Reforma do Código Civil: considerações sobre o Livro de “Direito Civil Digital”
Alterações afetam temas relevantes para o mercado digital
A série especial “Contencioso e arbitragem em foco” já mencionou que a Comissão de Juristas, encarregada de revisar e atualizar o Código Civil, foi instalada em setembro de 2023 e propôs, em apenas seis meses, com rapidez inédita, propostas de alterações profundas em temas relevantes do Direito Civil, como a autonomia privada e a liberdade contratual, a responsabilidade civil e o regime legal das sociedades estrangeiras.
A Comissão de Juristas se propôs a ir além dessas alterações e incluiu no anteprojeto do Código Civil temas antes objeto de leis específicas ou que jamais haviam sido disciplinados no ordenamento jurídico brasileiro. Esse é o caso do Livro VI sobre “Direito Civil Digital”. Segundo a exposição de motivos do anteprojeto, a “evidente virada tecnológica do direito” e o fato de que as “relações e situações jurídicas digitais” são agora parte do cotidiano dos brasileiros demandariam a atualização da legislação para abordar os desafios e oportunidades do ambiente digital.
A iniciativa, ainda que bem-intencionada, é questionável. A modernização do Direito Civil é necessária e bem-vinda, mas não deve ocorrer em detrimento da maturação de temas recentes, muitas vezes carentes do adequado debate sobre o melhor regramento, como é o caso dos chamados neurodireitos, categoria jurídica ainda em debate na própria academia. Além disso, a dinamicidade do chamado Direito Digital, matéria em constante e rápida evolução, parece incompatível com a longevidade que deve caracterizar o Código Civil.
O anseio de disciplinar matéria tão dinâmica levou a Comissão a criar conceitos e categorias jurídicas obscuras, com o potencial de gerar insegurança jurídica. Por exemplo, o anteprojeto apresenta um conceito de “situação jurídica digital” de difícil inteligência, que causa dúvidas sobre o que exatamente se pretendeu disciplinar. Outro exemplo de falta de clareza é a proteção em três momentos distintos da “liberdade cognitiva”, jamais definida no anteprojeto.
A seguir, alguns exemplos de temas relevantes do Livro VI do anteprojeto do Código Civil para o mercado digital.
Regime de responsabilidade
O anteprojeto inova ao prever um regime de responsabilidade objetiva para “provedores e usuários do ambiente digital” pelos danos decorrentes de seus atos e atividades (Capítulo II, dispositivo sem numeração). A exposição de motivos do anteprojeto não esclarece a justificativa para a escolha do regime de responsabilidade objetiva, mais gravoso e aplicado de forma excepcional no Código Civil.
Com relação ao conteúdo de usuário publicado em aplicação de internet – atualmente objeto do art. 19 do Marco Civil da Internet –, o anteprojeto prevê a responsabilização administrativa e civil do provedor pelos danos causados por esse conteúdo quando “houver descumprimento sistemático dos deveres e das obrigações previstas neste Código, aplicando-se o sistema de responsabilidade civil nele previsto” (Capítulo IV, dispositivo sem numeração).
Os deveres e obrigações parecem se referir, por exemplo, ao “ambiente digital seguro e confiável”, que envolve a adoção de “medidas de diligência” pelos provedores de aplicação para garantir a conformidade de seus sistemas e processos com os direitos da personalidade e da liberdade de expressão e de informação; para mitigar e prevenir a circulação de conteúdo ilícito; além da indisponibilização de conteúdo ilícito uma vez notificados de sua “potencial ilicitude” (Capítulo IV, dispositivos sem numeração). A remissão ao regime de responsabilidade é fonte de dúvida: remete-se ao regime geral de responsabilidade subjetiva ou ao regime especial aplicável a “provedores e usuários do ambiente digital” de responsabilidade objetiva?
O anteprojeto ainda prevê a responsabilidade do provedor de aplicação pelo conteúdo de terceiro que tenha sido distribuído por meio de publicidade (Capítulo IV, dispositivo sem numeração). Pela primeira vez, sem justificativa conhecida, a lei atribuirá responsabilidade àquele que exibe a publicidade mediante remuneração. O Código de Defesa do Consumidor não prevê a responsabilidade do veículo que meramente transmite tal mensagem publicitária, atribuindo-a ao fornecedor/anunciante (art. 38: “o ônus da prova da veracidade e correção da informação publicitária cabe a quem as patrocina”; esse também parece ser o racional do art. 36, parágrafo único: “O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem”). Essa é igualmente a posição majoritária no Superior Tribunal de Justiça. Por exemplo, ao enfrentar caso envolvendo publicidade veiculada na televisão, o Superior Tribunal de Justiça assentou que “as empresas de comunicação não respondem por publicidade de propostas abusivas ou enganosas. Tal responsabilidade toca aos fornecedores-anunciantes, que a patrocinaram (CDC, Arts. 3º e 38)” (STJ. REsp 604.172/SP, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 27.3.2007). Há outros precedentes do STJ no mesmo sentido (STJ. AgInt no AREsp 1.876.861/SP, rel. Min. Moura Ribeiro, j. 20.9.2021; STJ. REsp 1.427.314/RS, rel. Min. Nancy Andrigui, rel. p/acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25.9.2018; STJ. REsp 1.157.228/RS, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 3.2.2011).
A exposição de motivos do anteprojeto não esclarece as razões para a adoção de um regime mais gravoso para provedores de aplicação de internet do que aquele aplicado para outros veículos que exibem publicidade igualmente mediante remuneração.
Balizas para moderação de conteúdo
O anteprojeto prevê obrigações amplas de respeito à não discriminação, à liberdade de expressão e à pluralidade de ideias na atividade de moderação de conteúdo pelos provedores de aplicação. O anteprojeto também prevê que devam ser assegurados mecanismos de denúncia de conteúdo ilícito, em idioma local, com notificação sobre o resultado da denúncia.
O anteprojeto tem o mérito de não ter engessado o tema, estabelecendo princípios gerais (como os direitos a serem garantidos) e obrigações mínimas (como a disponibilização de canais de denúncia, com devolutiva ao denunciante). No entanto, o anteprojeto é obscuro ao prever que deve ser garantido mecanismo de “reparação integral de danos”, em inovação de difícil compreensão sobre o que consistiria tal mecanismo e como ele deveria ser implementado (Capítulo IV, dispositivo sem numeração).
Direito ao esquecimento e à desindexação
A minuta dispõe que a pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes que representem lesão aos seus direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado. A exclusão depende de ordem judicial e os requisitos são:
- O transcurso de lapso temporal razoável desde a publicação da informação verídica;
- A ausência de interesse público ou histórico;
- A demonstração de que a manutenção da informação pode gerar dano ao indivíduo ou seus representantes; e
- A demonstração de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão (Capítulo II, dispositivo sem numeração).
Não está claro se os requisitos são cumulativos. Se forem, a proposta adotaria linha similar ao decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 786, que concluiu ser “incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”, porém ressalvada a análise casuística quando houver excesso ou abuso no exercício da liberdade de expressão e de informação, “a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
O anteprojeto também assegura o direito à desindexação, entendido como a “remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem utilidade ou finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem”. O rol de hipóteses que autorizam a desindexação, contudo, não é taxativo e inclui imagens pessoais explícitas ou íntimas, “pornografia involuntária”, informações pessoais e conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes. O desafio desse dispositivo está na amplitude de seu caput, pois caberá ao Judiciário determinar o que se entende por informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais, em uma ponderação com os direitos à liberdade de expressão e de informação (Capítulo II, dispositivo sem numeração).
Conteúdo mínimo dos termos de uso
O anteprojeto prevê que as “situações jurídicas digitais” estarão sujeitas aos termos de uso estabelecidos pelos provedores de aplicação, desde que não contrariem a legislação brasileira, confirmando a jurisprudência dominante sobre o tema, que se fez especialmente relevante na temática de moderação de contas e de conteúdo.
Os termos de uso deverão ser acessíveis, transparentes e de fácil compreensão e terão conteúdo mínimo obrigatório sobre as ferramentas, os sistemas e os processos usados para a moderação de conteúdo, os processos automatizados, a formação de perfis e a existência de contrapartidas pecuniárias (como monetização ou patrocínio de conteúdo) (Capítulo IV, dispositivo sem numeração). Tamanha especificidade tende a tornar esse dispositivo rapidamente obsoleto e/ou de difícil implementação.
Avaliação anual de riscos sistêmicos e auditorias anuais e independentes
O anteprojeto prevê a obrigatoriedade de avaliações anuais de riscos para as plataformas digitais de grande alcance, definidas como aquelas que oferecem serviços de “hospedagem virtual” com número médio de usuários mensais no Brasil superior a dez milhões, tais como as redes sociais, ferramentas de busca e provedores de mensagens instantâneas (Capítulo I, dispositivo sem numeração).
As plataformas digitais de grande alcance deverão promover análise anual para atenuação dos seguintes “riscos sistêmicos” decorrentes da concepção ou do funcionamento de seus serviços:
- A difusão de conteúdos ilícitos por meio de seus serviços;
- Os efeitos reais ou previsíveis em direitos de personalidade dos usuários;
- Os efeitos reais ou previsíveis que possam acarretar nos processos eleitorais e no discurso cívico; e
- Os efeitos reais ou previsíveis em relação à proteção da saúde e da segurança pública.
O anteprojeto excepcionou de tal obrigação os provedores que tenham como atividade primordial o comércio eletrônico, a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz, o provimento de enciclopédias online sem fins lucrativos ou de repositórios científicos e educativos, o desenvolvimento e compartilhamento de software de código aberto ou o provimento de serviços de busca e acesso a dados obtidos do Poder Público, em especial dos seus integrantes, conforme previsto em lei especial (Capítulo IV, dispositivo sem numeração).
As plataformas digitais de grande alcance também estarão sujeitas a auditorias anuais e independentes, por elas custeadas, para avaliar o cumprimento das medidas de diligência previstas no anteprojeto para garantir a conformidade dos seus sistemas e processos com os direitos dos usuários, e se elas estão adotando as medidas para afastar os riscos sistêmicos e prevenir danos em seus serviços. O anteprojeto não deixa claro se haverá órgão específico responsável por analisar o resultado de tais auditorias (Capítulo IV, dispositivo sem numeração).
Apesar de criar tão detalhada obrigação, o anteprojeto não esclarece qual seria o órgão de controle a quem esses relatórios se destinariam e quais consequências jurídicas poderiam decorrer do descumprimento de tal obrigação. O dispositivo parece criar uma obrigação sem objetivo claro, o que não apenas gera dúvida sobre sua necessidade, como gera insegurança jurídica aos destinatários da norma, que não têm clareza sobre seus efeitos (Capítulo IV, dispositivo sem numeração).
Para mais informações acerca do tema, conheça a prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.