IA e pesquisa e desenvolvimento: cautelas sob a perspectiva da propriedade intelectual
As ferramentas de inteligência artificial ocupam um papel importante em processos de pesquisa e desenvolvimento de grandes setores do mercado, sendo relevante avaliar os possíveis riscos envolvidos
Ferramentas de inteligência artificial (IA) já fazem parte do nosso dia a dia. Através da coleta, processamento e armazenamento de dados, elas são capazes não só de desempenhar atividades cotidianas mas, também, de contribuir com grandes inovações, possuindo enorme potencial de intensificar o avanço tecnológico.
Assim, a IA hoje é utilizada em todas as áreas da ciência e da tecnologia, desde a engenharia básica até a produção de medicamentos. Não por outro motivo, nos últimos anos o mercado tem investido no uso destas tecnologias e estima-se que essas ferramentas podem movimentar até $13 trilhões da economia mundial nos próximos anos.
Uso de ferramentas de IA em pesquisa e desenvolvimento
Ferramentas de IA podem contribuir com diversas frentes na gestão de inovações e no processo de pesquisa e desenvolvimento. Funcionalidades como modelos deep learning (em que grandes volumes de dados são analisados para a identificação de padrões e resolução de problemas sem intervenção humana), processamento de linguagem natural (conhecida por “NLP”, conjunto de técnicas que possibilitam a compreensão da linguagem humana) e visão computacional (voltada à análise de imagens e vídeos, emulando-se a visão humana) podem ser empregadas para possibilitar o mapeamento de tendências, scouting de novas tecnologias, e criação e design de testes e produtos, otimizando processos.
Um exemplo de indústria com grande potencial para o uso de ferramentas de IA é a de saúde. Essas tecnologias podem contribuir com a automação do processo de produção e aplicações clínicas (como imagens médicas e robôs cirúrgicos) e no diagnóstico de doenças, inclusive para auxiliar o fortalecimento da telemedicina.
Além disso, o processamento rápido e simultâneo de informações armazenadas em grandes bancos de dados é capaz de aumentar a eficiência da produção e planejamento farmacêutico, que, tradicionalmente, pode levar mais de uma década e necessitar de investimentos substanciais.
A princípio, o uso de ferramentas de IA é aplicável a todas as facetas da produção farmacêutica, como a descoberta e seleção de novos fármacos, controle de qualidade e diminuição dos riscos à saúde relacionados a ensaios pré-clínicos e previsão da demanda e gestão da cadeia de suprimentos. Inclusive, não é difícil imaginar que os resultados do emprego de IA possam vir a ser patenteáveis. Em nosso primeiro artigo da série “Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial”, introduzimos alguns aspectos importantes sobre a titularidade de conteúdos criados com o uso de IA.
O uso de ferramentas de IA e a propriedade intelectual
Ainda assim, a utilização de IA em pesquisa e desenvolvimento requer cautelas para se evitar que seus promissores resultados sejam comprometidos por pendências legais. Uma das principais questões é a preocupação com a fonte dos dados utilizados, já que, no processo de coleta de dados e informações, as plataformas muitas vezes são alimentadas por materiais protegidos por direitos de terceiros, como direitos de propriedade industrial, de imagem e direitos autorais.
No Brasil, a partir de interpretação da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998 – LDA), as obras disponíveis na internet se sujeitam aos mesmos princípios e regras adotados para obras em suporte físico. Eventual uso irregular de obras protegidas por direitos autorais sujeita os infratores à aplicação das penalidades cabíveis em lei, inclusive sanções criminais previstas no art. 184 do Código Penal.
Logo, caso se pretenda utilizar uma determinada publicação, biblioteca de código-fonte ou base de dados (que, no Brasil, é passível de proteção por direitos autorais) disponível na internet, é recomendável verificar as condições dessa disponibilização e a necessidade de obtenção de autorização pelo seu autor/titular. Ainda que o autor/titular ofereça o conteúdo mediante licenças Creative Commons, Open Source ou Copyleft, podem existir restrições para a comercialização ou criação de trabalhos derivados.
Questionamento e direitos autorais
Importante ressaltar que, atualmente, três casos judicializados questionam a utilização de obras alheias em modelos de machine learning, sendo uma ação judicial proposta por artistas nos Estados Unidos e duas ações judiciais propostas por uma empresa no Reino Unido e nos Estados Unidos. Segundo os autores das ações, o treinamento não autorizado de IA a partir do uso de obras protegidas por direitos autorais violaria esses direitos. Em paralelo, no âmbito da proposta de regulamentação de IA na União Europeia (que também ocorre no Brasil), discute-se se os desenvolvedores de chatbox (como o ChatGPT) deveriam informar publicamente quando utilizarem materiais protegidos por direitos autorais, possibilitando aos seus titulares a reivindicação do pagamento de royalties.
De outro lado, há quem defenda que o uso de obras alheias nessas circunstâncias deveria ser livre e sem custos, seja sob a justificativa de que não há utilização das obras em si, apenas aproveitamento delas como uma “inspiração” de conteúdo ou estilo, seja por aplicação da doutrina de fair use e limitações do direito de autor, já que as obras constituiriam meros dados utilizados para que a IA gere um novo conteúdo distinto do original (uso transformativo). Não haveria, assim, colagens ou reproduções de material alheio.
De toda forma, vale lembrar que a LDA também admite exceções aos direitos autorais, como ocorre na reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas (caso essa reprodução não seja o objetivo principal de obra nova e não prejudique a exploração normal da obra reproduzida ou cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores), uso em paráfrases ou paródia (caso não constituam reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito) e a citação de passagens de qualquer obra para fins de estudo, crítica ou polêmica, mediante indicação do nome do autor e origem da obra.
Coleta de dados e redes sociais
Além disso, outro ponto a se considerar no uso de ferramentas de IA é a possibilidade de a coleta de dados esbarrar em proibições contidas nos termos de uso de redes sociais. Em um caso importante dos Estados Unidos, uma ação judicial foi movida contra uma empresa que oferece soluções de IA e que coletava informações publicamente disponíveis em uma rede social para analisar e prever a probabilidade de funcionários trocarem de empregos. Após anos de litígio, a justiça americana decidiu que a extração de dados de perfis públicos por parte da empresa violava os termos de uso da plataforma, sendo, portanto, uma prática ilegal.
Por fim, as cautelas acima se aplicam, também, aos resultados efetivamente gerados por uma IA considerando que, por coincidência ou “inspiração exagerada”, estes podem se aproximar de criações ou invenções já existentes e, portanto, violar direitos de terceiros. O fato de o resultado ter sido fruto de uma IA, que não detém personalidade jurídica, não é suficiente para afastar eventuais ilícitos. Embora os detalhes da responsabilidade civil ainda estejam sendo discutidos na legislação que regulamentará IA no Brasil, ela sempre recairá sobre uma pessoa natural ou jurídica relacionada ao uso efetivo da inteligência artificial.
À medida que o acesso e conhecimento sobre IA se popularizam, a tendência é que surjam cada vez mais players no mercado oferendo soluções e mecanismos para simplificar e otimizar tarefas essenciais e complexas. Assim, é preciso estar atento às novas transformações e ponderar a praticidade e eficiência das ferramentas de IA frente aos cuidados necessários para não violar, direta ou indiretamente, direitos de propriedade intelectual de terceiros.
Para mais informações sobre inteligência artificial e propriedade intelectual, acompanhe a série especial do Mattos Filho sobre o tema.