Cade discute critérios para a determinação de grupos econômicos
Dosimetria de multa de gun jumping e sinalizações envolvendo aquisição de ativos e operações de project finance são outros temas que marcam discussões recentes em controle de concentração
O Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) discutiu, em abril de 2024, um caso envolvendo as empresas Digesto e JusBrasil (Ato de Concentração n°. 08700.000641/2023-83) em que, novamente, houve um extenso debate sobre a interpretação do artigo 4° da Resolução 33/2022 para fins de determinação do grupo econômico e, consequentemente, cálculo do faturamento.
O caso trouxe elementos adicionais relevantes, em especial ao esclarecer, de forma expressa, que o ponto de partida para configuração do grupo econômico é a identificação das partes diretamente envolvidas na operação. Se for uma empresa, o conceito de grupo econômico a ser aplicado será aquele previsto no parágrafo 1° do referido artigo 4; se for um fundo de investimento, deverá ser aplicado o parágrafo 2° desse artigo. No caso específico, o Tribunal do Cade entendeu que as partes diretamente envolvidas na operação eram as empresas que haviam celebrado o SPA (e não seus investidores) e, com isso, aplicaram a regra constante do parágrafo 1°.
O voto do Conselheiro-Relator Victor Fernandes trouxe novamente à tona a discussão sobre o tratamento a ser dado ao acionista que detenha 20% ou mais de participação na parte diretamente envolvida na operação e parece indicar que apenas a participação de 20% poderia não ser suficiente para presumir que esse acionista teria controle (ainda que compartilhado) sobre a empresa investida. No caso, houve a análise concreta dos diretos de governança detidos pelos acionistas e a conclusão foi no sentido de que esses direitos (os quais foram mantidos como confidenciais na decisão), somados à participação 20%, seriam suficientes para configurar controle para os fins de configuração de grupo econômico.
O voto também se destacou por trazer uma análise histórica de direitos que já foram considerados pela Superintendência-Geral do Cade (SG), em outros casos, como relevantes para a análise de controle. O Tribunal do Cade optou por não discutir especificamente cada um desses direitos, porém destacou que se trata de tema relevante e que deve ser objeto de discussão no futuro.
Tribunal do Cade discute critérios e limites para dosimetria de multa por gun jumping
O primeiro semestre de 2024 foi marcado por uma série de discussões interessantes sobre a dosimetria para o cálculo de multas em casos de gun jumping.
Em caso recente, o Tribunal do Cade discutiu a possibilidade da aplicação de um teto de 20% sobre o valor da operação para a fixação de multa por gun jumping, no contexto de operação envolvendo a aquisição, pela Kurumá, de ativos tangíveis e intangíveis da Govesa, implementada em 2017 e notificada ao Cade apenas em 2019 (APAC n° 08700.005463/2019-09).
O Conselheiro-Relator Gustavo Augusto havia inicialmente proposto uma multa que representaria, na prática, um montante superior a 30% do valor da operação. Os Conselheiros José Levi e Diogo Thomson, em voto proferido de forma conjunta, propuserem a modulação (e consequente redução) desse valor por entenderem que o montante orginalmente sugerido não atenderia aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. No voto apresentado, os conselheiros propuseram a aplicação, por analogia, do mesmo percentual máximo que a Lei de Defesa da Concorrência estabelece para multas por outras infrações à ordem econômica. O Tribunal acatou, por unanimidade, a aplicação do referido teto, ressalvando, porém, que isso era justificado naquela situação específica, mas que poderia não ser aplicável em outros casos – em especial se houver evidências que: as empresas agiram de má-fé; o valor da operação for simbólico, cartorial ou irrisório; ou se a operação gerar um significativo dano ao mercado.
Em outros dois casos, envolvendo a constituição de joint ventures (APACs n° 08700.009028/2023-21 e 08700.009331/2023-80), os Conselheiros-Relatores Diogo Thomson e Carlos Jacques, respectivamente, fizeram observações relevantes sobre a necessidade de se verificar os recursos – tangíveis e intangíveis – necessários para o desenvolvimento da joint venture, ou o real aporte feito pelas empresas (e não apenas o valor do capital social do veículo constituído) para se atribuir um valor à operação no caso de joint ventures greenfield. No segundo caso, diante das particularidades existentes (em especial o fato de que a joint venture ainda não havia entrado em operação), o relator aceitou a modulação desse critério, de forma a garantir a proporcionalidade da multa.
Por fim, em caso recente envolvendo a operação global entre Agrofert e Borealis Nitro (APAC n° 08700.006175/2023-40), o Tribunal do Cade acatou o voto do Conselheiro-Relator Diogo Thomson que havia concluído pela necessidade de se atribuir um valor proporcional à operação, que refletisse a pequena representatividade dos negócios brasileiros das partes dentro do contexto de uma operação global, de forma a garantir a proporcionalidade da multa imposta.
Trata-se de precedentes importantes que sinalizam que o Tribunal está aberto a apreciar e analisar as peculiaridades de cada caso concreto, fazendo uso da previsão que já existe na Resolução nº 24/2019 e que permite que os critérios para a dosimetria da multa sejam modulados, de forma a garantir a razoabilidade e a proporcionalidade da multa imposta.
SG discute critérios de notificação de aquisição de ativos no setor imobiliário
A SG tem proferido diversas decisões relacionadas à aquisição de ativos no setor imobiliário. Em duas operações de aquisição de imóveis não operacionais do Grupo Carrefour (onde anteriormente havia lojas de hipermercado e atacarejo), a SG concluiu que essas transações não configuravam ato de concentração e que, portanto, não haveria necessidade de notificação, baseando seu entendimento nos seguintes fatos:
- Comprador não tinha atuação em atividades que até então era desempenhadas no imóvel (exploração de lojas de hipermercado ou atacarejo);
- Ativo não foi considerado essencial para a atividade que o comprador pretendia desenvolver no imóvel (a qual foi mantida confidencial);
- Imóvel precisaria de modificações estruturais e investimentos relevantes antes de poder ser utilizado pelo comprador;
- Sem os investimentos previstos, o imóvel não geraria incremento de capacidade produtiva para o comprador no estado em que se encontrava (Atos de Concentração n° 08700.001216/2024-92 e n° 08700.000735/2024-33).
Já em um ato de concentração posterior, a SG conheceu uma operação de aquisição de imóvel por empresa atuante no setor de incorporação imobiliária. Com base nas informações públicas do processo, essa incorporadora adquiriu tal imóvel para a construção e comercialização de um empreendimento imobiliário residencial, razão pela qual a SG entendeu que o referido imóvel deveria ser visto como um ativo essencial para a atividade de incorporação imobiliária do comprador, ainda que houvesse necessidade de investimentos posteriores. Diante disso, a SG entendeu que tal aquisição deveria ser considerada como um ato de concentração de notificação obrigatória. (Ato de Concentração n° 08700.002034/2024-39).
Outro caso que merece destaque trata da aquisição de galpões logísticos por uma distribuidora de bebidas, que já alugava esses imóveis (os quais eram integrados à sua fábrica). A SG entendeu que esses galpões tinham caráter acessório à atividade-fim da compradora (fabricação e comercialização de bebidas) e que, portanto, não haveria incremento da sua capacidade produtiva (Ato de Concentração n° 08700.001580/2024-52), razão pela qual tal operação não teria sido considerada como um ato de concentração sujeito à notificação obrigatória. Trata-se de entendimento importante da SG, pois, no passado, a autoridade havia considerado que o uso do galpão pelo comprador indicaria que a operação poderia ao menos manter a capacidade produtiva deste (Ato de Concentração n° 08700.005698/2023-79).
Esses precedentes parecem sinalizar uma tendência de a SG continuar avaliando com bastante cautela as operações de aquisições de imóveis, sendo a atividade do comprador (e seu grupo econômico) e a atividade a ser exercida naquele imóvel fatores essenciais para a análise sobre a sua configuração como ato de concentração e, consequentemente, a obrigatoriedade de sua notificação prévia. Nesse sentido, permanece de suma importância a análise dos elementos de cada operação específica para que possa concluir pela necessidade ou não de notificação prévia ao Cade.
SG conclui pela obrigatoriedade de notificação prévia de operação de project finance
A SG aprovou recentemente uma operação envolvendo as empresas Mitsui, MOL MPIC e MV32 (Ato de Concentração nº 08700.001537/2024-97), em que houve uma discussão relevante sobre os critérios para a configuração de uma operação similar a um empréstimo como um ato de concentração, à luz da legislação concorrencial brasileira. Segundo as partes, a operação versava sobre um project finance, mecanismo de financiamento que tem sido utilizado globalmente para projetos de infraestrutura, especialmente de grande escala. A MV32 teria sido criada especificamente para deter, operar e manter uma unidade FPSO (floating production storage and offloading unit), no campo de Búzios, objeto de licitação pública promovida pela Petrobrás. A entrada da Mitsui, MOL e MPIC nessa sociedade teria o único propósito de financiar o projeto, sem papel ativo na condução dos negócios e decisões comerciais da empresa-alvo.
As partes também argumentaram que, ainda que o Cade discordasse dessa interpretação, a operação seria, em última instância, equivalente a uma joint venture que prestaria serviços contratados por meio de licitação pública feita pela Petrobrás e que, por isso, se beneficiaria da isenção prevista na lei de defesa da concorrência, segundo a qual não precisam ser notificados ao Cade os atos de concentração destinados às licitações promovidas pela administração pública direta e indireta e aos contratos delas decorrentes.
A SG discordou de ambos os argumentos e considerou que os documentos relacionados à operação indicavam uma aquisição de parte da empresa alvo (MV32) e não uma joint venture especificamente criada para participar de licitação pública. Além disso, entendeu que o Acordo de Acionistas que seria celebrado entre Mitsui, MOL e MPIC acarretava participação ativa desses acionistas na MV32, e não mera situação de credor. No entender da SG, os direitos desses acionistas ultrapassam a mera proteção de um investimento financeiro, configurando uma aquisição de controle compartilhado por parte da Mitsui, MOL e MPIC. Como a operação teria ocorrido em 2019, a SG a aprovou sem restrições, porém instaurou um procedimento para a aplicação de multa em decorrência da consumação prévia (gun jumping).
Esse precedente demonstra os cuidados que as empresas envolvidas em operações de project finance devem adotar, tanto na estruturação dos documentos societários e quanto na avaliação da eventual necessidade de notificação prévia ao Cade.
Cade recebe as primeiras notificações de atos de concentração realizadas por meio do sistema “E-Notifica”
Como mencionado na edição anterior, a SG lançou em dezembro do ano passado o e-Notifica, um novo sistema eletrônico de notificação de atos de concentração sob o rito sumário. Em abril deste ano, o Cade recebeu a primeira submissão pela nova ferramenta.
A operação consistiu na aquisição, por fundos geridos ou assessorados por Arbour Lane, Fortress Credit, Gamut Capital e Silver Point, de cerca de 96% das ações em circulação da Petmate (Ato de Concentração nº 08700.002147/2024-34) e a decisão de aprovação sem restrições foi publicada em um prazo de apenas dois dias. Nos meses de maio e junho, a SG recebeu novas notificações via e-Notifica e tem fomentado ativamente a adoção do sistema especialmente por permitir que a autoridade elabore com mais celeridade as decisões de aprovação de operações mais simples do ponto de vista concorrencial.
Para mais informações sobre os temas, conheça a prática de Direito concorrencial do Mattos Filho.