Conteúdos criados por inteligência artificial generativa: a quem pertencem os direitos?
Com a efervescência e popularização de ferramentas pautadas em inteligência artificial generativa, crescem as discussões referentes a autores e titulares dos direitos dos novos conteúdos
A inteligência artificial (IA) é um campo de tecnologia criado na década de 1950, pautado em ciência da computação e combinação de dados capazes de simular capacidades humanas, a fim de executar atividades e aprimorar operações.
Há também subcampos da IA, dentre os quais aqueles capazes de criar conteúdos novos a partir de fragmentos acessíveis na internet ou em bases de dados disponíveis. Devido à sua alta capacidade criativa, tal tecnologia é chamada de IA generativa.
Impactos da IA generativa
As soluções pautadas em IA generativa tendem a ser mais eficazes e rápidas, pois não apenas classificam ou rotulam determinado dado mas, também, desenvolvem novos conteúdos com lastro no que já foi anteriormente aprendido (seja por informações existentes, seja pela interação com os usuários). Por isso, essas tecnologias podem auxiliar na automatização de demandas, organização e compreensão de dados e também na criação de imagens, textos, músicas, obras literárias e outros conteúdos.
Apesar de não tratarem de funcionalidades recentes, ferramentas pautadas em IA generativa vêm ganhando destaque ao longo dos últimos anos, especialmente, com a popularização de aparatos como o ChatGPT e o DALL-E. Com o avanço e evolução tecnológica de tais produtos, com algoritmos com alto grau de autonomia e capacidade de imitação do comportamento humano, capazes de aprender padrões de comunicação e desenvolver obras complexas, crescem também os questionamentos quanto à autoria e titularidade sobre tais conteúdos, especialmente quando decorrem de interações de usuários com robôs virtuais (chatbots).
O ordenamento jurídico brasileiro vigente não prevê, especificamente, temas relacionados à inteligência artificial, sendo necessário interpretá-lo para eventualmente resolver embates contemporâneos sobre tal matéria.
A lei de direitos autorais e requisitos para autoria de obras
A Lei de Direitos Autorais, Lei nº 9.610/1998 (LDA), considera como autor de determinada obra literária, artística ou científica a pessoa física que a tenha criado. Pessoas jurídicas também podem ser consideradas autoras, em casos específicos previstos na LDA, relacionados à organização e produção pela pessoa jurídica de contribuições de pessoas físicas. Nesse sentido, não há previsão legal sobre obras criadas por IA, pois a legislação privilegia a relação existente entre o autor (indivíduo) e sua criação.
O art. 7º da LDA determina como “obra intelectual” protegida por direitos autorais a criação do espírito que seja fixada em qualquer suporte ou expressa por qualquer meio.
Assim, com base nos conceitos legais acima detalhados, para que certo conteúdo seja protegível sob a perspectiva de direitos autorais, é necessário que o autor seja uma pessoa física (ou jurídica, nas condições específicas da lei) e sua obra tenha sido necessariamente elaborada com base na criatividade humana.
Com base na previsão acima, há entendimento doutrinário de que obras produzidas por IA generativa sequer são protegidas por diretos autorais, já que são frutos de comandos automatizados e baseados em construções sintéticas, sem intervenção humana relevante durante o processo de criação. Consequentemente, nenhum usuário de produtos com tecnologia pautada em IA poderia ser considerado autor.
Todavia há, também, corrente que defende que a participação humana é, hoje, elemento indispensável para o correto funcionamento de produtos com comandos originários de inteligência artificial, de forma semelhante ao fotógrafo que precisa ajustar o ângulo e escolher o objeto que será fotografado para somente então acionar o botão de uma máquina que produzirá a fotografia.
Para estes juristas, a atribuição de autoria àquele que envidou esforço para alcançar certo resultado, seja do ponto de vista de esforço intelectual (no caso de autoria ao usuário que apresenta comandos à IA), seja do ponto de vista de esforço financeiro (no caso de obras sob encomenda), pode ser a alternativa, à luz da legislação vigente.
A lei de propriedade industrial e os requisitos para titularidade sobre ativos
Na seara industrial, os questionamentos jurídicos não são menores, já que a Lei nº 9.279/1996, Lei da Propriedade Industrial (LPI), traz em seu texto diversos requisitos para a registrabilidade e titularidade sobre ativos industriais.
No caso das patentes, por exemplo, o art. 8º da LPI determina ser patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Dentre tais requisitos, o que encontra obstáculo frente a criação advinda de IAs generativas é o da atividade inventiva, compreendida como o resultado de um engenho notório. Ou seja, a invenção deve ir além da simples reunião de conhecimentos já constantes do estado da técnica.
A invenção a ser patenteada não deverá decorrer do estado da técnica de maneira óbvia na análise de um especialista na área, devendo ser inovadora o suficiente para o conhecimento de profissionais do ramo. Como produtos criados por IA generativa tendem a ser oriundos de informações e dados de especialistas que já tenham versado sobre certo tema, tal requisito não seria facilmente preenchido.
De toda forma, em setembro de 2022, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) também publicou despacho entendendo pela impossibilidade de uma inteligência artificial ser inventora em pedido de patente, em decisão que teve como base o art. 6º da Lei nº 9.279/96, a Convenção da União de Paris (CUP) e o Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio).
Para o INPI, o inventor de um pedido de patente deve ser capaz de ser sujeito de direitos, possuindo personalidade jurídica, o que não se aplica ao caso de uma IA que figure exclusivamente como potencial titular do ativo.
A Advocacia Geral da União (AGU) já emitiu parecer com o mesmo entendimento, no contexto da análise do pedido de patente depositado pela inteligência artificial DABUS, entendendo que o inventor deve, necessariamente, ser uma pessoa, na acepção do art. 1º do Código Civil brasileiro (toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil). Assim, seria impossível nomear uma IA como inventora de um pedido de patente apresentado no Brasil (Parecer nº 00024/2022/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU).
Para a AGU, como não há no ordenamento jurídico clareza suficiente para disciplinar a inventividade desenvolvida por máquinas pautadas em IA, torna-se necessário aguardar a celebração de tratados internacionais específicos destinados a uniformizar os princípios para a proteção nos ordenamentos nacionais.
No mesmo sentido, com relação às marcas, a LPI determina, em seu art. 128, que podem requerer registro de marcas as pessoas físicas ou jurídicas, de modo que a IA generativa não poderia ser enquadrada como titular de pedidos de registro ou mesmo marcas registradas.
De forma paralela, já existem no cenário brasileiro propostas legislativas para regulamentar a IA, já que não há na legislação de propriedade intelectual respaldo ou normas específicas sobre o tema.
O Projeto de Lei nº 21/2020 – Marco Legal de Inteligência Artificial
Atualmente, o Projeto de Lei n° 21/2020 (PL) é o texto mais avançado sobre inteligência artificial no país e tem como objetivo estabelecer fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação da IA no território nacional. O PL já foi aprovado, com alterações pela Câmara dos Deputados e está, desde fevereiro de 2023, sob análise do Plenário do Senado Federal.
O texto do PL, popularmente conhecido como Marco Legal de Inteligência Artificial, decorre de discussão conduzida por comissão de especialistas que se reuniu ao longo de oito meses e produziu relatório com mais de 900 páginas, incluindo a minuta do projeto de lei com 45 artigos e um dispositivo que restringe à União o poder de legislar e editar normas sobre a IA.
Vale destacar que o PL não endereçou questões relacionadas a direitos de propriedade intelectual, de modo que sua eventual aprovação não será suficiente para concluir temas relacionados à esta matéria.
Questões éticas relacionadas às plataformas de IA generativa
Enquanto avanços legislativos no campo de inteligência artificial não se concretizam, cabe aos usuários e desenvolvedores de produtos baseados em IA agir com responsabilidade e ética. A falta de regulação do tema não significa e não significará que produtos criados por IA generativa podem ser levianamente explorados, sendo importante observar os eventuais termos de uso de plataformas, bem como os direitos de terceiros sobre dados e informações utilizados pela IA para gerar novos conteúdos.
Uma vez que as criações de plataformas de IA generativa podem reproduzir parte ou a integralidade de conteúdos de terceiros inseridos no input inicial da inteligência artificial, é atualmente questionável se o uso de direitos de terceiros pode ser pautado nas hipóteses legais de limitação dos direitos autorais ou se tal reprodução representa violação de direitos de propriedade intelectual dos detentores dos conteúdos originais.
Ademais, a adoção de cuidados e estrutura de governança pautada em Data Ethics para implementação de IA generativa são necessárias para evitar riscos legais e reputacionais, já que o desenvolvimento e uso de aplicações enviesadas ou imprecisas pode criar produtos discriminatórios ou propagadores de informações falsas.
A fim de se evitar infrações às normas de proteção às obras intelectuais, cabe também aos usuários não indicar como sendo de sua própria autoria conteúdo que não foi por ele criado, mesmo que desenvolvido por uma plataforma de IA generativa, sem personalidade jurídica.
Para mais informações sobre inteligência artificial e propriedade intelectual, acompanhe a série especial do Mattos Filho sobre o tema.
*Com a colaboração de Nathalia de Assis Siqueira.