

Reforma do Código Civil: principais mudanças relacionadas à decadência e prescrição
Alterações podem ter impactos relevantes para as discussões envolvendo responsabilidade civil
As alterações propostas pela Comissão de Juristas, encarregada de revisar e atualizar o Código Civil, abrangem o tema de prescrição e decadência. De acordo com a justificação do anteprojeto, tais mudanças teriam o objetivo de “atribuir segurança e estabilidade às relações jurídicas, para evitar o prolongamento excessivo do estado de incerteza”. Contudo, algumas dessas alterações, caso sancionadas, poderão promover efeito inverso, capazes de gerar insegurança jurídica. Veja a seguir alguns exemplos das alterações propostas no anteprojeto.
Positivação da teoria da actio nata subjetiva
Ao interpretar a atual redação do art. 189 do Código Civil, prevalece o entendimento de que foi positivada a teoria objetiva da actio nata. De acordo com essa corrente, o termo inicial do prazo prescricional é a data da violação do direito do titular, independentemente de quando o sujeito titular do direito teve conhecimento dessa violação, critério este relevante apenas para a teoria subjetiva da teoria da actio nata.
A redação proposta pela Comissão de Juristas mantém a aplicação da teoria objetiva da actio nata para as hipóteses de responsabilidade civil contratual, acrescentando parágrafo primeiro ao art. 189 que prevê que “(o) início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo.”
Todavia, para os casos de responsabilidade civil extracontratual, a Comissão de Juristas propõe a aplicação da teoria subjetiva da actio nata, condicionando o início do prazo da prescrição ao conhecimento do titular do direito sobre o dano sofrido e quem o causou. A proposta é incluir um parágrafo segundo ao art. 189 do Código Civil, com a seguinte redação: “(…) nos casos de responsabilidade civil extracontratual, a contagem do prazo prescricional inicia-se a partir do momento em que o titular do direito tem conhecimento ou deveria ter, do dano sofrido e de quem o causou”.
Ao submeter o início da fluência do prazo prescricional a esses dois eventos de difícil comprovação, a proposta contraria a razão de ser da prescrição: dar estabilidade às relações sociais, segurança jurídica e evitar o prolongamento excessivo do estado de incerteza. Além de fomentar insegurança jurídica, a norma proposta traz uma importante consequência prática: postergar o início do curso do prazo prescricional, até que o titular saiba da violação ao seu direito e quem a causou.
A Comissão de Juristas sugeriu, por meio da inclusão do §3º ao art. 189 do Código Civil, que, independentemente do termo inicial do prazo da prescrição nos casos de responsabilidade civil extracontratual, o seu termo final não excederá o prazo de dez anos, contados da data da violação do direito.
Embora a sugestão seja bem-vinda, ao introduzir um limite temporal ao prazo prescricional sujeito à teoria subjetiva da actio nata, ela não afasta a fragilidade da redação sugerida. O texto proposto poderá gerar debates futuros em situações limítrofes: por exemplo, se o titular do direito violado, em caso de responsabilidade civil extracontratual, tiver ciência do dano e sua autoria às vésperas ao término do prazo máximo de dez anos, terá ele que exercer sua pretensão antes do fim desse prazo decenal; ou, a partir da ciência do dano e da autoria, ele terá mais cinco anos para exercê-la, por ser esse o prazo previsto no art. 205 para pretensões de responsabilização civil extracontratual?
Parece-nos que a primeira linha interpretativa deveria prevalecer, pois o texto proposto ao §3º do art. 189 do Código Civil estabelece que “independentemente do termo inicial”, o termo final da prescrição não pode exceder dez anos contados desde a data de violação ao direito. Porém, é inegável que essa regra tende a fomentar discussões relevantes. Por exemplo, no caso de o titular do direito tomar conhecimento do dano e de seu autor após sete anos desde a ocorrência da violação ao direito, restaria a ele apenas mais três anos para exercer sua pretensão, de modo a não exceder o prazo máximo de dez anos fixado no art. 189, §3º, do Código Civil, malgrado o parágrafo único proposto pela Comissão de Juristas ao art. 205 do Código Civil passe a prever prazo prescricional de cinco anos à pretensão de responsabilização civil extracontratual.
Essa discrepância evidencia o potencial para conflitos interpretativos, sobretudo em casos em que o prazo máximo de dez anos limita a integralidade do prazo específico de cinco anos previsto para essas pretensões. Essa situação compromete a segurança jurídica, agravada pela possibilidade de interpretações divergentes nos Tribunais. Assim, não se pode descartar a possibilidade de os Tribunais interpretarem que o prazo prescricional de cinco anos somente teria início a partir da ciência do dano e de sua autoria, ainda que o termo final ultrapasse o prazo máximo de dez anos. Essa interpretação poderia, na prática, prolongar o prazo prescricional para até quinze anos, na hipótese de ciência tardia do dano e de seu autor pelo titular do direito.
Prazo geral de prescrição e prazo aplicável à reparação civil
O art. 205 do Código Civil prevê o prazo prescricional geral de dez anos, aplicável sempre que não for excepcionado por prazo menor de maneira específica em lei. A Comissão de Juristas, entretanto, propôs alteração significativa: modificar a redação do caput do art. 205 para reduzir o prazo prescricional geral a cinco anos e incluir parágrafo único no mesmo artigo, estipulando que o prazo geral seja aplicável às pretensões de reparação civil derivadas da responsabilidade contratual; às derivadas da responsabilidade extracontratual; e à pretensão de ressarcimento por enriquecimento sem causa. Essa modificação procura resolver controvérsia jurisprudencial sobre os prazos aplicáveis a cada uma dessas três situações.
Para ilustrar a jurisprudência atual, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento dos EREsp 1.280.825/RJ e 1.281.594/SP, consolidou o entendimento de que as pretensões de indenização por responsabilidade civil extracontratual estão sujeitas ao prazo prescricional de três anos, previsto no art. 206, §3º, V, do Código Civil; e as pretensões de indenização por inadimplemento de obrigações contratuais (responsabilidade civil contratual) seguem o prazo geral de dez anos, na ausência de regra legal específica.
Além disso, o STJ, no julgamento dos EREsp 1.523.744/RS, decidiu que o art. 206, §3º, IV, do Código Civil, que prevê o prazo prescricional de três anos a hipóteses de enriquecimento sem causa, deve ser interpretado de forma restritiva, sendo aplicável a apenas casos subsidiários de pretensão in rem verso, que não tenham por causa jurídica relação contratual. Nos demais casos de pretensão in rem verso, em que o pedido de repetição de indébito por enriquecimento sem causa for fundamentado em relação contratual, o prazo prescricional aplicável é o geral, atualmente de dez anos e que passará a cinco, se prevalecer a proposta da Comissão de Juristas.
A uniformização do prazo prescricional para responsabilização civil contratual e extracontratual poderia ser uma medida benéfica. Contudo, ao estabelecer diferentes marcos iniciais para o início do prazo — adotando a actio nata objetiva para a responsabilidade contratual e a subjetiva para a extracontratual —, a proposta compromete a efetividade da uniformidade pretendida. Essa diferenciação não apenas resulta em prazos prescricionais potencialmente distintos, mas também introduz um elemento de insegurança jurídica, em razão da adoção da actio nata subjetiva para a responsabilidade civil extracontratual.
Antinomia de vetores
A Comissão de Juristas propõe, como um de seus vetores principais, a redução dos prazos prescricionais. Contudo, essa proposta carece de embasamento em dados e estudos que demonstrem sua pertinência, além de aprofundar a já significativa redução de prazos introduzida pelo Código Civil de 2002, em comparação ao texto de 1916. Reduções excessivas, em vez de beneficiarem o sistema de Justiça, podem prejudicar a efetividade da tutela estatal, inviabilizando a proteção de direitos violados simplesmente em razão do tempo.
Paradoxalmente, a mesma Comissão de Juristas sugere a positivação da teoria da actio nata subjetiva às pretensões advindas de responsabilidade civil extracontratual, vinculando o início do prazo prescricional não apenas ao momento em que o titular toma ciência da lesão, mas também ao conhecimento do autor do dano. Na prática, essa escolha legislativa tende a prolongar o período para o exercício da pretensão, o que contraria o objetivo subjacente à proposta de redução de prazos. Além disso, a medida tende a estimular a judicialização e a intensificar a instabilidade nas relações jurídicas, comprometendo a segurança jurídica e a eficiência que deveriam ser promovidas pela reforma.
Alterações em relação aos prazos decadenciais
A Comissão de Juristas também propôs alterações ao art. 178 do Código Civil, incluindo um parágrafo único, com a seguinte redação: “(e)m se tratando de anulabilidade de atos ou negócios jurídicos que admitam registro, o prazo decadencial será contado deste ou de sua ciência, o que ocorrer primeiro”.
A redação pode gerar discussão por empregar a expressão “que admitam registro”. Essa redação abre margem a um debate sobre qual seria o termo inicial do prazo de decadência para anulação de negócios ou atos jurídicos que podem ser registrados, mas cujo registro não é obrigatório. Fica incerto se a contagem do prazo deve começar da data de celebração do negócio jurídico/da prática do ato, ou da data de seu registro (ou de sua ciência, se ela ocorrer primeiro).
A alteração ainda acrescenta um inconveniente elemento de subjetividade, pela dificuldade de se provar quando ocorreu a ciência do ato ou do negócio jurídico que se pretende anular.
A mesma crítica pode ser feita às alterações propostas ao art. 48 do Código Civil. Atualmente, esse dispositivo prevê que, se a pessoa jurídica tiver administração coletiva, suas decisões serão tomadas pela maioria de votos dos presentes, salvo se o ato constitutivo dispuser de modo diverso, decaindo em três anos o direito de anular tais decisões quando violarem a lei ou o estatuto, ou forem eivadas de erro, dolo, simulação ou fraude.
A proposta da Comissão de Juristas substitui a previsão de violação à lei ou ao estatuto, para estabelecer que o prazo decadencial de três anos se aplica à pretensão de anular decisões emanadas de incapaz relativo ou eivadas por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores (§1º). Além disso, estabelece que o prazo terá início da publicação do ato de administração coletiva ou de sua ciência (§2º). No entanto, a inclusão da ciência como marco inicial do prazo decadencial introduz dificuldades pelo subjetivismo, potencializando incertezas pela dificuldade prática de sua comprovação.
Outras alterações
A Comissão de Juristas também propôs outras alterações referentes aos institutos da prescrição e decadência, por exemplo:
- Não corre a prescrição em detrimento dos relativamente incapazes enquanto não lhes for dado assistente (art. 198, inciso I);
- O prazo prescricional pode ser interrompido somente uma vez, exceto quando tal interrupção decorrer do despacho que ordena a citação (art. 202, I e §2º);
- Inclusão de previsão para as pretensões do dono da mercadoria postular indenização sobre perdas e avarias das coisas transportadas e do transportador indenizar-se pelos prejuízos que sofrer, que se sujeitarão ao prazo prescricional de dois anos (art. 206, §2º, VI e VII);
- A pretensão para haver prestações alimentares terá prazo prescricional alterado de dois para três anos (art. 206, §3º, I);
- As pretensões relativas à tutela e para exigir recompensa estipulada passam a se sujeitar ao prazo prescricional de três anos, em vez dos quatro anos previstos atualmente (art. 206, §3º, incisos X e XI).
Para saber mais sobre os temas, conheça a prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.