O “toma lá, dá cá” normativo
Publicação da Lei 14.592 gera controvérsias sobre anterioridade nonagesimal e sobre o cálculo do crédito de PIS/COFINS na aquisição de bens
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Se em muitas outras áreas da sociedade o movimento dos negócios não está nos níveis de costume, a verdade é que, para os tributaristas, assunto e trabalho não faltam. E essa não é necessariamente uma boa notícia.
A verdade é que a sociedade civil, em geral, se acostumou a ver muitos dos temas tributários, que impactam diretamente a vida de todos, serem tratados com absoluto descaso e displicência. Ou, até mesmo, irresponsabilidade.
Culpa do Executivo, que insiste nas más práticas – não importando quem esteja exercendo o poder; culpa do Legislativo, que ratifica os erros do Executivo ou se omite; culpa do Judiciário, que, ao dar a palavra final sobre a interpretação das normas, pereniza o modus operandi errático.
Essa introdução se aplica a muitas das situações que ocorreram nos últimos meses, antes e depois da mudança de governo. Por ora, quero abordar a recente estrepolia feita, que redundou na publicação da Lei 14.592, em 30 de maio de 2023, e o porquê entendo que ela seja passível de questionamento.
Em 12 de janeiro de 2023, foi publicada a Medida Provisória 1159, que, dentre outras disposições, excluía da base de cálculo da Contribuição ao PIS e da COFINS (PIS/COFINS) o ICMS que incidiu na operação de aquisição do bem para adequar a legislação ao entendimento do STF. Mas, a MP também determinou que não dará direito a crédito o ICMS que incidiu na operação de aquisição do bem. Um verdadeiro “toma lá, dá cá” normativo.
Mas por que a ironia se, economicamente falando, faria sentido a exclusão do ICMS nas duas pontas, seja do débito, seja do crédito? Ora, porque a sistemática não cumulativa dos PIS/COFINS nunca obedeceu a nenhuma lógica econômica, desde a sua implementação. Por opção do legislador.
Diferentemente da forma como a não cumulatividade é aplicada ao ICMS ou ao IPI – em que o valor do crédito tem como referência o que foi pago ou exigido na operação anterior –, no caso dos PIS/COFINS, o contribuinte calcula o crédito a ser apropriado mediante a aplicação da sua alíquota de incidência ao valor do bem ou serviço adquirido.
Dessa forma, seja adquirindo o bem (ou serviço) de fornecedor sujeito à tributação beneficiada (como o Simples), à sistemática cumulativa dos tributos (cuja alíquota é de 3,65%) ou à não cumulatividade (cuja alíquota é de 9,25%), o crédito de quem adquire o bem ou serviço será de 9,25% sobre o valor do bem ou serviço, se essa for a sua alíquota. Há paridade econômica entre débito e crédito aqui? Penso que não.
Assim sendo, para manter a lógica desde a sua implementação, a exclusão do ICMS do valor do débito de PIS/COFINS, como determinado pelo STF, não implica ou não deveria implicar a exclusão do ICMS do crédito a ser apropriado na aquisição do bem.
Há mais. Sabedores da dificuldade em obter a conversão em lei da Medida Provisória 1159/2023, as autoridades fiscais buscaram o apoio do Relator do Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 1147/2022, que parecia mais próximo de aprovação, para incluir em seu teor os comandos relativos à exclusão do ICMS (do débito e do crédito), que antes constavam da outra medida provisória. A estratégia foi, aparentemente, bem-sucedida, tanto que resultou na publicação da Lei 14.592.
E, aqui, surge uma primeira pergunta: os 90 dias que devem anteceder a eficácia da norma que institui ou eleva tributo devem ou não ser considerados em relação à Lei 14.592, se parte do seu conteúdo já constava da Medida Provisória 1159/2023? Alguns (talvez muitos) dirão que não, afinal, onde estaria a surpresa do contribuinte?
Contudo, feliz ou infelizmente, estamos falando de Direito, e não de qualquer outra ciência. Dito isso, enquanto o conceito “não surpresa”, no plano das demais relações, pode ser definido de inúmeras formas por ser um conceito subjetivo, no plano jurídico e em matéria tributária ele foi positivado como a antecedência mínima de 90 dias a contar da publicação da norma para a sua eficácia.
Em outras palavras, só é “não surpresa”, de acordo com a Constituição, se a eficácia da norma que institui ou eleva tributo ocorrer após 90 dias contados da sua publicação. Esse é o conceito constitucional da “não surpresa” em matéria tributária. Qualquer definição, percepção ou conclusão diferente pode ser qualquer outra coisa, mas não será “não surpresa” aos olhos do legislador constitucional.
Portanto, a meu ver, a resposta só pode ser sim à indagação se deve ou não a Lei 14.592/2023 ser submetida à anterioridade nonagesimal, que permitiria a sua eficácia somente a partir de 31 de agosto de 2023.
Contudo, a controvérsia não para por aí. Adentrando no mérito, vemos um novo comando a determinar a exclusão do ICMS, mas, ao mesmo tempo, a prevalência do comando anterior, que ainda estabelece que o crédito será calculado sobre o valor do bem. Como considerar o valor do bem sem considerar nele inserido o ICMS? Se a intenção era alterar a forma de cálculo do crédito, por que a norma original não foi alterada? Mais combustível para uma nova discussão.
Minha percepção é a de que, mais do que nunca, o trabalho legislativo tem que ser muito bem-feito. As normas que elevam a carga tributária devem respeitar os princípios constitucionais, sem qualquer tipo de relativização ou acomodação. As palavras e conceitos contidos na norma devem ser corretamente interpretados. Um pouco (ou muito) do óbvio. Até porque nosso sistema tributário é absurdamente complexo e a reforma tributária, por melhor que venha a ser formulada, não resolverá todos os nossos problemas no tempo em que necessitamos.
Qualquer conclusão diferente ameaça direitos, produz insegurança jurídica, eleva a litigiosidade e eterniza a sensação de que há algo de muito errado em tudo isso.