Boletim de direito do consumidor: temas relevantes do segundo semestre de 2023
Confira o panorama de algumas das principais decisões judiciais, administrativas e legislativas em matéria de direito do consumidor no período
JUDICIAL
Quarta Turma do STJ reconhece ausência de responsabilidade do estabelecimento comercial por fraude de cartão de crédito
O acórdão proferido no REsp 2.095.413/SC, publicado em 6 de novembro de 2023, conclui que o estabelecimento comercial não tem legitimidade para figurar no polo passivo de ação indenizatória por ter aceitado cartão de crédito fraudulento como meio de pagamento.
A decisão, unânime, concluiu que não seria razoável exigir do lojista conferência extraordinária “para verificar se aquele cartão foi emitido regularmente e não foi objeto de fraude ou furto”. A responsabilização do lojista somente seria possível se comprovado o seu envolvimento na fraude, furto ou roubo do cartão de crédito utilizado.
Para a ministra relatora, Maria Isabel Gallotti, se os cartões de crédito estão desbloqueados e sem impedimento de ordem financeira, o seu uso para pagamento no estabelecimento não atrai responsabilidade do lojista com fundamento na responsabilidade da cadeia de fornecedores.
Competência da Justiça estadual para processamento e julgamento de repactuação de dívidas
O CC 192.140/DF, julgado em 16 de maio de 2023, por meio do qual o STJ concluiu que compete à Justiça estadual, ou distrital, o processamento e julgamento de processos de superendividamento previstos nos artigos 104-A e 104-B do CDC, ainda que figure no polo passivo da ação ente federal.
Reafirmando o entendimento expressado no julgamento do CC 193.066/DF, o relator do CC 192.140/DF, ministro João Otávio de Noronha, entendeu que a hipótese se trata de exceção à competência da Justiça federal, prevista no artigo 109, inciso I, da Constituição Federal. Isso porque o processo de superendividamento, assim como os processos de recuperação judicial ou falência, tem natureza concursal.
Taxatividade mitigada do rol de procedimentos e eventos da ANS é reafirmada pelo STJ
Ao julgar o AgInt na TutPrv no REsp 1.987.707/SC, em 24 de agosto de 2023, a Terceira Turma do STJ reafirmou entendimento da Segunda Seção no sentido de que o rol de procedimentos e eventos da ANS é de taxatividade mitigada. Assim, ainda que não esteja previsto no rol da ANS, o tratamento pleiteado pelo consumidor deve ser custeado pela operadora do plano de saúde, pois não foi apontada “terapia alternativa eficaz e segura para a doença, providência que seria por demais necessária, ante o delicado quadro clínico da paciente”.
Além disso, citando entendimento exarado pela Quarta Turma do STJ em abril de 2023, no julgamento do AgInt no REsp 201.6007/MG, a Terceira Turma do STJ entendeu que configura conduta abusiva a recusa de cobertura de medicamento registrado na Anvisa e prescrito pelo médico do paciente, mesmo que referido medicamento corresponda a tratamento off-label ou seja utilizado em caráter excepcional, desde que sua cobertura esteja amparada em critérios técnicos, cuja necessidade deve ser analisada caso a caso.
ADMINISTRATIVO
Procon mapeia nível de satisfação sobre o uso de IA em atendimento aos consumidores
O Procon/SP divulgou o Relatório Técnico da Pesquisa Comportamental “Inteligência Artificial no Atendimento ao Consumidor” 2023, em outubro de 2023. O documento tem como objetivos principais:
- Entender se o consumidor identifica que o atendimento está sendo realizado por IA;
- Entender a forma como o consumidor avalia o atendimento por meio IA e se tal uso da IA é capaz de atender suas necessidades;
- Utilizar os dados mapeados para desenvolver ações de educação para o consumo e aprimorar o atendimento e as orientações aos consumidores.
Cerca de 66% dos participantes da pesquisa indicaram que o atendimento do fornecedor, por meio da IA, não resolveu o problema. As razões variaram: a IA não entendeu o pedido do consumidor; as respostas da IA foram incompletas ou insatisfatórias; houve falta de informações para indicar o problema e solucioná-lo. Aproximadamente 60% dos participantes indicaram que sempre tem necessidade de buscar atendimento humano após o atendimento realizado por IA, para solução do problema levado ao fornecedor.
Ao se pronunciar sobre as conclusões do relatório, o Procon/SP indicou que tem expectativas de os fornecedores utilizarem as informações do documento para aperfeiçoamento das ferramentas utilizadas no atendimento aos consumidores.
TJSP lança Programa Estadual de Combate ao Superendividamento
O Tribunal de justiça do Estado de São Paulo (TJSP) lançou, em 16 de outubro de 2023, o Programa Estadual de Combate ao Superendividamento, que busca trazer mais efetividade à Lei 14.181/2021, por meio da realização de audiências de mediação e conciliação. Segundo a desembargadora Maria Lúcia Ribeiro de Castro Pizzotti Mendes, coordenadora do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec), há mais de 400 mediadores e conciliadores preparados para trabalhar nesse programa.
Por meio do preenchimento de formulário digital disponibilizado pelo TJSP, é viabilizada a solicitação de tentativa de acordo sobre a dívida com os credores (empresas privadas, instituições financeiras ou concessionárias de serviços públicos). São aceitos pedidos de tentativa de acordo tanto de casos pré-contenciosos, como de casos que já possuem processos em curso. No caso de existência de litígio processual no momento da solicitação, haverá a suspensão do processo para tentativa de acordo.
Distribuir água em eventos passa a ser obrigatório em períodos de alta temperatura
O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), editou a Portaria GAB-SENACON/MJSP 35/2023, que estabelece obrigações às empresas responsáveis pela produção de shows, festivais e quaisquer eventos em que haja exposição dos consumidores ao calor. Tais obrigações buscam garantir:
- O acesso gratuito de garrafas de uso pessoal, contendo água para consumo, além de disponibilizar bebedouros ou realizar distribuição de embalagens com água adequada para consumo, mediante a instalação de “ilhas de hidratação” de fácil acesso a todos os presentes, sem custos adicionais ao consumidor;
- Que tanto os pontos de venda de comidas e bebidas quanto os pontos de distribuição gratuita de água estejam dispostos em regiões estratégicas do local evento, a fim de facilitar o seu acesso pelos consumidores, consideradas a estrutura física e a quantidade estimada de participantes;
- Espaço físico e estrutura necessária para assegurar o rápido resgate de participantes do evento, em caso de intercorrências relacionadas à saúde e demais situações de perigo.
Aos produtores do evento é facultado fixar os materiais de composição das garrafas d’água apresentadas pelos consumidores ao entrar no local, a fim de garantir a segurança e a integridade física dos participantes.
Senacon apresenta resposta ao aumento de casos de racismo em relações de consumo
Em razão ao crescente número de casos de racismo em relações de consumo noticiados, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) elaborou a Nota Técnica 14/2023/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, publicada em 6 de julho de 2023, que contempla orientações ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e ao mercado de consumo. Foram analisadas 69 decisões judiciais que abordaram a temática de racismo estrutural em relações de consumo. A Senacon apresentou um conjunto de dez diretrizes de enfrentamento ao racismo nas relações de consumo:
- Observância dos princípios da igualdade e da não-discriminação, de forma a garantir o respeito à dignidade e a eliminação de todas as formas de discriminação e violência;
- Proteção dos direitos das pessoas negras consumidoras por meio da garantia contra práticas comerciais racistas e contra a discriminação nas condições de acesso aos produtos e serviços, inclusive por combinações de algoritmos e impulsionamento de discurso de ódio racista em redes sociais;
- Promoção da educação e conscientização sobre direitos e valorização da cultura da pessoa negra, com o objetivo de formação da sociedade para eliminação de estereótipos e preconceitos;
- Adoção de comunicação não racista em campanhas publicitárias, bem como inadmissão de utilização de estereótipos e promoção de produtos ou serviços que reforcem esta condição, com a finalidade de sempre ser observada a diversidade étnico-racial presente nas relações de consumo;
- Garantia de preços justos e igualdade de acesso a pessoas negras e não-negras;
- Garantia de medidas de controle de qualidade e segurança desde a fabricação até a comercialização, bem como garantia de informações claras às pessoas negras consumidoras sobre os riscos associados aos usos de produtos;
- Participação da pessoa negra consumidora na tomada de decisão, com representação e voz ativa em órgãos e instâncias de proteção aos direitos provenientes das relações de consumo, de forma a garantir que as políticas de proteção sejam sensíveis às suas necessidades e aos seus interesses;
- Promoção da proteção da pessoa negra consumidora em cooperação entre os membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, as organizações de defesa dos direitos humanos e os fornecedores de produtos e serviços, a fim de estabelecer a harmonia das relações de consumo;
- Utilização de legislação clara e efetiva para a adoção de práticas de proteção à pessoa negra consumidora, com a finalidade de se assegurar a igualdade de tratamento no acesso a produtos e serviços de consumo;
- Promoção de ações afirmativas pelos fornecedores e órgãos de proteção, com o objetivo de fomentar a igualdade e o combate à discriminação racial nas relações de consumo.
O secretário da Senacon sugeriu que essas diretrizes sejam replicadas em portaria a ser editada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
LEGISLATIVO
Governador do Estado de São Paulo sanciona lei que consolida normas consumeristas
A Lei 17.832/2023, em vigor desde 6 de novembro de 2023, consolidou 72 leis estaduais paulistas relativas às normas de defesa do consumidor em um único texto legislativo. Apesar de não trazer inovações de ordem material, essa consolidação legislativa visa a facilitar tanto a visibilidade de normas que devem ser observadas nas relações de consumo, como a sua fiscalização pelos órgãos públicos competentes.
A competência para fiscalização do cumprimento da Lei 17.832/2023 foi atribuída ao Procon, valendo-se de sua própria estrutura administrativa e mediante convênios com os órgãos de defesa do consumidor dos municípios do estado de São Paulo, e aos órgãos reguladores competentes, de acordo com a respectiva área regulatória de atuação.
Instituída a Secretaria de Direitos Digitais
Por meio do Decreto 11.759/2023, foi criada a Secretaria de Direitos Digitais, que passa a ser parte da estrutura do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). A responsável pelo setor será Estela Aranha. Dentre as competências da nova secretaria, tem-se a formulação, proposição e implementação de ações para a defesa dos direitos e garantias constitucionais em ambiente digital, dentre os quais se encontra a defesa e proteção do consumidor (artigo 5°, inciso XXXII, da Constituição Federal). Assim, as medidas e ações dessa nova secretaria do MJSP poderão apresentar impactos nas relações de consumo digitais.
Desenrola Brasil visa a reinserção de pessoas no mercado de crédito
A Lei 14.690/2023, publicada em outubro de 2023, que institui o Programa Emergencial de Renegociação de Dívidas de Pessoas Físicas Inadimplentes (Programa Desenrola Brasil). O seu objetivo é incentivar a renegociação de dívidas de natureza privada, de pessoas que tenham sido inscritas em cadastros de inadimplentes, para reduzir o endividamento familiar e facilitar a retomada de seu acesso ao mercado de crédito. Inicialmente, o programa havia sido proposto por meio da Medida Provisória 1.176/2023, cujo período de vigência já se encerrou, em razão de sua não conversão em lei no prazo legal. O Programa Desenrola foi dividido em três etapas, abaixo elencadas:
- Primeira etapa: desnegativação de dívidas de pequeno valor, a partir de 17.7.2023. Abrange pessoas com dívidas bancárias negativadas em até R$ 100,00;
- Segunda etapa: renegociação de dívidas, a partir de 17.7.2023, sendo necessário contatar diretamente o banco. Abrange pessoas físicas com renda de até R$ 20.000,00 e dívidas bancárias sem limite de valor;
- Terceira etapa: renegociação de dívidas, a partir de outubro de 2023, sendo necessário possuir conta GOV.BR, com nível de certificação prata ou ouro, e providenciar a atualização de dados cadastrais. Abrange pessoas com renda de até 2 salários mínimos ou inscritos no CadÚnico e com dívidas de até R$ 5.000,00.
A adesão ao Programa Desenrola Brasil, seja por credores e bancos, seja por consumidores, é totalmente voluntária.
Para mais informações acerca do tema, conheça a prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.
*Com a colaboração de Milena Laranjeira Vilas Boas.