Os danos indiretos e futuros na Reforma do Código Civil: um cenário de incertezas
Alterações sugeridas para o regime do nexo de causalidade na responsabilidade civil trazem mais dúvidas do que respostas
Embora a comissão de juristas designada para elaborar a proposta de reforma do Código Civil tenha agido com rapidez inédita, muitas das alterações propostas foram profundas. Um exemplo disso se deu sobre o sistema de responsabilidade civil. As propostas de alterações nessa área são extensas e de relevância prática, considerando que a responsabilidade civil disciplina desde situações cotidianas, como acidentes de carro, até grandes e complexos contenciosos empresariais.
Na exposição de motivos do anteprojeto enviado ao Senado Federal, a comissão justificou as mudanças propostas ao regime de responsabilidade civil com o argumento de “modernizar” a disciplina, que não sofreu atualizações legislativas nos últimos anos e, por isso, precisaria de ajustes. Apesar da autoproclamada boa intenção, as alterações propostas podem gerar mais insegurança do que certeza. A seguir, estão listados alguns exemplos disso, especificamente relacionados à relativização de um dos pilares da responsabilidade civil: a limitação da indenização aos danos diretos.
Contradição entre dois dispositivos
Talvez a mais clara manifestação de incerteza gerada pelo anteprojeto em matéria de responsabilidade civil esteja na contradição entre a redação do art. 403 e a do proposto art. 944-B. Esses dispositivos apresentam regras conflitantes sobre o regime do nexo de causalidade – um dos três requisitos à configuração da responsabilidade civil objetiva, ao lado do dano e do ato ilícito.
O nexo de causalidade é o elo que conecta, de forma direta e imediata, o ato ilícito cometido pelo agente ao dano sofrido pela vítima, de acordo com a teoria da causalidade necessária (também denominada teoria da interrupção do nexo causal), adotada pelo art. 403 do Código Civil (“Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só́ incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”).
Embora a redação desse dispositivo tenha sido mantida, o anteprojeto inova com a inclusão do art. 944-B ao Código Civil (“A indenização será concedida, se os danos forem certos, sejam eles diretos, indiretos, atuais ou futuros”), propondo a responsabilização civil também por danos indiretos. A coexistência desses dois dispositivos, tudo indica, é impossível, pois não se concebe como um dano possa ser indireto e, ao mesmo tempo, diretamente relacionado ao ato ilícito.
Danos indiretos e futuros: fonte de insegurança e litigiosidade
A promulgação do art. 944-B, em contradição com o art. 403, abriria a porta para condenações por danos indiretos e futuros, e modificaria a tradição da responsabilidade civil brasileira, com consequente incremento da insegurança jurídica e da litigiosidade.
Atualmente, os danos indiretos são reconhecidos pelos tribunais brasileiros como indenizáveis somente em hipóteses excepcionais. Essa responsabilização se dá, por exemplo, no caso de “dano por ricochete”, causado por abalo sofrido por parentes ou pessoas próximas da vítima fatal de um ato ilícito, como no caso julgado no Recurso Especial 2.026.618. Tornar essa excepcional responsabilização em regra traria dúvidas sobre os limites da cadeia de causalidade, fomentado arbitrariedade judicial e imprevisibilidade no direito brasileiro.
Semelhante insegurança jurídica terá lugar se for aprovado o dispositivo do anteprojeto que considera indenizáveis os danos futuros. Com fundamento no inciso I do §1º do art. 324 do CPC (“§1º É lícito, porém, formular pedido genérico: […] II – quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato”), a jurisprudência do STJ admite excepcionalmente a condenação genérica por danos futuros, contanto que tais danos sejam concretos, afastando a possibilidade de indenização quando há mero risco ou especulação de dano futuro, conforme decidido, por exemplo, no Recurso Especial 1.511.084.
É recomendável, portanto, a modificação do art. 944-B do anteprojeto, com a consequente exclusão dos termos “indiretos” e “futuros” do seu texto.
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