Execução fiscal versus recuperação judicial
Conflito, competência, cooperação, Tema 987/STJ e Lei nº 14.112/20
Assuntos
A reforma tributária trouxe à pauta a cooperação entre Fisco e contribuinte. Mas essa premissa deveria orientar apenas o cumprimento das obrigações tributárias? Nos parece que não.
Em épocas de instabilidade econômica e notória crise financeira, a colaboração entre Fisco e contribuinte deveria se voltar também à equalização entre o interesse no recebimento do crédito tributário e a preservação da atividade empresarial. A transação tem demonstrado que pode ser um ótimo caminho, tanto para reduzir litígios, quanto para aumentar a eficiência na arrecadação. Porém, quanto se trata de recuperação judicial, há muito o que avançar. É que as consequências decorrentes de seu insucesso parecem esquecidas quando o assunto é atos de constrição em execução fiscal.
A afetação do Tema nº 987 dos recursos repetitivos sinaliza a materialização dessa falha de cooperação. A controvérsia a ser resolvida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) consistia na “possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária”.
A solução veio antes mesmo do julgamento do Tema, com a edição da Lei nº 14.112/20, que alterou a redação do artigo 6º, § 7º – B, da Lei nº 11.101/05. De acordo com o dispositivo, apesar de o deferimento da recuperação judicial não suspender as execuções fiscais, admite-se a competência do juízo da recuperação para determinar a substituição de atos constritivos sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade da empresa.
A inovação legislativa nada mais foi do que a positivação da jurisprudência. O entendimento da 2ª Seção do STJ já caminhava no sentido de que “as execuções fiscais não se suspendem com o deferimento da recuperação judicial, ficando, todavia, definida a competência do Juízo universal para analisar e deliberar os atos constritivos ou de alienação, ainda quando em sede de execução fiscal, desde que deferido o pedido de recuperação judicial” (AgRg no CC 120.642/RS, rel. min. João Otávio de Noronha, 2ª Seção, DJe 18/11/14).
Com o advento da Lei nº 14.112/20, o ministro relator Mauro Campbell Marques desafetou o Tema nº 987, não sem antes reafirmar que “cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (art. 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial”.
Ato subsequente, no conflito de competência nº 181.190/AC, o STJ esclareceu como operacionalizar, na prática, as competências dos juízos da execução fiscal e recuperação judicial: “a submissão da constrição judicial ao juízo da recuperação judicial, para que este promova o juízo de controle sobre o ato constritivo, pode ser feita naturalmente, de ofício, pelo juízo da execução fiscal, em atenção à propugnada cooperação entre os juízos”.
Na mesma ocasião, a Corte sinalizou que “se o juízo da execução fiscal não submeter, de ofício, o ato constritivo ao juízo da recuperação judicial, deve a recuperanda instar o juízo da execução fiscal a fazê-lo ou levar diretamente a questão ao juízo da recuperação judicial, que deverá exercer seu juízo de controle sobre o ato constritivo, se tiver elementos para tanto, valendo-se, de igual modo, se reputar necessário, da cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015.”
O entendimento do STJ se mantém firme. Em abril de 2023, no conflito de competência nº 175.655/RJ, a 2ª seção reiterou a competência do juízo recuperacional para decidir sobre a liberação de valores depositados judicialmente pela recuperanda como garantia do juízo em ação tributária.
Aos olhos do STJ, a cooperação entre os juízos da execução fiscal e recuperação judicial, no que se refere aos atos de constrição de bens da pessoa jurídica recuperanda, não é mera recomendação, mas verdadeiro dever.
De fato, a lógica da atuação coordenada entre execução fiscal e recuperação judicial parece atender melhor aos interesses de todas as partes.
Se, por um lado, o juízo da execução fiscal é aquele responsável por direcionar esforços para salvaguardar o crédito público, o juízo da recuperação judicial tem a visão global sobre a situação financeira da empresa e a missão de atuar para permitir o cumprimento do plano de recuperação, pautado no princípio da recuperabilidade, evitando-se a falência, que não interessa a ninguém – Estado, coletividade ou empresário.
Assim, prestigiar a cooperação entre juízos da recuperação e execução fiscal é medida necessária para balancear o interesse público no recebimento de créditos tributários e o objetivo do soerguimento da empresa que, nos termos do artigo 47, da Lei nº 11.101/05, é “a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.
Para mais informações sobre lei de execução fiscal, acompanhe a série especial do Mattos Filho sobre o tema.