STF afirma que condicionar a autorização de cursos de medicina a chamamentos públicos é constitucional
Houve modulação de efeitos para permitir o funcionamento dos cursos já autorizados e obrigar o MEC a decidir os processos regulatórios que ultrapassaram a fase documental
Assuntos
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) registrou, em 24 de maio de 2024, quórum de votação suficiente para definir os rumos do julgamento do mérito da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 81/DF (ADC 81), pondo fim a importante debate jurídico que se estendia desde meados de 2023, em torno da constitucionalidade do condicionamento da autorização de cursos de medicina a chamamentos públicos prévios, na forma do art. 3º da Lei 12.871/2013 (Lei do Mais Médicos).
Ainda estão pendentes os votos de dois Ministros, mas, numericamente, o resultado só será alterado caso haja alteração de posicionamento por parte de algum dos Ministros que já votou. Depois de diversos pedidos de vista, prevaleceu o encaminhamento proposto pelo Ministro Relator Gilmar Mendes, segundo o qual o Ministério da Educação (MEC) pode limitar a livre iniciativa na esfera educacional para organizar a oferta de cursos de medicina a partir de processos competitivos de chamamento público (semelhantes a licitações), em locais predeterminados pelo próprio MEC. Como consequência, é inviável aos mantenedores de Instituições de Ensino Superior (IES) pleitear autorização de cursos fora de tal regime.
A questão é que, entre a data da entrada em vigor da Lei do Médicos e a decisão da ADC 81, mais de 600 ações judiciais foram propostas para obrigar o MEC a examinar pedidos de autorização fora do regime dos chamamentos públicos. E, como muitas dessas ações tiveram pedidos deferidos, o STF modulou os efeitos da decisão para:
- Permitir a continuidade do funcionamento dos cursos autorizados pelo MEC em função de ações judiciais;
- Determinar ao MEC que decida os processos regulatórios abertos a partir de decisões judiciais e que tenham ultrapassado a etapa da análise documental (despacho saneador).
A partir dos números divulgados nos autos pela Advocacia-Geral da União (AGU) e citados no voto-vista do Ministro Alexandre de Moraes, isso significa que aproximadamente 41 cursos já autorizados poderão seguir funcionando. Outros 183 pedidos de autorização de novos cursos e 23 pleitos de aumento de vagas além daqueles existentes também serão examinados, contudo, deverão observar os critérios editados pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES) do MEC na Portaria SERES nº 531/2023, que criou um padrão decisório específico para regulamentar a medida cautelar da ADC 81, agora referendada.
Entenda a controvérsia
A Lei do Mais Médicos criou um regime específico para autorizar novos cursos de medicina. Antes, bastava que o mantenedor da IES protocolasse um pedido de autorização junto ao MEC e, preenchidos os requisitos qualitativos para a oferta do curso, teria o direito de iniciar suas atividades. Com a inovação legislativa, a livre iniciativa nesse mercado foi suprimida, de modo que cabe ao MEC decidir se, quando e onde novos cursos serão abertos, criando editais de chamamento público para que as IES compitam entre si pelo direito de ofertar o curso em cada um dos municípios selecionados pelo órgão – nos moldes de uma licitação pública.
Quando a referida lei entrou em vigor, muitos mantenedores entenderam que a interpretação de que o art. 3º da Lei do Mais Médicos deliberadamente excluiria a livre iniciativa educacional assegurada pelo art. 209 da Constituição Federal não seria a mais adequada. Por essa razão, ingressaram em juízo para que o MEC recebesse e analisasse pedidos de autorização com base em critérios qualitativos vigentes, afastando a incidência do regime dos chamamentos públicos, sob o argumento de que esse deveria conviver com a possibilidade de se protocolar novos pleitos de autorização por direito próprio, na forma do art. 209 da CF e da Lei nº 10.861/2004 (Lei do SINAES).
Esse processo se intensificou quando, em 2018, o MEC decidiu suspender a abertura de todo e qualquer processo de chamamento público, sob o pretexto de que deveria reavaliar as condições para autorização de novos cursos. Assim, diversas ações obtiveram sucesso e, então, uma série de pleitos de autorização foram protocolados no MEC a partir de tais decisões judiciais favoráveis. Como consequência, mantenedores de IES investiram vultosos recursos para receberem as visitas voltadas a avaliar as condições de qualidade, depositando expectativas no fato de que as decisões judiciais seriam cumpridas (embora provisórias, na maioria).
Esse movimento criou assimetrias regulatórias, uma vez que os critérios para exercício da atividade impostos pela Lei do Mais Médicos implicam custos operacionais mais elevados do que aqueles anteriores, que passaram a orientar as decisões do MEC decorrentes das liminares. E, em função disso, em 8 de junho de 2022, a Associação Nacional das Universidades Privadas (ANUP) ingressou no STF com a ADC 81, visando a suspender a prolação de novas decisões e declarar a constitucionalidade do regime de chamamento público da Lei do Mais Médicos.
Como já divulgado no Único, o Ministro Gilmar Mendes, relator, deferiu parcialmente a medida cautelar pleiteada pela ANUP em 7 de agosto de 2023. Nessa decisão, cujo conteúdo foi posteriormente alterado para melhor esclarecimento por meio de duas novas decisões, determinou-se:
- A continuidade do funcionamento dos cursos autorizados pelo MEC em função de ações judiciais;
- Que o MEC decidisse os processos regulatórios abertos a partir de decisões judiciais e que tenham ultrapassado a etapa da análise documental (despacho saneador).
Contudo, entendeu-se que, em suas decisões, o MEC deveria adotar uma série de critérios previstos na Lei do Mais Médicos, em especial:
- Demonstrar a necessidade social do curso para o município pretendido;
- Arcar com contrapartidas de 10% do faturamento bruto do curso ao Sistema Único de Saúde (SUS);
- Assegurar a existência de infraestrutura do SUS disponível para o curso, bem como a oferta de residências médicas de forma suficiente para apoiar as atividades dos egressos.
Em função de seu conteúdo genérico, a medida cautelar foi regulamentada por algumas normas da SERES, sendo a Portaria SERES nº 531/2023 aquela vigente. Com a conclusão do julgamento do mérito, portanto, essa passará a ser a norma orientativa para todos os pleitos pendentes de análise. Como o tema é complexo, é importante esclarecer algumas questões.
É viável ingressar com ações para obrigar o MEC a examinar pedidos de autorização de novos cursos fora do regime da Lei do Mais Médicos?
Não. Considerando que as decisões em ações de controle concentrado de constitucionalidade (como a ADC 81) têm efeitos erga omnes (oponíveis a todos) e que o efeito da declaração de constitucionalidade não se restringe ao argumento veiculado na ADC 81 (causa de pedir aberta), novas ações destinadas a discutir a possibilidade de promover autorização de novos cursos fora do regime da Lei do Mais Médicos tendem a ser julgadas improcedentes.
Há riscos para a continuidade do funcionamento dos cursos autorizados pelo MEC a partir de decisões judiciais cuja discussão integra a ADC 81?
Como o STF decidiu, em sede de modulação, que todos os cursos autorizados pelo MEC a partir de decisões judiciais que discutiram a constitucionalidade da Lei do Mais Médicos poderiam continuar a funcionar sem se sujeitar a quaisquer critérios previstos nessa legislação, entende-se que não há riscos para a continuidade de suas atividades. É importante lembrar, porém, que no Brasil não há direito adquirido à manutenção de determinado regime jurídico, logo, tais cursos deverão se sujeitar a novas regras que, eventualmente, venham a ser criadas pelo MEC para a manutenção de suas atividades, as quais têm de ser pautadas em incrementar o critério qualitativo – em linha com o que prevê o art. 209, II, da CF.
Quais os impactos da decisão do STF para os processos regulatórios em curso?
Em razão da modulação de efeitos acolhida pelo Plenário e a julgar pelos critérios da Portaria SERES 531/2023, as consequências imediatas da decisão para os processos administrativos de autorização de cursos em tramitação tendem a ser estas:
- Os processos administrativos que já ultrapassaram a fase de despacho saneador da SERES deverão ter seguimento. Nesses casos, a secretaria tem intimado os mantenedores de IES a demonstrarem que o município em que pretendem instalar o curso preenche os critérios de necessidade social indicados na Nota Técnica SERES nº 81/2023, em especial o de possuir uma relação de médicos por mil habitantes igual ou inferior a 3,73; bem como a comprovar que há disponibilidade de cinco leitos SUS para cada vaga pretendida, que detém condições de usufruir de infraestrutura pública de saúde suficiente para oferecer o curso; e, por fim, a se comprometer a destinar 10% do faturamento bruto do curso em contrapartidas à rede local do SUS;
- Os processos administrativos que não ultrapassaram a fase de despacho saneador tendem a ser arquivados (extintos).
Com relação ao último ponto, é importante ponderar, porém, que nada obsta que os mantenedores de IES continuem a discutir em juízo elementos distintos do mérito, sobretudo para aqueles pleitos que não ultrapassaram a etapa documental em função da demora excessiva da SERES em dar andamento às medidas. Sem decisões judiciais, contudo, realmente a tendência é que tais pleitos venham a ser arquivados.
Como ficam as ações judiciais em tramitação?
Com o julgamento definitivo do mérito da ADC 81, a tendência é que as ações judiciais tornem a tramitar e sejam julgadas improcedentes. Porém, é importante manter a atenção sobre aqueles casos em que, por força de decisão judicial de natureza provisória, foi autorizado o funcionamento do curso ou a continuação do processo administrativo de autorização de novos cursos, incluídas na abrangência da modulação de efeitos adotada pelo Plenário.
Nesses casos, mesmo que a demanda judicial seja julgada improcedente no mérito, é possível extrair a interpretação de que a mantenedora da IES obteve o provimento jurisdicional de seu interesse, o que poderá ter impacto direto na distribuição dos ônus sucumbenciais. É prudente que se acompanhe, nos próximos meses, o posicionamento da jurisprudência sobre o tema.
A decisão na ADC 81 pode impactar outros cursos?
Em teoria, sim. Embora o julgamento tenha focado na análise do regime específico para autorização de novos cursos de medicina, o STF declarou constitucional o art. 3º da Lei do Mais Médicos, que dispõe, em seu §6º, que “o Ministério da Educação, conforme regulamentação própria, poderá aplicar o procedimento de chamamento público de que trata este artigo aos outros cursos de graduação na área de saúde”. Válido, portanto, acompanhar eventuais movimentações do MEC quanto à extensão de tal regime de autorização para outros cursos de graduação.
Para mais informações sobre o setor, conheça a prática de Educação do Mattos Filho.