Tribunal decide sobre nova limitação para dosimetria de multa por gun jumping
Aquisições em série, cláusula de não concorrência e desinvestimento, e outros temas marcam discussões recentes no controle de concentrações
Em agosto de 2024, o Tribunal do Cade solidificou a implementação do teto de proporcionalidade de 20% sobre o valor da operação para a fixação de multa por prática de gun jumping. Em dois casos, o Tribunal aplicou essa limitação, destacando, no entanto, que pode ser afastada em situações excepcionais.
No Acordo em Apuração de Ato de Concentração (APAC) n° 08700.003447/2020-15, que envolveu operações de transferência de concessão de revenda envolvendo as empresas integrantes do grupo econômico Dahruj, o Conselheiro-Relator Gustavo Augusto reforçou a necessidade de aplicação do teto sobre o valor de cada operação, mas explicou as hipóteses que podem justificar o afastamento dessa limitação: (i) situações em que os requerentes da operação tenham agido de má-fé; (ii) operações cujo valor for meramente simbólico, de modo que a aplicação da limitação de 20% acabe por sempre resultar no piso de R$ 60 mil do § 3º do art. 88 da Lei 12.529/11; (iii) casos em que a operação puder gerar significativo dano ao mercado. Como nenhuma dessas possíveis hipóteses foi verificada, o Tribunal aplicou o teto.
No APAC nº 08700.009227/2022-59, a respeito da incorporação total, pela Cocamar, dos ativos e passivos relativos às atividades da Coanorp, o Conselheiro-Relator Diogo Thomson destacou que a multa calculada seria inferior a 20% do valor da operação e que, portanto, não seria necessária a aplicação do teto de proporcionalidade no caso.
Decisão do Tribunal chama atenção para aquisições em série
Em setembro de 2024, o Tribunal do Cade analisou o AC nº 08700.006814/2023-77, envolvendo a aquisição de 85% das quotas do capital social da Cia Paraná de Alimentos S.A., uma rede de supermercados com nove lojas no estado do Paraná, pela SMR Participações e Investimentos S.A. (Plurix), controlada pelo FIP Pátria VI. Apesar de a Superintendência-Geral (SG) ter recomendado sua aprovação sem restrições, o Conselheiro Diogo Thomson avocou a análise da operação em razão, dentre outros, de preocupações sobre aquisições em série no mercado de varejo de autosserviço.
O Conselheiro levantou doze atos de concentração diferentes notificados pelo grupo econômico ao qual pertence a Plurix nos últimos três anos, quatro deles na mesma região geográfica de interesse da operação, levantando uma preocupação de que essas aquisições poderiam levar a uma consolidação econômica significativa. O Conselheiro concluiu que não havia evidências suficientes para justificar a reversão da decisão da SG, mas recomendou o acompanhamento contínuo das operações futuras envolvendo o grupo, devido à consolidação do mercado de varejo de autosserviço em São Paulo e no Paraná pelo grupo econômico da Plurix. O Conselheiro relembrou da importância de se realizar uma análise prospectiva em casos envolvendo aquisições em série.
Tribunal do Cade impõe remédio unilateral sobre cláusula de não concorrência e desinvestimento
Na mesma sessão de julgamento, em setembro de 2024, o Tribunal analisou o AC nº 08700.006814/2023-77, envolvendo a aquisição, pela Minerva S.A., de parte do negócio de carne bovina e ovina da Marfrig Global Foods e Marfrig Chile na América do Sul, incluindo unidades de abate e desossa de bovinos e ovinos, sem implicar a saída total da Marfrig do mercado. Esse caso foi relevante não apenas no tocante à sinalização dos cuidados que devem ser tomados com cláusulas de não concorrência, sobretudo quando a parte vendedora não cessa totalmente as atividades no mercado envolvido, e a possibilidade de imposição de condições e remédios unilaterais na ausência de consenso.
No voto do Conselheiro-Relator Carlos Jacques, acompanhado de forma unânime pelo Tribunal, a operação foi aprovada mediante a imposição de restrições unilaterais, visto que as partes não chegaram a um consenso entre si e com o Cade sobre os remédios que estavam sendo negociados. Ainda assim, o Conselheiro reconheceu que a aplicação de remédios unilaterais deve ser tida como uma última alternativa, dado que a resolução por meio de uma negociação de acordo tende a causar menos distorções e ajustes no mercado, e a preservar a estrutura da operação conforme pretendida pelas partes.
Para aprovar a operação sem prejudicar a concorrência, foram identificadas duas preocupações específicas: (i) o pacto de não expansão da produção, pela Marfrig, na planta de Várzea Grande, no Mato Grosso, a qual foi considerada uma cláusula de não concorrência anômala, sem respaldo na jurisprudência do Cade; e (ii) o nível de concentração resultante da operação no mercado de Pirenópolis, em Goiás.
Sobre o primeiro ponto, o Tribunal reconheceu que cláusulas de não concorrência possuem racional econômico, como a proteção do investimento realizado, muitas vezes garantindo que o vendedor não reentre no mercado de forma a prejudicar a operação adquirida. Contudo, o Tribunal determinou a revisão do escopo geográfico e de algumas obrigações específicas previstas na cláusula, que restringia a expansão da capacidade produtiva da Marfrig na planta de Várzea Grande, em Mato Grosso. O Cade determinou a alteração da cláusula para (i) limitá-la aos estados onde os ativos seriam adquiridos; (ii) suprimir a vedação de instalação de plantas de abate na América do Sul quando a produção for destinada ao Brasil, Chile e outras jurisdições; (iii) reduzir o escopo da dimensão produto para excluir, portanto, as restrições à atividade de abate de ovinos no território brasileiro; e (iv) excluir o limite de expansão, pela Marfrig, na planta de Várzea Grande. O Tribunal manteve o prazo de cinco anos e a proibição de expansão, pela Marfrig, por meio da abertura ou aquisição de novas plantas nas localidades restritas na cláusula em questão.
O Tribunal determinou, ainda, que a Minerva deverá vender a planta de abate e desossa de bovinos em Pirenópolis, em Goiás, de modo a desfazer a sobreposição nessa localidade.
SG avalia o enquadramento como contratos associativos em dois casos importantes: Latam/Decolar, e Novelli/Grupo Recicla BR (Latasa)
Em julho de 2024, a SG decidiu pelo não conhecimento de parceria contratual vertical celebrada entre Latam e Decolar para desenvolvimento, manutenção e operação de plataforma de vendas pela internet (um hotsite). Nos termos do acordo, a Decolar desenvolveria e administraria um hotsite, por onde ofereceria seus produtos turísticos a clientes originados no portal de vendas de passagens da Latam. (AC n° 08700.003964/2024-18).
As partes notificaram essa parceria ao Cade em caráter ad cautelam por entenderem que não se qualificaria como um ato de concentração. Ao analisar se a parceria poderia ser classificada como um contrato associativo para fins de notificação obrigatória, a SG concluiu que, no caso, estariam ausentes ao menos dois dos quatro critérios cumulativos previstos pela Resolução Cade nº 17/2016 para essa finalidade. Portanto, a parceria não configuraria um contrato associativo.
Sobre o estabelecimento de empreendimento comum (um dos critérios cumulativos previstos na referida Resolução), a SG fixou alguns parâmetros que normalmente apontam para a presença desse critério – e que não estariam presentes no caso em tela:
- A impossibilidade de que a atividade objeto do contrato fosse prestada de forma isolada (ou seja, independentemente do contrato);
- Existência de estrutura de governança a reger decisões conjuntas entre as partes;
- Probabilidade de compartilhamento de informações concorrencialmente sensíveis;
- Existência de ações conjuntas de marketing.
Nenhum desses critérios foi observado no caso concreto. Quanto à análise de compartilhamento de riscos ou resultados (outro critério cumulativo para a configuração de contrato associativo), a SG também entendeu que, embora houvesse no contrato mecanismos de compartilhamento assimétrico de resultados, não havia compartilhamento de riscos ou custos. Por fim, com relação ao terceiro critério (concorrência no mercado relevante objeto da parceria), a SG ressaltou que a operação ensejava relações verticais potenciais entre as atividades das partes, mas identificou relação de concorrência (ainda que irrisória) entre as atividades das partes no mercado de comercialização de pacotes turísticos on-line. Assim, conservadoramente considerou cumprido apenas esse critério, além do requisito objetivo de duração mínima da parceria (dois anos).
Essa decisão ocorre em um contexto importante de discussões sobre o enquadramento de contratos verticais como contratos associativos. Em junho de 2024, a SG decidiu pelo conhecimento de um contrato de fornecimento de produtos de alumínio da Novelis para o Grupo Recila BR (Latasa) (AC nº 08700.003099/2024-00). A SG reconheceu que os critérios da Resolução Cade nº 17/2016 devem ser preenchidos cumulativamente, mas indicou que a ausência de relação horizontal entre as partes no contexto do contrato não afasta o critério de concorrência. Segundo a SG, tal critério contempla tanto relações horizontais quanto verticais.
SG apura aquisições de startups de inteligência artificial (IA) por plataformas digitais
Em outubro de 2024, a SG instaurou três APACs para apurar eventual necessidade de notificação e análise (i) da parceria entre Anthropic e Amazon (APAC nº 08700.005962/2024-55); (ii) da parceria entre Mistral AI e Microsoft (APAC nº 08700.005961/2024-19); (iii) de contrato entre Character.ai e Google (APAC nº 08700.005638/2024-37).As investigações se iniciaram a partir de denúncias feitas, em agosto de 2024, pela Coordenação-Geral de Análise Antitruste 5 (SG), com base em notícias sobre suposta “aquisição silenciosa” da Character.ai pelo Google e em comunicado de imprensa da Competition and Markets Authority (a CMA), informando que estava coletando informações sobre as parcerias Amazon/Anthropic e Microsoft/Mistral AI.
- A parceria Amazon/Anthropic envolveu (i) a expansão da colaboração não exclusiva já existente entre as empresas para desenvolver inteligência artificial generativa e melhorar o acesso a IA; e (ii) um investimento minoritário e sem controle, pela Amazon, na Anthropic por meio de duas notas conversíveis;
- Por sua vez, a parceria Microsoft/Mistral AI envolveu (i) o compromisso de a Mistral utilizar a infraestrutura Azure da Microsoft por um período determinado e a disponibilizar seus principais modelos comerciais e variantes na plataforma Azure por um período específico; (ii) o investimento, pela Amazon, de €15 milhões em títulos conversíveis da Mistral, que poderão se converter em participação acionária futura; e (iii) a possibilidade de colaborações futuras em pesquisa e desenvolvimento, incluindo o treinamento de modelos específicos da indústria e suporte para cargas de trabalho do setor público europeu;
- No caso da operação Character.ai/Google, as empresas celebraram um License and Release Agreement, que liberou um grupo de funcionários da Character.ai, residentes nos EUA, de seus empregos na empresa, com a inclusão de uma licença não exclusiva para determinadas tecnologias da startup, conforme resposta do Google à SG. O Google também reforçou que a Characater.ai continua sendo independente, sem qualquer controle ou influência do Google.
As duas primeiras operações foram também investigadas por outras autoridades de defesa da concorrência. Em abril de 2024, a CMA enviou convite para terceiros interessados opinarem se as parcerias Amazon/Anthropic e Microsoft/Mistral AI estão de acordo com a legislação antitruste do Reino Unido e seus possíveis impactos. Ao avaliar se as parcerias resultariam na criação de uma situação de fusão relevante (“relevant merger situation”) sob o UK Enterprise Act de 2002 e sobre seus possíveis impactos, concluiu, em maio de 2024 (sobre a parceria Microsoft/Mistral AI) e em setembro de 2024 (sobre a parceria Amazon/Anthropic), que as parcerias não se qualificavam para uma investigação mais aprofundada – os faturamentos registrados pelas empresas de IA, no Reino Unido, não excediam £70 milhões, nem representavam 25% ou mais do mercado. Com isso, a CMA arquivou as investigações.
O Cade, por sua vez, segue investigando as operações.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Direito Concorrencial do Mattos Filho.