

Impacto social e Filantropia: retrospectiva de 2024 e desdobramentos em 2025
Recursos públicos, projetos culturais e fundos patrimoniais são alguns destaques do ano que devem continuar relevantes em 2025
Assuntos
O time de Impacto social e Filantropia do Mattos Filho preparou um conteúdo para as organizações da sociedade civil (OSCs) e atores envolvidos em temas de filantropia e investimento social privado, com uma breve retrospectiva de 2024, e especial foco nos marcos que devem ter desdobramentos ao longo de 2025.
A recente e negativa repercussão da falta de transparência sobre os recursos decorrentes de emendas parlamentares destinados a entidades do Terceiro Setor reforça a importância de garantir boas práticas de prestação de contas dos recursos públicos recebidos. As medidas de transparência também são centrais para a gestão das fundações de direito privado, cujo velamento pelo Ministério Público estadual ganhou novos contornos, em resolução editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público no fim de 2024.
As mudanças de paradigmas quanto à suposta impossibilidade de transformação de associações em empresas e vice-versa abrem portas para operações societárias inovadoras, que passam a ser conduzidas com maior segurança jurídica. Outro assunto, até então controvertido, que ganhou novos contornos em 2024, diz respeito à inaplicabilidade da recuperação judicial a entidades sem fins lucrativos, que após deliberação favorável do Superior Tribunal de Justiça, tende a pôr fim às decisões oscilantes de diferentes tribunais daqui em diante.
A Reforma Tributária segue na pauta em 2025, sendo indispensável a articulação das organizações para manutenção das conquistas alcançadas até o momento e sua adequada regulamentação. Nesse sentido, há perspectiva de alavancagem da cultura da doação e da estruturação de fundos patrimoniais, a partir do projeto de lei que garante incentivos fiscais aos doadores, bem como o devido tratamento tributário diferenciado às organizações gestoras de fundos patrimoniais.
Confira algumas mudanças normativas e tendências observadas em 2024, as quais sinalizam as perspectivas para 2025, demandando reflexões e adaptações do setor.
Reforma tributária
Em 2024, foram apresentados os Projetos de Lei Complementar (PLPs) nº 68/2024 e 108/2024, que regulamentam a Reforma Tributária, aprovada no final de 2023 na forma da Emenda Complementar nº 132/2023. Dentre outros objetivos, a Reforma Tributária pretendeu simplificar o sistema tributário brasileiro, com a substituição dos cinco tributos incidentes sobre o consumo (ISS, ICMS, PIS, Cofins e IPI) pelos três novos tributos: Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e Imposto Seletivo (IS).
O PLP nº 68/2024 versa sobre o IBS, a CBS e o IS e foi aprovado ainda em 2024, após alterações promovidas no âmbito das duas casas do Congresso Nacional, restando para 2025 somente a sanção presidencial do texto.
Em relação aos temas regulamentados por este PLP, pontos importantes conquistados pelas organizações sem fins lucrativos, em decorrência da atuação em advocacy realizada durante o debate do texto no Congresso Nacional, foram mantidos. Dentre eles, destaca-se a manutenção dos requisitos atualmente previstos pela legislação para fruição do regime de imunidade, no que se incluem a impossibilidade de distribuição de recursos e a necessidade de aplicação do seu superávit na consecução de suas finalidades sociais. Destaca-se, também, as disposições do texto do PLP aplicáveis aos fundos patrimoniais instituídos nos termos da Lei nº 13.800/2019, cujas receitas não sofrem a incidência do IBS e da CBS, bem como nas operações com bens imóveis quando realizadas por organizações gestoras de fundo patrimonial.
Por outro lado, alguns pontos pleiteados pelo setor não foram considerados pelo texto aprovado, devendo ser objeto de atenção por impactarem consideravelmente suas atividades. É o caso da manutenção, no texto do PLP, da previsão de que a isenção e a imunidade não implicam crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes e acarretam a anulação do crédito relativo às operações anteriores, o que diminui o impacto da desoneração tributária que se pretende conceder às organizações com a imunidade.
O PLP nº 108/2024, que trata do Comitê Gestor do IBS, ainda vai tramitar em 2025 e dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao lançamento de ofício do IBS, sobre a distribuição para os entes federativos do produto da sua arrecadação, e sobre o Imposto sobre Transmissão Causa mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). É fundamental que as organizações estejam atentas às próximas etapas de regulamentação do referido PLP, em especial considerando a possível regulamentação da não incidência de ITCMD para doações por elas recebidas e realizadas, de forma a garantir a defesa dos seus direitos e o aproveitamento das disposições constitucionais previstas em seu benefício.
Transparência no recebimento de recursos públicos por OSCs
O Decreto nº 11.948/2024 introduziu alterações à regulamentação da Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), a fim de desburocratizar e facilitar o acesso às parcerias entre a administração pública e Organizações da Sociedade Civil (OSCs). Apesar das flexibilizações promovidas no regulamento do MROSC a nível federal, se mantém a necessidade de as OSCs darem especial atenção ao uso de recursos públicos recebidos e sua devida prestação de contas.
Essa recomendação revela-se ainda mais relevante agora que o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Corregedoria-Geral da União (CGU) estão debruçados sobre a ausência e incompletude da divulgação de dados relativos a emendas parlamentares destinadas a OSCs. A recente decisão do ministro Flávio Dino de suspender repasses de emendas parlamentares a entidades do Terceiro Setor, com base em relatório da CGU que constatou a falta ou insuficiência de transparência na aplicação dessas verbas, indica que OSCs estarão sujeitas a um escrutínio ainda maior por parte dos órgãos fiscalizadores em 2025.
Embora o Terceiro Setor seja inegavelmente capacitado para executar ações de interesse público, parte das OSCs ainda enfrenta desafios no cumprimento dos requisitos formais exigidos para integração do investimento social privado com políticas públicas – motivo pelo qual se faz necessária atenção redobrada ao tema da transparência.
Velamento das fundações privadas
Em setembro do último ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou a Resolução nº 300/2024, com o objetivo de disciplinar o velamento das fundações privadas, consignando que os parâmetros gerais fixados pelo CNMP deverão ser observados pelos órgãos estaduais, que possuam ou não regramento próprio, respeitadas as especificidades regionais.
Ainda que o conteúdo do normativo tenha sido alvo de debates por extrapolar os limites do Código Civil, há a tendência de que, em 2025, os Ministérios Públicos estaduais adequem os regulamentos sobre fundações existentes ou criem normas específicas, caso não as possuam, como ocorre no Estado do Rio Grande do Norte. Referidos regulamentos tendem a seguir os termos fixados pela mencionada resolução – aspecto que pode demandar a adequação das fundações em procedimentos de gestão já conhecidos e institucionalizados.
Adicionalmente, tendo em vista que as inovações promovidas pelo CNMP impactam diretamente a governança de fundações já existentes – em linha com as propostas de alterações dos mesmos temas no Código Civil – sobretudo as fundações familiares, haveria oportunidade de tais organizações discutirem ações coordenadas de advocacy, com o apoio de entidades representativas.
Para mais detalhes sobre o tema, acesse o texto disponível no Único.
Simplificação da prestação de contas de projetos culturais pelo Pronac
A Instrução Normativa (IN) 17/2024 do Ministério da Cultura, publicada em setembro de 2024, simplifica os procedimentos de prestação de contas de projetos culturais. A desburocratização busca mudar o foco da análise de prestação de contas, dando maior ênfase à avaliação de resultados, metas e ao impacto social promovido, à medida que a documentação financeira só será exigida se houver indícios de irregularidades. Ainda, poderá haver aprovação da prestação de contas com ressalva dos projetos mesmo com identificação de inconsistências financeiras anteriores à sua publicação, desde que não seja constatada a ocorrência de dolo ou fraude. Referidas ressalvas na prestação de contas terão caráter educativo e não causarão a imposição de penalidades.
Além disso, a IN detalha regras para a transferência de recursos pelo Ministério da Cultura, a exemplo do artigo 2°, que obriga o Ministério a indicar expressamente a modalidade de transferência de recursos em seus programas, editais e demais materiais. Há ainda a distinção entre instrumentos de transferência voluntária (entre entes públicos de diferentes esferas da federação) e de transferência para OSCs, sendo vedada a aplicação de exigências relativas às transferências voluntárias em instrumentos celebrados nos termos do Marco Regulatório das OSCs, da Política Nacional Cultura Viva e do Marco Regulatório do Fomento à Cultura.
A partir de 2025, espera-se uma diminuição de erros operacionais e maior segurança jurídica para os profissionais da iniciativa privada na gestão de projetos culturais.
Para mais detalhes sobre a norma, acesse a publicação do Único.
Transformação de pessoas jurídicas sem fins lucrativos
Concluído o julgamento do Pedido de Providências nº 1066812-95.2023.8.26.0100, que discutia a possibilidade de transformação de empresa em associação e a averbação do ato societário respectivo em cartório, em julho de 2024, a Corregedoria Extrajudicial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) publicou o Provimento CG nº 26/2024, que alterou o tomo de Normas Extrajudiciais do órgão.
Em razão de referido Provimento, os Registros Civis de Pessoas Jurídicas do Estado de São Paulo foram autorizados a registrar atos societários que disponham sobre a transformação de empresas em associações ou fundações e o inverso, nos termos já indicados pela Instrução Normativa DREI nº 81/2020. A mudança viabilizou a realização de operações societárias complexas pelas organizações e proporcionou maior segurança jurídica para esses casos, o que tende a aumentar o número dessas transações.
Ausência do direito à recuperação judicial das fundações e associações
Em julgamento inédito concluído em outubro de 2024, a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por maioria dos votos, que as fundações de direito privado não têm legitimidade para ajuizar pedido de recuperação judicial, nos termos da Lei de Recuperação Judicial e Falências – LRF (Lei nº 11.101/05), assim adotando entendimento conservador em meio a controvérsia entre instâncias inferiores. Foram analisados os Recursos Especiais de números 2.026.250, 2.155.284, 2.038.048 e 2.036.410 que tinham em comum a questão controversa da aplicação da LRF às fundações que passavam por dificuldades financeiras.
Com a decisão, perde-se a oportunidade de fortalecimento das fundações privadas, responsáveis pela geração de empregos e atividades econômicas relevantes, em situação de crise econômica momentânea. Diante da forte e crescente atuação de fundações privadas, o instituto jurídico da recuperação judicial teria o potencial de promover benefícios não apenas à organização beneficiária como à economia de forma mais ampla, mitigando efeitos de crises econômicas e contribuindo para a preservação de empregos e de atividades de alto interesse social. Na sua impossibilidade, cabe então às fundações privadas reforçarem seus mecanismos preventivos de sustentabilidade financeira, por meio de medidas como o planejamento orçamentário de longo prazo e o estabelecimento de fundo de reserva para situações emergenciais e de fundos patrimoniais como fonte perene de recursos.
Avanço de Projeto de Lei que incentiva estruturação de fundos patrimoniais e cultura da doação
O Senado Federal aprovou, em dezembro de 2024, o Projeto de Lei nº 2.440/2023 que promove avanços significativos para o contexto jurídico e financeiro dos fundos patrimoniais, ao ampliar incentivos fiscais, reconhecer regimes tributários benéficos e garantir maior segurança jurídica para as Organizações Gestoras de Fundo Patrimonial (OGFP), criadas sob a égide da Lei n° 13.800/2019. O PL estabelece alguns pontos, entre eles:
- Permissão para que pessoas físicas e jurídicas deduzam doações às OGFPs na apuração do imposto de renda e da base de cálculo contribuições sociais sobre o lucro líquido;
- Segurança para que essas entidades usufruam o mesmo regime tributário das causas apoiadas;
- Autorização de investimentos em participações societárias, e no exterior, sem impactos negativos para a manutenção da imunidade ou isenção tributária;
- Isenção do IRRF os rendimentos de aplicações financeiras realizadas por essas organizações.
Com essas medidas, o projeto fortalece a sustentabilidade financeira de organizações sem fins lucrativos e amplia seu potencial de impacto em áreas estratégicas. Atualmente, o projeto se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, aguardando despacho de seu Presidente.
Ainda assim, fundos patrimoniais próprios, isto é, aqueles que não são constituídos ou geridos nos termos da Lei 13.800/2019 e integram a estrutura da própria organização, permanecem como alternativas válidas e instrumento relevante para fomentar a sustentabilidade financeira de organizações no longo prazo. Independentemente do modelo escolhido, os fundos patrimoniais são instrumentos essenciais para fomentar a cultura de doação, pois garantem a destinação sustentável e perene de recursos a causas ou entidades de interesse público. No Brasil, entretanto, a cultura de doação ainda enfrenta desafios significativos, como aponta a mais recente edição do Ranking Global de Solidariedade de 2024. De acordo com a publicação, o país avançou três posições desde a última edição, ocupando o 86º lugar, mas ainda está distante de melhores colocações alcançadas no passado, como o melhor resultado alcançado em 2022, no 18º lugar.
Destaca-se, ainda, a existência de outras seis proposições legislativas relacionadas aos fundos patrimoniais, atualmente em tramitação no Congresso Nacional: PL 7641/2017, PL 3817/2019, PL 2537/2020, PL 3872/2021 e PL 6185/2023. Assim como o projeto de Lei comentado anteriormente, tais iniciativas legislativas, mesmo que não venham a ser aprovadas no futuro, intensificam e repercutem no debate público sobre os fundos patrimoniais, ao apresentarem propostas de alteração e/ou aperfeiçoamento de seu funcionamento, portanto, merecem atenção e acompanhamento em 2025.
Para mais informações a respeito da regulamentação e outros temas pertinentes, conheça a prática de Impacto social e Filantropia do Mattos Filho.
*Com a colaboração de Enzo Samuel Cavalcanti Martins e Maíra Prestes de Albuquerque.