

Da prescrição nos contratos de seguro
Análise do posicionamento jurisprudencial sobre o tema e a Súmula nº 229 do STJ
O tema da prescrição costuma representar campo fértil para discussões, doutrinárias e jurisprudenciais, nas mais diversas de suas aplicações. Diferente não poderia ser no que se refere aos contratos de seguro. O artigo 206, §1º, inciso II, do Código Civil/2002, estabelece que prescreve em um ano a pretensão do segurado contra o segurador, ou deste contra aquele. No caso do seguro de responsabilidade civil, o termo inicial desse prazo é a data em que o segurado for citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou a data em que paga a indenização ao terceiro prejudicado com a anuência do segurador (alínea ‘a’). Em relação aos demais seguros, o termo inicial da prescrição é a data de “ciência do fato gerador da pretensão” (alínea ‘b’).
Sob a égide do Código Civil/1916, o prazo prescricional, de um ano caso o fato que autorizasse a ação do segurado contra o segurador (e vice-versa) se verificasse no Brasil, e de dois anos se o fato se verificasse fora do Brasil, era contado a partir da data em que o interessado tivesse conhecimento desse mesmo fato. Interpretava-se esse antigo dispositivo como estabelecendo, como termo inicial do prazo prescricional, a data de conhecimento do sinistro.
Havia, porém, o risco de que, ainda que o segurado requeresse à seguradora o pagamento da indenização securitária, administrativamente, dentro do prazo prescricional, a resposta da seguradora eventualmente recusando o pagamento fosse dada após o decurso desse prazo, razão pela qual foi editada, em 8 de setembro de 1999, a Súmula nº 229, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabeleceu que a contagem desse prazo prescricional ficaria suspensa no período entre a comunicação do sinistro pelo segurado à seguradora e a ciência, pelo segurado, da negativa, da seguradora, ao pagamento de indenização securitária. Nos termos dessa Súmula, “o pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo de prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão”.
Essa Súmula refletia a posição que vinha sendo adotada por diversos julgados à época, como o REsp 8.770/SP, julgado em 16 de abril de 1991, em que se definiu que “durante o tempo em que a seguradora estuda a comunicação, e até que dê ciência ao segurado de sua recusa ao pagamento da indenização, considera-se apenas suspenso o prazo prescricional, que recomeça, de então, a correr pelo tempo faltante” (STJ, REsp nº 8.770/SP, 4ª Turma, Relator Ministro Bueno de Souza, j. 16.4.1991). Ainda nesse sentido, confira-se: STJ, REsp nº 10.497/SP, 4ª Turma, Relator Ministro Bueno de Souza, j. 27.6.1991.
Com efeito, após o aviso do sinistro, pelo segurado ao segurador, este tem a prerrogativa e o direito de avaliar os fatos que originaram o sinistro; a existência de cobertura securitária; a presença de elementos que afastem o direito à cobertura; e o valor de eventual indenização a ser paga. Esse procedimento tem a denominação de “regulação de sinistro”, e finda com a conclusão do segurador sobre o pagamento, ou não, da indenização securitária pretendida pelo segurado. Nesse ínterim, de acordo com a Súmula nº 229, do STJ, o prazo prescricional deveria permanecer suspenso.
Contudo, antes da vigência do Código Civil/2002 e mesmo sob a égide da Súmula nº 229 do STJ, havia decisões do STJ entendendo que o termo inicial do prazo prescricional deveria ser o momento da recusa da cobertura pela seguradora, quando nasceria a pretensão do segurado.
A despeito desse entendimento, o posicionamento que passou a se estabelecer, em linha com a Súmula, era de que o prazo prescricional tem início com a ciência, do segurado, sobre o sinistro, suspendendo-se a partir do momento em que ele o comunica à seguradora, para voltar a fluir, pelo tempo restante, quando a seguradora posiciona-se pela negativa ao pagamento da indenização securitária.
Recentemente, alguns julgados têm entendido que a ciência do segurado sobre a recusa ao pagamento da indenização securitária deveria ser o termo inicial da prescrição, porque seria apenas a partir dessa recusa que nasceria a pretensão do segurado de adotar as medidas pertinentes para cobrar o valor negado pela seguradora.
Esse tema foi objeto do REsp nº 1.970.111/MG, julgado pela Terceira Turma do STJ. Nesse acórdão, entendeu-se que o Código Civil/2002, quando revogou o Código Civil/1916 e modificou a regra antes prevista em seu artigo 178, §6º, inciso II, – para estabelecer como termo inicial do prazo prescricional não mais o dia do conhecimento do fato que autoriza a ação do segurado (isto é, do sinistro), mas o dia da ciência do “fato gerador da pretensão”, –teria promovido uma alteração substancial na matéria.
Segundo esse acórdão, ao passo que Código Civil/1916 não especificava qual seria o fato que dava início ao prazo prescricional, o artigo 206, §1º, inciso II, ‘b’, do Código Civil/2002 passou a prever que trata-se do fato gerador da pretensão. E, como o artigo 189 do Código Civil/2002 fixou, como conceito legal da prescrição, a ideia de extinção da pretensão, mas não de extinção da ação, dever-se-ia avaliar quando nasce essa pretensão.
Assim, concluiu-se que, com o sinistro, nasce ao segurado o direito à indenização securitária, mas desprovido de exigibilidade, verificada apenas a partir da recusa da cobertura securitária pelo segurador. Antes da regulação do sinistro e da recusa de cobertura por parte da seguradora, nada poderia exigir-lhe o segurado, razão pela qual não se poderia considerar iniciado o prazo prescricional a partir da ciência do sinistro. Daí porque, a ciência do segurado quanto à recusa da cobertura securitária pelo segurador é que seria o fato gerador de sua pretensão, a partir de quando teria início o prazo prescricional.
Lado outro, no mesmo acórdão do REsp nº 1.970.111/MG, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em voto-vista, adotou posicionamento diverso: a seu ver, a pretensão do segurado contra o segurador surge, de fato, com sua ciência sobre a ocorrência do sinistro, porque, nessa hipótese, já há uma pretensão de exigir do segurador o adimplemento contratual, seja por requerimento administrativo, seja pelo ajuizamento direto de ação judicial. Logo, seria a partir da ciência do sinistro que teria início o prazo prescricional, que se suspende até a negativa de pagamento pela seguradora, conforme Súmula nº 229, do STJ.
Embora a Súmula nº 229 não tenha sido formalmente alterada ou superada, nota-se algumas decisões contrárias a esse entendimento. Com a Edição nº 230 da Jurisprudência em Teses do STJ, de 23 de fevereiro de 2024, constou que, nos contratos facultativos de seguro em geral, o termo inicial do prazo prescricional da pretensão do segurado seria a sua ciência quanto à recusa da cobertura securitária pela seguradora, por força da teoria da actio nata, segundo a qual os prazos prescricionais se iniciam no exato momento do surgimento da pretensão.
A coexistência da Súmula nº 229, do STJ, com precedentes da mesma Corte em sentido contrário ao desse enunciado sumular, gera insegurança jurídica e, ainda, dá margem a questionamentos que terão que ser solucionados pela jurisprudência.
Cite-se um exemplo: se a contagem do prazo prescricional tem início somente depois que a seguradora nega o pagamento de indenização securitária, a pretensão do segurado, na prática, poderia tornar-se imprescritível. Independentemente do tempo que o segurado leve para informar à seguradora a ocorrência do sinistro, não estará correndo, contra ele, nenhum prazo prescricional, que começará apenas a partir da posterior negativa da seguradora ao pagamento da indenização pretendida.
No julgamento do, já citado, REsp nº 1.970.111/MG, pela Terceira Turma do STJ, o voto-vencedor da Ministra Nancy Andrighi entendeu que não haveria risco de tornar imprescritível a pretensão do segurado, porque tem ele a obrigação de comunicar o sinistro ao segurador “logo que o saiba”, sob pena de perda do direito à indenização, conforme artigo 771 do Código Civil/2002.
Mas o próprio voto afirma que, “dada a realidade multifacetada dos contratos de seguro e a fim de evitar consequências desarrazoadas, é mais adequado ao juiz analisar, em cada caso concreto, se o segurado, sem justa causa, retardou a divulgação do sinistro à seguradora e, com isso, expandiu o dano”.
Com efeito, a falta de previsão legal de um prazo específico para o aviso de sinistro tratado no artigo 771 do Código Civil/2002 já é, em si, causa de controvérsias, a que se somam os debates jurisprudenciais sobre quando a perda do direito à indenização deve ocorrer, havendo posicionamento no sentido de que ela cabe apenas se o aviso tardio do sinistro tiver provocado danos que poderiam ter sido evitados ou atenuados se o aviso tivesse sido feito antes, e se houver dolo ou culpa do segurado no atraso [STJ, Terceira Turma, REsp nº 1.546.178/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 13.9.2016].
Consequentemente, restando ao Judiciário, em cada caso concreto, o papel de definir se o aviso do sinistro foi feito com o imediatismo que o artigo 771 do Código Civil/2002 exige, e se cabe a perda do direito à indenização securitária, persiste o risco de eternização do prazo de aviso de sinistro e, consequentemente, da prescrição da pretensão, sem contar o prejuízo à segurança jurídica, porque diferentes contextos fáticos poderão levar a diferentes conclusões sobre o prazo adequado para comunicação do sinistro.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.