Câmara Superior e o efeito de suposto crime tributário
Turma decide que perda de incentivos e benefícios por conta de crime contra ordem tributária independe de sentença transitada em julgado
Assuntos
Em recente julgamento, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) discutiu a aplicação do artigo 59 da Lei nº 9.069/95, decidindo que a prática de atos que configurem crime contra a ordem tributária, para fins de perda dos benefícios e incentivos de redução ou isenção prevista no referido dispositivo legal, não depende da condenação penal irrecorrível.
Para contextualizar, o artigo 59 da Lei nº 9.069/95 impõe a perda de benesses fiscais pela prática de crime contra a ordem tributária, e a jurisprudência do CARF sempre debateu a necessidade do trânsito em julgado para a imposição da consequência tributária em questão.
No caso, estava sob julgamento recurso especial interposto pelo contribuinte na esfera administrativa contra o afastamento do usufruto de créditos presumidos de IPI apurados entre 2004 e 2006, em razão da suposta prática de atos que configurariam crime contra a ordem tributária.
Segundo o entendimento unânime refletido no Acórdão nº 9303-011.279, a configuração de crime dependeria unicamente da adequação da conduta a um tipo penal e que tal conduta não esteja sujeita à excludente de ilicitude (art. 23 do Código Penal). Assim, a simples adequação da conduta a um tipo penal contra a ordem tributária, mesmo sem a avaliação em definitivo da conduta pela justiça criminal competente, seria suficiente para caracterizar a “prática de atos que configurem crimes contra a ordem tributária“, conforme previsto no artigo 59 da Lei nº 9.069/95.
Nesses termos, concluiu o colegiado que a legislação (especificamente o artigo 59 indicado acima) não condicionou a perda do benefício ou incentivo fiscal à condenação penal transitada em julgado, mas exclusivamente à prática de ato que configure crime contra a ordem tributária na avaliação das autoridades fiscais, mantida em procedimento administrativo de revisão. Caso contrário, ainda conforme a decisão do CARF, o legislador teria expressamente exigido a existência de condenação transitada em julgado, quando “sequer condicionou à instauração de processo criminal”.
Com base nessas razões, a 3ª Turma da CSRF negou provimento ao recurso especial do contribuinte, afastando a totalidade do crédito presumido de IPI na exportação registrado pelo contribuinte no período.
Vale notar que a inaplicabilidade do mencionado artigo 59 às hipóteses de crédito presumido de IPI já havia sido reconhecida por diversas vezes pela Câmara Superior. Contudo, o julgado alterou a interpretação até então adotada, afirmando, agora, que embora o crédito presumido do IPI não possua natureza específica de benefício fiscal de redução ou isenção do imposto, a sua apuração é por meio do confronto entre débitos e créditos registrados, sujeitando-se ao disposto no artigo 59 da Lei nº 9.069/95.
Além do equívoco quanto a tal conclusão, que extrapola a literalidade com que devem ser interpretadas as normas que tratam de benefícios fiscais, a decisão prolatada pela 3ª Turma da CSRF vai de encontro ao devido processo legal e às garantias constitucionais que asseguram a presunção de inocência no ordenamento jurídico pátrio, bem como ao entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante nº 24, de que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo“.
De fato, o procedimento administrativo fiscal é pressuposto do crime tributário, vez que só se configurará o elemento do tipo penal tributário (“tributo devido”) ao final do procedimento de revisão tributária. Além disso, apenas as autoridades penais competentes poderão avaliar a existência ou não de crime tributário a caracterizar “a perda, no ano-calendário correspondente, dos incentivos e benefícios de redução ou isenção previstos na legislação tributária“, razão pela qual compete à autoridade fiscal apenas o envio de representação fiscal para fins penais ao final da esfera administrativa tributária competente, tendo esta natureza de notitia criminis não vinculante, ou seja, compete aos órgãos de persecução penal a instauração, ou não, de procedimento criminal a apurar a conduta noticiada pela autoridade fiscal.
Não bastasse isso, é evidente, ainda, que os autores de crimes, inclusive os contra a ordem tributária, só poderão ser considerados culpados com o trânsito em julgado em procedimento criminal competente.
Ou seja, a configuração, na prática, do crime contra a ordem tributária excede a competência atribuída ao Fisco, e qualquer penalidade tributária condicionada à prática de ilícito penal só deveria ser aplicada com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, respeitados o devido processo legal, a ampla defesa e a presunção de inocência.
Além disso, a recente decisão da CSRF reforça a insegurança jurídica dos contribuintes, pois permite que o Fisco aplique a perda dos benefícios e incentivos fiscais e formalize lançamento antes mesmo da instauração de procedimento penal para averiguar a ocorrência do suposto crime contra a ordem tributária.
Tal interpretação pode ensejar situações práticas paradoxais, em que o contribuinte passa a sofrer prejuízos econômicos ou vê-se impedido de prosseguir com sua atividade em decorrência da perda de benefícios fiscais em função do disposto no artigo 59 da Lei nº 9.069/95 e, posteriormente, nem sequer é processado ou é absolvido na esfera penal.
E tudo isto é realizado para que o Fisco possa antecipar a formalização de crédito tributário ou obstar o reconhecimento de direito creditório, com base em dispositivo legal que depende, essencialmente, da configuração da prática de crime contra a ordem tributária.
A decisão é preocupante, pois reforça um movimento por parte do Fisco de utilizar a esfera criminal, e seus respectivos elementos, de forma descontextualizada, como mais uma forma de constrangimento para o pagamento de tributos, postura esta que vai de encontro ao devido processo legal e a tipicidade tanto tributária quanto criminal.