CVM publica orientações sobre as Sociedades Anônimas do Futebol
Decorridos dois anos da promulgação da Lei das SAF, CVM emite o Parecer de Orientação n° 41, com recomendações sobre aspectos das Sociedades Anônimas de Futebol, como o acesso ao mercado de capitais
A Lei n° 14.193/2021, conhecida como Lei das Sociedades Anônimas do Futebol, ou Lei das SAF, fornece um arcabouço jurídico para a profissionalização e reestruturação dos clubes de futebol, aprimorando os requisitos de governança corporativa e protegendo os novos investidores de exposição a passivos. Com essa nova estrutura societária, os clubes que adotarem esse formato passam a ter a possibilidade de, assim como as demais sociedades anônimas, buscarem o registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como companhias abertas e/ou acessarem o mercado de capitais como forma de financiamento para suas atividades.
O Parecer de Orientação n° 41, publicado em 21 de agosto de 2023, busca esclarecer a perspectiva da CVM acerca da interpretação sistemática da Lei das SAF, a Lei das Sociedades por Ações e as regulamentações previamente editadas pela autarquia, bem como fornecer orientações específicas para as SAFs no âmbito de sua inserção no mercado de capitais.
Formação do capital social da SAF
Considerando que a Lei das SAF traz a possibilidade de integralização do capital social pelo clube ou pessoa jurídica original através de direitos sobre marca, uso de estádio, arena, instalações dedicadas à formação de atletas, direitos econômicos de atletas e outros, a CVM inicia o Parecer de Orientação consagrando que a formação do capital da SAF deverá atender ao disposto nos artigos 7º e 8º da Lei das Sociedades por Ações. Dessa forma, fica claro que quaisquer bens, tangíveis ou intangíveis, utilizados para integralização do capital social deverão ser suscetíveis de avaliação em dinheiro e que tal avaliação deverá ser realizada por três peritos ou empresa especializada.
Também nesse sentido, a CVM recomenda e reitera a necessidade de aderir às normas contábeis pertinentes ao mercado de valores mobiliários desde a etapa inicial de estabelecimento da SAF. Além disso, a recomendação é que um auditor registrado junto à CVM seja contratado para garantir a validação da avaliação dos ativos e passivos transferidos à sociedade.
Ações de emissão da SAF
Ainda em linha com a composição do capital social, vale relembrar que a Lei das SAF introduz uma exceção à proibição imposta às companhias de capital aberto quanto à emissão e manutenção de múltiplas categorias de ações ordinárias. Isso porque a SAF deverá possuir uma classe específica de ações ordinárias, denominada como Classe A, destinada exclusivamente à subscrição pelo clube ou pela pessoa jurídica original que criou a SAF e que envolverá direitos de voto específicos para a deliberação de determinadas matérias.
Desse modo, caso haja intenção de emitir ações ordinárias para subscrição por terceiros, a SAF poderá criar uma classe de ações ordinárias sem direito a voto plural e/ou em conformidade com a legislação aplicável, outra classe de ações ordinárias com direito a voto plural. Outra configuração possível é a manutenção de apenas uma classe de ação ordinária (Classe A) e a criação de uma espécie preferencial, sendo que esta não poderá ultrapassar 50% do total de ações emitidas pela SAF.
Nesse sentido, a CVM consagrou o entendimento de que as ações da Classe A não podem ser alienadas a terceiros e, portanto, não estarão admitidas à negociação. Dessa forma, a transação de compra e venda de ações Classe A só será permitida após a conversão dessas ações em preferenciais ou ordinárias comuns. No entanto, o titular de ações Classe A não está impedido de adquirir ações de outra espécie.
Poder de controle e governança corporativa
A Lei das SAF estabelece uma estrutura básica de governança para o funcionamento do novo subtipo societário. Assim, o Parecer de Orientação esclarece que a Lei das Sociedades por Ações se aplica de forma subsidiária a essa estrutura, exceto nos aspectos que sejam específicos para as SAFs, como, por exemplo, o estabelecimento obrigatório e de caráter permanente do Conselho Fiscal.
Nesse contexto, reitera-se que é proibida a acumulação dos cargos de Presidente do Conselho de Administração e Diretor-Presidente nas SAFs, com exceção àquelas que se enquadrem na definição de empresas de menor porte, e que a participação de membros independentes no Conselho de Administração da SAF é obrigatória.
A Lei das SAF traz uma obrigação aos acionistas que possuam mais de 5% do capital social da sociedade de enviar determinadas informações à SAF, especialmente com relação a seus controladores. A CVM reconhece que tal obrigação se assemelha ao disposto no art. 12 da Resolução CVM nº 44, relativo às companhias abertas no geral, e ressalta que, apesar de se tratarem de obrigações de conteúdos distintos, poderão ser simultaneamente cumpridas por um único ato de comunicação do acionista.
A SAF que opera como companhia aberta deverá fornecer, em complemento aos aspectos específicos abordados na Lei das SAF, as informações pertinentes no âmbito do formulário de referência, bem como promover a divulgação de comunicados ao mercado ou avisos de fatos relevantes, conforme as normas vigentes para companhias abertas no geral.
Acesso ao mercado de capitais
Uma variedade de possibilidades de ingresso ao mercado de capitais pelas SAFs é delineada pela CVM, abordando aspectos específicos de cada uma delas, as quais serão apresentadas a seguir:
- Abertura de capital e realização de ofertas públicas
A abertura de capital, seguida pela realização de uma oferta pública inicial de ações, é uma modalidade tradicional para a obtenção de recursos no âmbito do mercado de capitais. Desse modo, a CVM reitera em seu Parecer de Orientação a relevância do fluxo de investimentos oriundo desse processo, visto que possibilita às companhias – e agora, às SAFs – a expansão de suas operações, redução dos custos de capital e reestruturação de seu perfil de endividamento.
As SAFs que optarem por se registrarem como companhia emissora de valores mobiliários em mercados autorizados serão submetidas ao mesmo arcabouço regulatório aplicável às companhias abertas, especialmente no que diz respeito à Resolução CVM nº 80 e à Resolução CVM nº 160. Tais diretrizes desempenham um papel crucial ao aprofundar as exigências concernentes à transparência, à divulgação de informações e ao aperfeiçoamento das práticas de governança corporativa.
- Debêntures-fut
A Resolução CVM nº 160 regula as ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários, incluir dentre as quais as debêntures-fut, espécie de debêntures prevista no art. 26 da Lei das SAF. Nesse sentido, as SAFs que não possuam registro de companhia aberta na CVM poderão emitir e ofertar tais valores mobiliários, desde que a oferta seja destinada exclusivamente a investidores profissionais.
Já quando as debêntures-fut forem ofertadas sem restrição de público-alvo ou admitidas à negociação em mercados organizados de valores mobiliários, a SAF deverá observar, além da Resolução CVM nº 160, a regulação da CVM para as debêntures em geral, como as Resoluções CVM nº 77 e nº 81, que tratam, respectivamente, de aspectos relacionados à aquisição de debêntures de própria emissão e a assembleias de debenturistas.
No que diz respeito à recompra de debêntures-fut pela SAF ou por parte a ela relacionada, a autarquia ratificou o entendimento de que as SAFs serão autorizadas a recomprar as debêntures-fut de própria emissão ofertadas publicamente, desde que cumpram as disposições da Resolução CVM n° 77. Além disso, delimitou-se que a autorização para recompra das debêntures-fut não se aplica às circunstâncias de liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, as quais ainda carecem de regulamentação específica no panorama de mercado.
Vale ressaltar, ainda, que a SAF poderá emitir outros valores mobiliários previstos para emissão por sociedades anônimas, inclusive debêntures, desde que cumpra os requisitos legais e normativos aplicáveis.
- Crowdfunding de investimento
O crowdfunding se configura como uma alternativa viável para a obtenção de investimentos por parte de sociedades de pequeno porte, sendo que, para que a SAF se enquadre nessa categoria, deverá ter auferido receita bruta anual de até R$ 40.000.000,00 no exercício anterior à oferta. Ainda, considerando os critérios estipulados pela Resolução CVM n° 88, o limite máximo anual de captação para esse tipo de sociedade não poderá ser superior a R$15.000.000,00.
A principal vantagem associada a esse tipo de captação traduz-se na sua economicidade e simplificação, demandando um nível de disclosure significativamente reduzido quando comparado ao que se observa em ofertas públicas, por exemplo.
Entretanto, a adoção dessa modalidade de financiamento encontra-se limitada, uma vez que grande parte dos 40 clubes que compõem as Séries A e B do Campeonato Brasileiro, atualmente, registra um montante de receita superior ao montante máximo de receita do emissor de valores mobiliários passível de acesso a captação via crowdfunding.
- Fundos de investimento
As ações emitidas pelas SAFs que detêm registro de companhia aberta e estão listadas em mercados organizados podem ser objeto de investimento por parte de Fundos de Investimento em Ações. Além destes, os Fundos de Investimento em Participações (FIPs), os Fundos de Investimento Imobiliários e os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) também podem ser utilizados como veículos de investimento em valores mobiliários emitidos ou ativos originados pelas SAFs.
Especialmente no que diz respeito aos FIPs, vale ressaltar que o fundo deverá obter as autorizações e registros necessários junto à CVM, enquanto a SAF companhia fechada não precisa realizar esse procedimento. Assim, essa estrutura pode ser particularmente adequada para antecipar o recebimento de investimentos, em um momento que a SAF esteja se profissionalizando e se preparando para abrir seu capital. Ainda que os cotistas do FIP sejam investidores indiretos na SAF, há interesse em permitir que participem dos resultados ou da gestão da SAF.
Além disso, os Fundos de Investimento Imobiliário podem ser usados como veículos para captação de recursos para ativos imobiliários operados pela SAF, incluindo, por exemplo, a construção ou reforma de estádios e centros de treinamento e seu aluguel às SAFs, liberando recursos para que estas invistam em atividades-fim. Essa abordagem pode ser atrativa para os investidores, que têm a oportunidade de se tornarem “sócios indiretos” de tais empreendimentos, podendo receber parte do aluguel e outras receitas e retornos auferidos com a exploração destes ativos imobiliários.
- Securitização
As operações de securitização permitem que as SAFs antecipem o recebimento de direitos creditórios de sua titularidade por meio de sua cessão para FIDCs e companhias securitizadoras, as quais emitem cotas e certificados de recebíveis lastreados nos direitos creditórios transferidos pela SAF que serão, subsequentemente, distribuídos a investidores no mercado de capitais.
Essa ferramenta configura-se como um meio para adiantar a obtenção de valores referentes a diversas naturezas de ativos e atividades da SAF, abrangendo, por exemplo, recebíveis provenientes de verbas de publicidade, receitas de transmissões em televisão e plataformas de streaming, prêmios ou outras parcelas relativas a eventuais ligas, aluguel de propriedades, naming rights, receitas futuras de ingressos ou até mesmo transações de jogadores.
Divulgação de informações no contexto das ofertas e transparência
A CVM enfatiza a importância de que seja adotada cautela na elaboração da descrição dos fatores de risco associados às ofertas e aos emissores, bem como nos materiais relativos à oferta, com especial atenção à adoção de uma linguagem clara, concisa, objetiva e equilibrada. Essa orientação se aplica ao mercado regulado pela CVM como um todo, mas especialmente no que diz respeito às SAFs, uma vez que há um elemento relativo ao vínculo afetivo entre torcedores e seus clubes de futebol, que não é verificado nas demais companhias abertas. Também nessa linha, há a recomendação de inserir alertas destinados a mitigar o impacto emocional que pode influenciar o torcedor, buscando fomentar uma decisão de investimento consciente e informada.
Adicionalmente, a CVM destaca que a atenção da SAF no que diz respeito à comunicação com o público deve ser mantida também em suas divulgações regulares e eventuais, particularmente no caso de SAF que operam como companhias abertas, mesmo em contextos que não envolvam ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários.
No contexto das informações eventuais a serem divulgadas pela SAF, como comunicados ao mercado e fatos relevantes, a CVM reconhece que há desafios subjacentes à determinação das informações que devem ser sujeitas a divulgação para o mercado, uma vez que a atividade do futebol está sujeita a uma atenção intensa de jornalistas, influenciadores digitais, torcedores e outras partes interessadas, resultando em uma quantidade significativa de informações, notícias e especulações divulgadas diariamente na mídia. Dessa forma, as SAFs deverão avaliar minuciosamente os eventos e fatos que podem dar origem aos efeitos delineados no artigo 2º da Resolução CVM n° 44 para devida divulgação dos mesmos.
O parecer esclarece, por fim, que o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), estabelecido pela Lei das SAF, também deverá ser objeto de divulgação tempestiva e acompanhamento, por meio de comunicado a mercado ou aviso de fato relevante. Ressalta-se, ainda, que os meios de financiamento oferecidos pelo mercado de capitais – e exemplificados acima – poderão servir para financiamento do PDE.
Em conclusão, através da divulgação do Parecer de Orientação n° 41, a CVM detalha aspectos regulatórios relevantes para que os institutos trazidos pela Lei das SAF possam ser aplicados na prática, refletindo, inclusive, a compreensão crescente das potencialidades desse modelo para impulsionar o desenvolvimento e a modernização do mercado esportivo nacional.
Através da Sociedade Anônima do Futebol, os clubes podem buscar novas fontes de financiamento, melhorar sua gestão e atrair investidores, resultando em um ambiente mais profissionalizado e sustentável, explorando as possibilidades oferecidas pela modernização das estruturas esportivas.
Para mais informações sobre o tema, conheça as práticas de Mercado de Capitais e Fundos de Investimento do Mattos Filho.