Reforma do Código Civil: panorama geral sobre mudanças relevantes
O Mattos Filho preparou uma série de comentários sobre as principais alterações sugeridas no anteprojeto e pontos de atenção
A Comissão de Juristas para revisar e atualizar o Código Civil (CJCODCIVIL) foi instalada em setembro de 2023. Seis meses depois, a comissão concluiu os trabalhos e enviou a sugestão do anteprojeto de lei para análise pelo Senado Federal.
O rápido trâmite e as alterações sugeridas geraram debates sobre a pertinência e necessidade de uma reforma tão ampla. Foram sugeridas alterações a 149 capítulos do Código Civil que, se aprovadas, modificarão significativamente a lei, impactando vários setores do mercado.
Um dos pontos principais de discussão é que o Código Civil ainda é jovem e, ademais, já foi alterado por cerca de 50 leis esparsas. Recentemente, as Leis nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), nº 14.195/2021 e nº 14.451/2022 alteraram matérias importantes. Há dúvidas sobre se o Código Civil está desatualizado a ponto de necessitar uma mudança profunda e questionam-se os possíveis impactos negativos do anteprojeto, caso venha a ser assim promulgado, que poderia afetar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões.
Juros moratórios (Art. 406) e correção monetária (Art. 389)
O texto da CJCODCIVIL propõe juros de mora de 1% ao mês, limitando-os a 2% quando convencionados.
Por outro lado, a orientação da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, conforme julgamento ainda não concluído, tende a reafirmar a sua jurisprudência ao indicar que, em referência ao texto original do artigo 406 do Código Civil, a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) é aplicável como índice de correção monetária e juros moratórios para dívidas civis sem índice convencionado.
Após a suspensão do referido julgamento, foi promulgada a Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024, que alterou os artigos 389 e 406 do Código Civil. O novo texto legal determina, na ausência de índice convencionado ou previsto em lei, a aplicação do IPCA, como índice de correção monetária, e a Selic, subtraído o IPCA, como juro moratório. Além disso, a lei estabeleceu que o teto dos juros remuneratórios em contratos de mútuo com fins econômicos e os juros moratórios devem correspondem à taxa Selic, deduzido o IPCA, na falta de convenção contratual e previsão legal.
O anteprojeto sugere uma redação divergente da nova redação do Código Civil, que também diverge da orientação jurisprudencial predominante, gerando instabilidade jurídica.
Redação até 28/06/2024 | Texto vigente modificado pela Lei nº 14.905/2024 | Redação proposta pela CJCODCIVIL |
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. | Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal.
§ 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código. § 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil. § 3º Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência. |
Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados ou assim forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa mensal de 1% (um por cento) ao mês.
Parágrafo único. Os juros moratórios, quando convencionados, não poderão exceder o dobro da taxa prevista no caput. |
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Autonomia privada e liberdade contratual (Art. 421)
O texto da proposta de reforma do Código Civil reforça a autonomia privada, o princípio da intervenção mínima do Estado e excepcionalidade da revisão contratual. No entanto, prevê a nulidade de cláusulas que violem a função social do contrato. Isso pode estimular a litigiosidade e gerar insegurança jurídica devido à indeterminação do conceito de função social.
Redação atual | Redação proposta pela CJCODCIVIL |
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. |
Art. 421. …………………………………………………….
§ 1° Nos contratos civis e empresariais, paritários, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual. § 2° A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito. Art. 421-A. As regras deste Título a respeito dos contratos, não afastam o disposto em leis especiais e consideram as funções desempenhadas pelos tipos contratuais, cada um com suas peculiaridades. Art. 421-B. Deve-se levar em conta para o tratamento legal e para a identificação das funções realizadas pelos diversos tipos contratuais, a circunstância de disponibilizarem: I – Bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas, típicos dos contratos celebrados entre empresas; II – Bens e serviços terminais das cadeias produtivas ao consumidor final, marca dos contratos de consumo; III – força de trabalho a uma cadeia produtiva, característica dos contratos de trabalho; IV – Bens e serviços independentemente de sua integração a qualquer cadeia produtiva, como se dá com os contratos civis. |
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Desconsideração da personalidade jurídica de associações (Art. 50)
O texto da proposta de reforma reforça o caráter excepcional da desconsideração da personalidade jurídica, mas inova ao prever a desconsideração da personalidade jurídica de associações. No caso das associações, o anteprojeto prevê a responsabilização patrimonial apenas dos associados que tenham poder de direção ou influência. No entanto, expressões genéricas como “poder de direção” e “poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica” podem ampliar a responsabilização de associados, trazendo riscos e imprevisibilidade sobre o tema.
Redação atual | Redação proposta pela CJCODCIVIL |
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. | Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens de propriedade de administradores, sócios ou associados da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica. |
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Sociedade estrangeira (Art. 1.137)
A nova redação proposta exige que sociedades estrangeiras mantenham sede física no Brasil para exercer atividade empresarial, presencial ou virtual. Embora essa mudança vise a assegurar o cumprimento de ordens judiciais, sua eficácia é incerta e pode desestimular novos negócios ao aumentar custos operacionais.
Redação atual | Redação proposta pela CJCODCIVIL |
Art. 1.137. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar ficará sujeita às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou operações praticados no Brasil.
Parágrafo único. A sociedade estrangeira funcionará no território nacional com o nome que tiver em seu país de origem, podendo acrescentar as palavras “do Brasil” ou “para o Brasil”. |
Art. 1.137. Como condição para exercer atividade empresarial no Brasil, de modo presencial ou virtual, a sociedade estrangeira:
[…] II – é obrigada a manter, em território nacional, permanentemente, sede física e representante com poderes amplos para receber citação judicial ou arbitral, ou quaisquer outras formas de interpelação, em nome e por conta da sociedade. Parágrafo único……………….. |
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Incongruências sobre a responsabilidade civil
A proposta introduz o artigo 944-A, que prevê, além da indenização por danos extrapatrimoniais, a instituição de uma sanção pecuniária de até quatro vezes o valor da indenização. O juiz pode destinar parte desse valor a fundos públicos ou a estabelecimentos de beneficência. Essa medida se assemelha aos punitive damages dos sistemas de common law, tradicionalmente aversivo aos sistemas de civil law, como o brasileiro, em que a punição em geral se circunscreve ao direito penal.
O artigo 944-B permite a fixação de indenização por danos indiretos como regra geral. Isso cria uma incongruência com o artigo 403 (não alterado), segundo o qual “as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito direto e imediato”. A divergência entre os artigos é causa de incerteza e insegurança.
Redação atual | Redação proposta pela CJCODCIVIL |
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. | Art. 944-A. A indenização compreende também todas as consequências da violação da esfera moral da pessoa natural ou jurídica.
[…] 3º Ao estabelecer a indenização por danos extrapatrimoniais em favor da vítima, o juiz poderá incluir uma sanção pecuniária de caráter pedagógico, em casos de especial gravidade, havendo dolo ou culpa grave do agente causador do dano ou em hipóteses de reiteração de condutas danosas. 4º O acréscimo a que se refere o § 3º será proporcional à gravidade da falta e poderá ser agravado até o quádruplo dos danos fixados com base nos critérios do §§ 1º e 2º, considerando-se a condição econômica do ofensor e a reiteração da conduta ou atividade danosa, a ser demonstrada nos autos do processo. […] 6º Respeitadas as exigências processuais e o devido processo legal, o juiz poderá reverter parte da sanção mencionada no § 3º em favor de fundos públicos destinados à proteção de interesses coletivos ou de estabelecimento idôneo de beneficência, no local em que o dano ocorreu.” Art. 944-B. A indenização será concedida, se os danos forem certos, sejam eles diretos, indiretos, atuais ou futuros. |
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O anteprojeto de reforma do Código Civil apresenta mudanças profundas e polêmicas. A implementação dessas alterações exige um equilíbrio cuidadoso entre a modernização legal e a manutenção da segurança jurídica. O debate continuará à medida que o Senado Federal avalia a proposta e suas implicações para o sistema jurídico brasileiro.
No próximo artigo da série, serão abordados novos pontos de reflexão sobre o tema.
Para saber mais sobre os temas, conheça a nossa prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.