Sociedade Anônima de Futebol: Ferramenta para a reestruturação dos clubes de futebol brasileiros
Em pouco mais de um ano, a lei que instituiu o novo tipo societário conhecido como “Sociedade Anônima do Futebol” viabilizou transações que inauguram uma nova etapa do mercado de futebol brasileiro
Em 6 de agosto de 2021, foi promulgada a Lei nº 14.193, criando um novo tipo societário no Brasil, denominado “Sociedade Anônima do Futebol”, bem como disciplinando outros assuntos relativos aos clubes de futebol no Brasil. O principal objetivo da lei é fornecer um arcabouço jurídico mais seguro para a transição do modelo organizacional do futebol profissional, passando de associações civis sem fins lucrativos para empresas, melhorando os requisitos de governança corporativa e protegendo os novos investidores de exposição aos passivos anteriores do clube de futebol.
Este artigo contém um breve histórico dos antecedentes que deram origem à nova lei (que chamaremos de Lei da SAF), suas principais características e as perspectivas por ela trazidas para a reestruturação financeira dos clubes de futebol no Brasil.
Breve Histórico
Historicamente, a maioria dos clubes de futebol no Brasil, incluindo os clubes de primeira linha, foram organizados como associações civis sem fins lucrativos. Na última década do século passado, grandes clubes de futebol brasileiros, como a Sociedade Esportiva Palmeiras, o Sport Club Corinthians Paulista, o Clube de Regatas Flamengo, entre outros, haviam se unido em parceria contratual a investidores institucionais que forneciam apoio financeiro e gerencial aos seus departamentos de futebol profissional, mas mantinham seu status legal como associações civis, enquanto outros dependiam apenas de modelos tradicionais de patrocínio publicitário. Por diferentes razões, esse modelo de parceria contratual não durou muito.
Durante os últimos 35 anos, o futebol evoluiu como negócio no Brasil, com os clubes auferindo receitas cada vez maiores com vendas de ingressos, direitos de transmissão, licenciamento de direitos e produtos e serviços auxiliares, direcionados às suas bases de torcedores. Esse aumento de capacidade financeira levou os clubes de futebol a aumentar os gastos com a contratação de jogadores de alto nível esportivo e a contratação de comissão técnica, incluindo o envolvimento em transferências internacionais complexas de e para o Brasil, além de participar mais de competições internacionais organizadas pela CONMEBOL, a confederação de futebol da América do Sul.
Todos esses fatores dificultaram o funcionamento dos departamentos de futebol profissional por meio de associações civis, que não contavam com equipes de gestão profissional e estruturas adequadas de governança corporativa para lidar com essa transformação. Como resultado, a maioria, se não todos, os principais clubes de futebol entraram em desequilíbrio financeiro, com dificuldade de honrar obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias, sem falar da falta de condições financeiras para montar equipes competitivas, por ter que vender direitos federativos sobre jovens jogadores promissores, provenientes de seus próprios elencos juniores, além de não serem financeiramente capazes de contratar jogadores de comprovado alto nível esportivo.
Todas as tentativas de retomada financeira foram dificultadas por questões de governança corporativa, uma vez que as associações civis geralmente não estão organizadas para permitir a tomada de decisão rápida, imprescindível para um ambiente profissional, ou, mesmo, para executar de forma disciplinada as ações definidas em um planejamento estratégico de longo prazo. Ademais, as perdas financeiras cada vez maiores e os fluxos de caixa negativos exigiam investimentos adicionais que os sócios de uma associação civil não são capazes ou não estão dispostos a fazer.
Considerando que as oportunidades de negócios no mercado de futebol profissional brasileiro são cada vez mais atraentes, os investidores profissionais têm se interessado em investir nele. Entretanto, esses negócios careciam de uma estrutura legal que garantisse uma melhor governança, bem como proteção contra os passivos pré-existentes, tópicos que a Lei da SAF veio a abordar.
Após a promulgação da referida Lei, clubes de futebol como Clube de Regatas Botafogo, Clube de Regatas Vasco da Gama, Esporte Clube Bahia e Cruzeiro Esporte Clube puderam estruturar seus respectivos veículos societários e vender suas participações de controle para investidores profissionais.
Principais Características das sociedades anônimas de futebol
As sociedades anônimas de futebol, ou SAFs, são veículos societários semelhantes às sociedades por ações. As regras que regem as sociedades por ações, particularmente a Lei nº 6.404/1976, são aplicáveis às SAFs em caráter supletivo, desde que não conflitantes com disposições específicas da Lei da SAF. O regime supletivo confere maior previsibilidade aos arranjos societários que utilizam esse modelo, bem como garante que as SAFs possam ter acesso ao mercado de capitais e emitir títulos de capital, como ações e bônus de subscrição, e títulos de dívida, como debêntures e notas comerciais. As instituições financeiras que atuam como depositárias de valores mobiliários também estão autorizadas a emitir certificados de depósito garantidos por títulos SAF.
As SAF estão sujeitas a requisitos próprios de governança corporativa, dado seu objeto social específico.
Ações classe A
As ações classe A poderão ser emitidas para o clube que constitui a SAF, com direitos de voto específicos estabelecidos no estatuto social para a deliberação de determinadas matérias, incluindo, obrigatoriamente, as seguintes:
- aprovação para a venda, oneração, cessão, transferência, doação ou alienação de bens imóveis ou direitos de propriedade intelectual concedidos pelo clube ou pela entidade fundadora à SAF a título de aumento de capital;
- reorganizações societárias ou empresariais, tais como fusões, cisões, incorporações de ações, incorporações de outras sociedades ou trespasse;
- dissolução, liquidação ou extinção da entidade;
- inscrição em uma competição oficial de futebol;
- mudança da sede para outro Município;
- alteração de denominação;
- modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores.
Para a aprovação das quatro primeiras matérias listadas acima, enquanto as ações ordinárias classe A corresponderem a 10% ou mais do capital social votante ou do capital social total, o consentimento do seu titular será necessário; para as demais, o consentimento do titular das ações classe A é necessário, independentemente de seu percentual de participação.
Restrições aos acionistas
Certas disposições da Lei da SAF são destinadas a prevenir conflitos de interesses no nível dos acionistas. O acionista controlador de uma SAF não pode deter ações de outra SAF. Qualquer acionista que detenha mais de 10% (dez por cento) das ações de emissão de uma determinada SAF, caso detenha ações de outra SAF, não poderá participar ou votar em assembleias gerais dessa outra SAF, e não poderá se envolver na administração dessa outra SAF, seja diretamente ou elegendo membros do conselho de administração e diretores.
Divulgação de acionistas relevantes
Qualquer entidade que detenha mais de 5% (cinco por cento) das ações do capital social de uma SAF deverá divulgar à SAF e à entidade responsável pela administração do futebol em âmbito nacional, no caso, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), seu nome, endereço e o beneficiário efetivo de suas participações societárias. A ausência desta divulgação impede o acionista de exercer direitos de voto, bem como receber dividendos e outras distribuições aos acionistas feitas pela SAF. Esta regra destina-se a prevenir qualquer descumprimento das restrições impostas aos acionistas da SAF.
Administração
A Lei da SAF prevê uma estrutura de gestão robusta para as SAFs. Todas as SAFs devem ter um Conselho de Administração e um Conselho Fiscal instalados e em funcionamento.
Há também regras destinadas a prevenir conflitos de interesses no nível da administração da SAF, estabelecendo certas restrições que têm de ser cumpridas pelos membros da administração da SAF.
Membros do conselho de administração, diretores ou membros do conselho fiscal de uma determinada SAF não podem ser:
- membro do conselho de administração, diretor ou membro do conselho fiscal de outra SAF ou de um clube de futebol que não seja aquele que constituiu a SAF;
- membro da administração ou de órgão de deliberação ou fiscalização de qualquer entidade que organize competições de futebol;
- atleta profissional ou gerente de equipe com um contrato válido e efetivo para atuar como atleta ou gerente;
- árbitro de futebol.
Administradores que também sejam associados e membros da administração da associação civil que controla a SAF não podem receber qualquer remuneração da SAF. Além disso, nenhum membro da administração da associação civil pode ser eleito como membro do conselho de administração, diretor ou membro do conselho fiscal da SAF. Estas regras asseguram que todos os membros da administração da SAF sejam formalmente independentes da associação civil fundadora e, portanto, não tenham que cumprir quaisquer deveres fiduciários perante a associação, sendo, portanto, livres para agir no melhor interesse da SAF.
Exposição a responsabilidades
A principal salvaguarda prevista pela Lei da SAF em relação à exposição a responsabilidade da SAF é que a SAF recém-criada não é responsável pelos passivos da associação civil, além das obrigações diretamente relacionadas às atividades específicas do seu objeto social, e que a SAF é responsável pelas obrigações que lhe são transferidas pela associação civil, no contexto de sua constituição e formação.
As obrigações de pagamento existentes anteriormente à constituição da SAF são devidas pela associação civil com as suas próprias fontes de receitas e, além disso, com os seguintes fundos que a SAF lhe transferirá:
- 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela SAF;
- 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outras remunerações recebidas pela associação civil na qualidade de acionista da SAF.
A lei estabelece que os pagamentos devidos aos jogadores, membros de comissão técnica e funcionários do departamento de futebol que foram incorridos antes da constituição e formação da SAF estão incluídos entre as obrigações que são devidas pela associação civil em uma das duas formas acima expostas.
Os membros do conselho de administração e diretores da SAF são pessoalmente responsáveis, de forma conjunta e solidária, pelas transferências de recursos para a associação civil para o pagamento desses compromissos financeiros. Na mesma linha, os membros da administração da associação civil são pessoalmente responsáveis, de forma conjunta e solidária, pelos pagamentos aos credores utilizando fundos recebidos da SAF.
Enquanto a SAF estiver fazendo as distribuições pontuais à associação civil para permitir o cumprimento de seus compromissos perante os credores, os ativos e receitas da SAF não podem ser penhorados ou afetados por ordens de bloqueio de qualquer natureza em processos judiciais iniciados por credores da associação civil por obrigações anteriores à constituição da SAF.
Regime Centralizado de Execuções
A Lei da SAF prevê um mecanismo específico, denominado Regime Centralizado de Execuções, para permitir a reestruturação do passivo e a proteção contra credores. Este instrumento está disponível para as associações civis que contribuem com ativos de futebol profissional para uma SAF. A associação civil pode apresentar pedidos para a centralização das ações de execução movidas contra ela em um juízo civil e um juízo trabalhista, protocolando pedido de Regime Centralizado de Execuções, que será concedido por um período de 6 (seis) anos em que todas essas ações judiciais de cobrança ou execução serão conduzidas nesses tribunais, seguindo uma classificação legal de pagamento de credores. Esse prazo é prorrogável por mais 4 (quatro) anos, no caso de a associação civil reduzir ao menos 60% (sessenta por cento) do seu passivo original.
A ordem de classificação dos credores é:
- idosos;
- pessoas com doenças graves;
- pessoas cujos créditos de natureza salarial sejam inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos;
- gestantes;
- pessoas vítimas de acidente de trabalho oriundo da relação de trabalho com o clube ou pessoa jurídica original;
- credores com os quais haja acordo que preveja redução da dívida original em pelo menos 30% (trinta por cento).
O Regime Centralizado de Execuções deve prever a ordem de preferência para os pagamentos, seguindo a ordem legal, com prioridade para o pagamento das obrigações trabalhistas. O endividamento estará sujeito a correção monetária de acordo com a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (SELIC), publicada pelo Banco Central do Brasil.
Os créditos podem ser convertidos em ações da SAF a critério do credor, de acordo com as disposições do estatuto social da SAF. Os credores trabalhistas e civis podem concordar com um abatimento, e os credores trabalhistas podem ceder seus créditos a terceiros sem perder a prioridade na classificação, desde que a associação civil e o tribunal centralizador sejam notificados da cessão.
Enquanto a associação civil estiver cumprindo com seus compromissos perante os credores de acordo com o Regime Centralizado de Execuções, os bens e receitas da associação civil não poderão ser penhorados ou objeto de ordens de constrição no âmbito de qualquer processo judicial iniciado por seus credores.
Após o término do prazo do Regime Centralizado de Execuções, a SAF será subsidiariamente responsável pelas obrigações da associação civil incorridas antes da constituição da SAF. A SAF poderá se eximir desta responsabilidade com o consentimento dos credores no Regime Centralizado de Execuções.
Mecanismos da Lei de Falências
A Lei da SAF deixa claro que os mecanismos de reestruturação sob a Lei de Falência e Recuperação Judicial podem ser utilizados pelas associações civis que são clubes de futebol, além do Regime Centralizado de Execuções. Os contratos com jogadores de futebol não são automaticamente rescindidos no caso de uma recuperação judicial ou pedido de recuperação extrajudicial ser protocolado, e tais contratos podem ser atribuídos à SAF formada pelo clube de futebol.
Debêntures-Fut
As SAFs estão autorizadas a emitir instrumentos especiais de dívida, as debêntures-fut. Estes instrumentos são uma espécie de debêntures e os recursos captados com sua emissão devem ser usados pela SAF para financiar o funcionamento das atividades do futebol profissional, observadas certas características particulares, tais como:
- remuneração por taxa de juros não inferior ao rendimento anualizado da caderneta de poupança, que pode ser acrescida de uma remuneração variável vinculada ou referenciada às atividades ou ativos da SAF;
- prazo igual ou superior a 2 (dois) anos;
- pagamentos periódicos de juros;
- não são permitidos resgates e recompras, exceto conforme regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM);
- registro das debêntures-fut em serviço de custódia autorizado pela CVM.
O Projeto de Lei original previa certas vantagens fiscais aos adquirentes da debêntures-fut, semelhantes às aplicáveis ao regime das debêntures de infraestrutura, mas esse dispositivo foi vetado.
Perspectivas futuras para a reestruturação dos clubes de futebol
Em nossa opinião, a Lei da SAF estabelece uma alternativa viável para a reestruturação financeira dos clubes de futebol e concede proteção adequada aos novos investidores profissionais contra a exposição à responsabilidade por obrigações incorridas antes do seu investimento.
A aplicação subsidiária da Lei das Sociedades por Ações às SAF garante a aplicação de um regime legal consolidado e bem testado para o acesso ao mercado de capitais, que pode ser um mecanismo importante para facilitar a reestruturação da associação civil original. Ao emitir títulos de dívida e ações ao público, a SAF poderá financiar as suas operações, gerando receitas e lucros que serão utilizados para o pagamento dos passivos da associação civil original.
Os magistrados, em particular aqueles pertencentes à Justiça do Trabalho, que tradicionalmente tem uma visão ampliativa sobre a responsabilidade subsidiária e por sucessão, desempenharão um papel crucial na aplicação das disposições da Lei da SAF. A Lei da SAF assegura que a SAF recém-criada deve ser protegida dos passivos do clube, que serão solucionados em Regimes Centralizados de Execuções ou em processos de recuperação judicial ou extrajudicial. O respeito a essa segregação é fundamental para permitir um ambiente seguro e previsível para o investimento no futebol profissional no Brasil.
Embora alguns tribunais trabalhistas estejam, atualmente, inclinados para uma posição contrária ao escopo e ao princípio da Lei, o que se espera seja revertido em instâncias superiores, pode-se dizer que o marco legal estabelecido pela Lei da SAF desde já é um marco histórico, ao fomentar o investimento em muitos clubes endividados, com mais desenvolvimentos ainda por vir, e ao aprimorar o ambiente jurídico para o desenvolvimento do futebol profissional no Brasil.
Para mais informações, conheça as práticas de Contencioso e Arbitragem e Mercado de capitais do Mattos Filho.