática, poder de veto em matérias relevantes. Com a mudança para a regra de maioria absoluta, esses minoritários perderam a capacidade de influenciar significativamente em determinadas matérias.
Isso significa que, sob a Lei nº 14.451/2022, o poder de controle nas sociedades limitadas que antes exigia uma participação de 75% ou mais do capital social pode vir a ser exercido por sócio ou grupo sócios que detenham mais de 50% do capital social. O Código Civil retomou o princípio majoritário como a regra geral, que atribui maior poder de decisão a quem tem maior participação na sociedade.
Isso não significa que os sócios minoritários estejam totalmente desprotegidos. Os sócios minoritários são titulares direitos essenciais que devem ser observados na forma da lei, tais como o direito à fiscalização, a questionar votos abusivos ou conflitantes, a responsabilizar administradores ou controladores, a exercer direito de recesso ou retirada, e a buscar anulação de deliberações viciadas. A Lei nº 14.451/2022 não afetou esses direitos, que continuam previstos no Código Civil e na Lei das Sociedades por Ações, que pode se aplicar supletivamente às sociedades limitadas.
Contratos sociais de sociedades limitadas pré-existentes
A simplificação dos quóruns de deliberação nas sociedades limitadas teve como objetivo declarado aumentar a segurança jurídica e reduzir a burocracia para os sócios, facilitando a gestão e o desenvolvimento das empresas. Segundo a exposição de motivos da Lei nº 14.451/2022, os quóruns variados e elevados geravam confusão e desincentivo aos investimentos no país, e a uniformização dos quóruns seria mais coerente com o princípio majoritário, que atribui maior poder de decisão a quem tem maior participação e assume mais riscos na sociedade.
No entanto, a aplicação da Lei nº 14.451/2022 pode trazer complexidades em relação a sociedades limitadas constituídas anteriormente à sua entrada em vigor. É preciso analisar cada caso de acordo com o que está previsto no contrato social de cada sociedade limitada especificamente e nos seus eventuais aditivos.
Para casos em que o contrato social faz referência expressa a quóruns específicos de deliberação para determinadas matérias, não há grandes divergências. Via de regra, será aplicável o quórum expressamente acordado entre os sócios.
A questão mais complexa se coloca quando o contrato social não menciona quórum específico ou faz menção genérica ao artigo 1.076, ou vem a ser alterado posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 14.451/2022 por aditivo que não menciona quórum específico ou que faz menção genérica ao artigo 1.076. Nesses casos, os quóruns estabelecidos pela Lei nº 14.451/2022 seriam imediatamente aplicáveis para deliberação de matérias que antes exigiam quórum mais elevado?
Decisões do Poder Judiciário
As decisões judiciais acerca das mudanças de quórum de deliberação trazidas pela Lei nº 14.451/2022 ainda são poucas e não abordam todas as hipóteses descritas acima. Das decisões proferidas nos últimos dois anos, duas merecem destaque.
A primeira, proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), envolvia ação ajuizada por sócios que juntos detinham 45% do capital social (TJSP, Agravo de Instrumento 2134449-55.2023.8.26.0000) e que buscavam suspender uma reunião de sócios convocada para deliberar sobre a alteração do contrato social, sustentando que o quórum de 75% previsto no contrato social deveria ser respeitado, apesar da revogação do inciso I do artigo 1.076 do Código Civil. No caso, o contrato social fazia referência expressa ao quórum de 75%, o que, segundo o TJSP, deveria ser observado independentemente da redução do quórum prevista na Lei nº 14.451/2022.
A segunda, do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp n. 1.987.947), envolvia um mandado de segurança impetrado contra a Junta Comercial do Estado de São Paulo que havia se recusado a arquivar uma alteração de contrato social prevendo aumento de capital social sob o argumento de falta de quórum suficiente na deliberação. O sócio majoritário, com 63% do capital, argumentou que o aumento de capital não exigia um quórum específico, mas a segurança foi negada porque a alteração de contrato social que formalizava esse aumento exigia o quórum de 75%. Em decisão monocrática, foi destacado que a deliberação questionada ocorreu em 2017, antes das mudanças introduzidas pela Lei nº 14.451/2022, e que, segundo o princípio tempus regit actum, a decisão da Junta Comercial era legítima, pois não havia previsão de quórum diverso no contrato social.
Ambas as decisões privilegiam a declaração de vontade das partes expressa nos contratos sociais e o contexto temporal das deliberações, assegurando a prevalência do quórum previsto no contrato social, mesmo que este divirja do quórum estabelecido pela nova lei.
Por outro lado, ainda não há jurisprudência sobre as hipóteses em que o contrato social celebrado antes da vigência da Lei nº 14.451/2022 não menciona quórum específico, faz menção genérica ao artigo 1.076, ou vem a ser alterado posteriormente à entrada em vigor da lei por aditivo que não menciona quórum específico ou que faz menção genérica ao artigo 1.076.
Nesses casos, é importante uma análise detalhada, de acordo com o que está previsto no contrato social e com o momento em que ele foi celebrado ou aditado.
Recomendações para as sociedades limitadas
A Lei nº 14.451/2022 representou um avanço na simplificação e na uniformização dos quóruns de deliberação nas sociedades limitadas. Porém, ao não estabelecer regras claras de incidência em relação a sociedades pré-existentes, pode gerar dúvida e insegurança jurídica nas relações societárias previamente estabelecidas.
É importante, portanto, que os sócios revisitem seus contratos sociais e verifiquem se eles refletem a governança que pretendem seguir em suas sociedades, de forma clara e precisa. Se houver dúvidas ou divergências, é recomendável rever as disposições que possam se beneficiar de maior clareza ou para estruturar um acordo de sócios que lhes garanta maior participação ou proteção nas deliberações sociais. Assim, poderão evitar potenciais conflitos e prejuízos.
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