Cade compensa, em multa por infração concorrencial, valor pago por empresa condenada pela CGU
Temas como leniência parcial, Termo de Compromisso de Cessação e aumento no número de acordos de leniências também foram recentemente analisados pelo Tribunal
O Tribunal do Cade, ao fixar o valor de multa à Construtora OAS S.A. por infração à ordem econômica, em julgamento de maio de 2024, entendeu ser possível a compensação do valor de multa já paga pela empresa à Controladoria-Geral da União (CGU), pelos mesmos fatos investigados, no contexto da investigação de suposta prática de cartel em licitação.
O caso se relaciona a licitação realizada pela Secretaria de Obras do Governo do Estado do Rio de Janeiro para a contratação de serviços de engenharia e construção para urbanização do Complexo do Alemão, Complexo de Manguinhos e Comunidade da Rocinha no Rio de Janeiro/RJ, conhecida como “PAC Favelas” (Processo Administrativo nº 08700.007776/2016-41).
O Presidente do Cade, que teve o voto vencedor, exemplificou que um cartel em licitação pode ser simultaneamente enquadrado como ilícito na Lei de Defesa da Concorrência, na Lei Anticorrupção e na Lei de Improbidade Administrativa, pois essas normas visam proteger o caráter competitivo das licitações. Contudo, a seu ver, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) estabelece que as sanções aplicadas a um agente devem ser consideradas na dosimetria de outras sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato, o que permitiria o abatimento de eventual multa já paga à CGU, caso a multa da autoridade concorrencial fosse superior. Por outro lado, o Presidente indicou que uma absolvição pela CGU não vincularia o Cade.
Tribunal do Cade discute critérios de redução de multa para signatários de acordo de leniência parcial
Também em julgamento de maio de 2024, o Plenário discutiu a dosimetria da multa aplicada à Medtronic Comercial Ltda., empresa signatária de acordo de leniência parcial em investigação que apurou um suposto cartel no mercado nacional de órteses, próteses e materiais médicos especiais (Processo Administrativo n. 08700.003699/2017-31). Diferentemente da leniência total, o acordo de leniência parcial pode ser firmado quando o Cade já possui conhecimento prévio da suposta infração concorrencial, mas não dispõe de provas para assegurar a condenação. Para esses casos, com o objetivo de incentivar e fortalecer o programa de leniência antitruste, a legislação prevê que a alíquota a ser aplicada para o cálculo da multa do beneficiário da leniência não deve ser superior à menor das alíquotas aplicadas aos demais coautores, e deve haver redução de 1/3 a 2/3 da penalidade aplicável.
Diante da ausência de parâmetros mais claros na regulação do Cade, o Conselheiro-Relator Luis Braido havia definido a multa para a empresa que havia celebrado o acordo de leniência parcial utilizando, como base de cálculo, a menor multa aplicada aos demais coautores da infração e, em seguida, aplicou um desconto de 2/3, totalizando uma multa de cerca de R$ 28 milhões. O Conselheiro Victor Oliveira divergiu e sugeriu que a alíquota-base para a signatária do acordo de leniência parcial deveria ser inferior à alíquota da multa imposta a outros representados e à alíquota utilizada para o cálculo de contribuição pecuniária de representados que haviam celebrado Termos de Compromisso de Cessação (TCC) com o Cade no mesmo processo. Assim, entendeu que a alíquota máxima a ser aplicada ao beneficiário da leniência parcial seria de 12% (percentual aplicado a uma das empresas que firmaram TCC), reduzindo-a para 9%. Por fim, sobre o valor resultante da aplicação da alíquota, foi aplicado o fator redutor de 2/3, resultando em uma multa de cerca de R$ 17 milhões, significativamente inferior ao inicialmente proposto pelo Conselheiro-Relator. O voto do Conselheiro Victor Oliveira foi acompanhado pelos demais Conselheiros do Tribunal do Cade.
O precedente trouxe parâmetros importantes para atribuir maior previsibilidade para os interessados em celebrarem acordo de leniência parcial com o Cade.
Tribunal do Cade rejeita proposta de acordo ao exigir efetiva colaboração pelo proponente
O Tribunal do Cade rejeitou, em agosto de 2024, proposta de Termo de Compromisso de Cessação apresentada pela Qiagen Biotecnologia Brasil Ltda. no contexto da investigação de suposta prática de conduta anticompetitiva no mercado de trabalho da indústria de healthcare (Processo Administrativo n. 08700.004548/2019-61). O Tribunal entendeu ser insuficiente a colaboração da proposta de TCC à investigação em curso pela Superintendência-Geral. De acordo com informações públicas, seis empresas investigadas no mesmo processo já haviam celebrado TCC com o Cade.
O caso pode sinalizar um maior rigor da atual composição do Tribunal do Cade sobre TCCs que não trazem uma contribuição significativa com a investigação em curso.
Superintendência-Geral do Cade instaura novas investigações originadas de acordos de leniência tendo por objeto trocas de informações sensíveis e o mercado de trabalho
Em 2024 houve aumento no número de acordos de leniência firmados pelo Cade. Esta seção aborda algumas investigações que foram instauradas como resultado de alguns desses acordos.
Em julho de 2024, a Superintendência-Geral do Cade instaurou investigação contra seis montadoras alemãs e pessoas físicas relacionadas, para apurar suposta prática de troca de informações concorrencialmente sensíveis no mercado internacional de veículos automotores leves, destinados ao transporte de passageiros no Brasil (Processo Administrativo n. 08700.000478/2024-30). De acordo com a Superintendência-Geral do Cade, as informações e os documentos apresentados pelos signatários do acordo de leniência evidenciariam trocas de informações comerciais e concorrencialmente sensíveis para coordenar atividades de pesquisa e desenvolvimento no âmbito de grupos de trabalho temáticos frequentes, que se reuniam nas sedes das empresas de forma alternada. Trata-se de nova investigação do Cade especificamente sobre a conduta de troca de informações sensíveis (isto é, não atrelada à formação de um cartel clássico, em que há, por exemplo, combinação de preços e divisão de mercado).
Em setembro, a Superintendência-Geral do Cade instaurou investigação contra 11 empresas e pessoas físicas relacionadas para apurar supostas condutas anticompetitivas no mercado brasileiro de empilhadeiras e no mercado de trabalho desse setor (Processo Administrativo nº 08700.007061/2024-06). De acordo com a nota técnica de instauração, o acordo de leniência forneceu indícios de que houve acordos anticompetitivos e propostas de cobertura, trocas de informações concorrencialmente sensíveis de forma sistemática, e acordo de não contratação de trabalhadores (conhecido como no-poach agreement).
Além disso, a Superintendência-Geral do Cade instaurou em outubro dois processos administrativos para apurar supostas trocas de informações sensíveis envolvendo o mercado de trabalho, como salários, benefícios, bônus, previdência privada e plano de saúde. Os processos foram originados a partir de acordos de leniência e mais de 30 empresas são investigadas em cada caso (Processo Administrativo n. 08700.000992/2024-75, sobre o setor de produtos de consumo, e Processo Administrativo n. 08700.001198/2024-49, envolvendo multinacionais de diferentes setores).
As novas investigações indicam que trocas de informações sensíveis e práticas que podem afetar o mercado de trabalho continuam atraindo forte escrutínio do Cade e merecem especial atenção pelas empresas.
Até o momento neste ano, de acordo com os dados mais atuais disponibilizados pelo Cade, já foram assinados quatro acordos de leniência. O número supera as estatísticas dos últimos anos, em que dois acordos foram assinados em 2023 e apenas um em 2022, como reportado em edição anterior do nosso boletim.
Ainda sobre o tema, a Superintendência-Geral do Cade instituiu em agosto um grupo de trabalho, em parceria com o Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), para discutir com advogados, servidores públicos, acadêmicos e outros interessados os desafios enfrentados antes, durante e após as negociações de acordos de leniência com o Cade. O objetivo do grupo é identificar eventuais oportunidades de aperfeiçoamento no programa de leniência da autoridade. As reuniões do grupo de trabalho ocorreram até o final de outubro de 2024, e um dos resultados será a posterior revisão do atual Guia do Programa de Leniência do Cade, cuja minuta foi recentemente submetida a consulta pública.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Direito Concorrencial do Mattos Filho.