Conheça o PL do Mandante e seus impactos no âmbito desportivo
Alterações legislativas devem exigir adaptações de emissoras, clubes de futebol e torcedores
Não é novidade que o esporte possui um papel imprescindível na história da humanidade. Seja a partir da influência na saúde física e mental de um indivíduo, ou pela união das mais diversas pessoas ao torcer pelo seu time, é evidente que o esporte se tornou um dos fenômenos mundiais de maior repercussão e influência cultural.
Para além de um costume cerimonial, o esporte também tem reconhecidos exemplos de profissionalismo, alcance global e, sem dúvidas, pelos seus grandes investimentos e consequentes receitas geradas. Assim, historicamente, as empresas de mídia negociam a comercialização dos direitos de transmissão dos eventos esportivos. No Brasil, a maior demanda encontra-se na transmissão das partidas de futebol, sendo uma das principais fontes de renda dos clubes e, de forma recíproca, uma garantia de audiência e patrocínio publicitário para as emissoras.
O direito de arena
O conceito de direito de arena está diretamente relacionado à recompensa devida aos atletas que, além de sua competência profissional, cedem sua imagem à partida que será transmitida. Isto é, trata-se de uma proteção legal conferida ao atleta, que não se confunde com o contrato celebrado com seu respectivo clube.
Atualmente, o direito de arena no Brasil é gerido pelos clubes de futebol e, para que haja a transmissão de uma partida, ambos os clubes, mandantes e visitantes, precisam autorizar a transmissão. Na prática, é costume que emissoras de televisão adquiram os respectivos direitos de transmissão, garantindo exclusividade na transmissão e, consequentemente, a audiência necessária para exposição das marcas de seus patrocinadores.
Histórico
A origem do direito de arena na legislação brasileira está na Lei de Direitos Autorais de 1973 (Lei nº 5.988/73), em seus artigos 100 e 101, os quais restringiam exclusivamente à entidade esportiva o direito de autorizar, ou não, a transmissão por meios eletrônicos de partidas esportivas com entrada paga. A lei ainda determinava que 20% do preço dessa autorização seriam distribuídos em partes iguais aos atletas atuantes na partida.
Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu o direito fundamental da proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz, inclusive nas atividades desportivas, nos termos do inciso XXVIII, alínea a, do artigo 5º, e ainda, o dever de o Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, observada a autonomia das entidades desportivas quanto à sua organização e funcionamento, podendo definir a respectiva natureza jurídica aplicável, nos termos do art. 217, inciso I. Essa previsão foi de extrema importância para que clubes deixassem de ser apenas associações desportivas, abrindo a possibilidade para que fossem igualmente organizadas como sociedades empresárias.
Em 1993, entrou em vigor a Lei 8.672, popularmente conhecida como Lei Zico (nome dado em homenagem ao ex-jogador e secretário nacional de desportos nos anos de 1990 a 1991, Arthur Antunes Coimbra, conhecido como Zico) buscou regulamentar, pela primeira vez, não somente o trabalho do atleta profissional, como a gestão dos clubes esportivos. A Lei Zico revogou os artigos que dispunham sobre o direito de arena na Lei de Direitos Autorais de 1973, trazendo uma nova redação que determinou, além de sua natureza como direito civil, a sua inserção no âmbito do direito desportivo de fato.
Cinco anos depois, entra em vigor a Lei 9.615/1998 (Lei Pelé), que revogou a Lei Zico e é até hoje a principal norma que dispõe sobre o Direito Desportivo no ordenamento jurídico brasileiro. Apesar de ter revogado a legislação anterior, a Lei Pelé somente aplicou modificações pontuais na redação do texto que tratava de direito de arena.
Nos termos de seu artigo 42, a associação desportiva teria o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, transmissão ou retransmissão da imagem, por qualquer meio, do espetáculo ou eventos desportivos de que o atleta participe, garantindo 20% do preço total da autorização, com partilha do valor correspondente em partes iguais aos atletas profissionais participantes. Por conta de referida norma, o atleta possui o direito de participar da arrecadação correspondente à transmissão ou retransmissão dos eventos desportivos que participa e, ainda, que os direitos de transmissão da partida dependerá da negociação entre os times mandante e visitante.
Com o tempo, a Lei Pelé foi alterada pela Lei 12.395/2011, que passou a definir a porcentagem destinada ao sindicato e aos atletas como 5%, e não mais 20%. No Brasil, essa parcela possui natureza civil e, portanto, não tem natureza salarial.
Possíveis alterações no direito de arena
Em junho de 2020, houve publicação da Medida Provisória 984/2020, também conhecida como MP do Mandante, a qual tinha eficácia imediata a partir de sua publicação e propôs significativas mudanças no direito de arena durante o contexto pandêmico. De modo geral, a MP tinha como objetivo alterar a redação do artigo 42 da Lei Pelé, prevendo que somente a entidade de prática desportiva mandante do jogo a ocorrer é quem detém a regalia de autorizar e negociar as transmissões das partidas. Isto é, com a publicação da MP, somente o clube mandante poderá definir por quem a partida será transmitida, sem que o time visitante seja envolvido nesse processo decisório.
A mudança transforma igualmente o mercado de direitos de transmissão para os clubes, sobretudo diante do avanço das novas tecnologias do mercado de streaming, que já se demonstra como um grande concorrente da televisão tradicional. Como exemplo, tem-se os jogos da Liga Nacional de Basquete (NBB), a qual interrompeu uma parceria de dez anos com a Globo/Sportv e passou a transmitir seus jogos em diferentes canais e plataformas, como Band, Fox, ESPN, ou até mesmo via digital, através do Facebook e Twitter.
Entretanto, a MP não foi votada como lei pelo Congresso Nacional durante o prazo regulamentar, e assim acabou por perder sua validade em outubro de 2020.
Projeto de Lei do Mandante
No dia 14 de julho de 2021, foi aprovado na Câmara dos Deputados, em regime de urgência, o Projeto de Lei do Mandante (PL 2336/2021), entendido como uma derivação da MP.
Tendo sido aprovado na Câmara, o texto aguarda apreciação do Senado. Assim, caso seja aprovado nas duas casas legislativas, restará sanção por parte do presidente da República.
Se sancionado, as regras do projeto de lei passarão a ser aplicadas apenas aos contratos que não foram previamente celebrados. Ou seja, os contratos assinados para exibição do Brasileirão, por exemplo, estão em vigor até 2024 e ainda obedecem às limitações atuais, isto é, de um direito dividido entre time mandante e visitante.
O direito em outros países
O direito exclusivo do mandante também é visto em âmbito internacional, sobretudo nas ligas europeias de futebol. Em alguns países, os direitos pertencem a outras entidades, como na Espanha e na Itália, em que os clubes têm a obrigação legal de ceder esses direitos a ligas compostas por eles mesmos. Na França, por outro lado, os direitos são destinados à federação nacional, responsável por repassar aos clubes.
Fonte: globoesporte.com
Na Inglaterra, a legislação permite que os clubes negociem separadamente. No entanto, os direitos costumam ser negociados de maneira centralizada e coletiva pelos times. Assim, as partidas são organizadas em pacotes, os quais são oferecidos inclusive em leilões. No país, não há transmissão em televisão de sinal aberto, somente em serviços por assinatura.
Próximos passos
Uma vez alterada a Lei Pelé, haverá pela frente uma negociação importante de direito de transmissão, a qual definitivamente afetará os campeonatos com previsão de início para 2025. O Projeto de Lei do Mandante é uma pauta que somente irá alterar a configuração futura dos torneios, e não os contratos em vigor.
Analisando sob outra ótica, deve-se considerar que a possível alteração da Lei Pelé a partir do PL possibilitará, ainda que em tese, maior poder de barganha por parte dos clubes, inclusive dos menores, para que as disputas sejam transmitidas. Também é possível identificar uma mudança comportamental que pode, futuramente, servir como um desincentivo às assinaturas de pay-per-view, feitas sobretudo por torcedores fiéis que acompanham frequentemente jogos de seus clubes que, nem sempre, são transmitidos em emissoras de televisão em seus canais abertos ou por assinatura.
Por fim, resta compreender como se dará a transição contratual dessa alteração legislativa, considerando grandes contratos tradicionalmente celebrados entre uma grande emissora de televisão e um grande clube de futebol e ainda, de que forma as torcidas se adaptarão a essa transformação que impactará as formas de se assistir uma das maiores paixões nacionais, o futebol.
Para saber mais sobre o tema, conheça a prática Propriedade Intelectual do Mattos Filho.
*Com colaboração de Isabela Ceccarelli.