STJ fixa a prevalência do Código Florestal para APPs ciliares em áreas urbanas
Julgamento reflete posicionamentos anteriores da prevalência do Código Florestal sobre a Lei de Parcelamento de Solo Urbano
A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou, em 28 de abril, o Tema 1010 dos recursos repetitivos, que tinha como objeto a definição sobre a extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada. O conflito normativo submetido ao STJ foi entre os limites dessa faixa que são estabelecidos pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n.º 6.9766/1979) e pelo Novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012).
Tais faixas não edificáveis são as denominadas Áreas de Preservação Permanente (APP) ciliares ou ripárias, cuja intervenção humana é extremamente restritiva, podendo ocorrer tão somente para o acesso de pessoas e animais para obtenção de água e nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou para realização de atividades de baixo impacto ambiental, nos termos do art. 8º e art. 9º do Novo Código Florestal. Com efeito, quanto maior a largura do curso d’água, maior será a extensão da área que não pode se destinar a fins industriais ou até mesmo residenciais.
A Lei de Parcelamento do Solo Urbano prevê, em seu art. 4º, caput e inc. III, que as APPs das faixas marginais de cursos d’água terão um limite mínimo de 15 metros, sendo, portanto, vedada a intervenção nessa faixa.
Já o Novo Código Florestal, de maneira semelhante ao que já era previsto pelo Código Florestal antigo, regulamentado pela Resolução CONAMA 303/2002, estabelece que tal recuo varia de 30 a 500 metros, a depender da largura do curso d’água, nos termos do art. 4º, inc. I.
O que se tem, portanto, é que a aplicação da legislação florestal acarreta uma APP ciliar de maior extensão nas áreas urbanas consolidadas, conquanto a Lei de Parcelamento do Solo Urbano permite maiores intervenções em razão da menor faixa não edificável.
Julgamento do Tema 1010
Como era esperado, a Primeira Seção do STJ entendeu pela prevalência do Novo Código Florestal e, consequentemente, pela maior extensão da faixa das APPs ciliares. O ministro relator do Tema Repetitivo 1010, Benedito Gonçalves, afirmou que “a definição da norma a incidir sob o caso deve garantir a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente natural e ao meio ambiente artificial, em cumprimento ao disposto no art. 225 da Carta da República”.
Ainda segundo o ministro, “exsurge inarredável que a norma inserta no Novo Código Florestal, o art. 4º, caput e inc. I, ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, sendo especial e específica para o caso, em face do previsto no art. 4º, inc. III da Lei do Parcelamento do Solo, é que deve reger a proteção das APPS ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas”.
Com isso, o ministro propôs a fixação da seguinte tese: na vigência do Novo Código Florestal, a extensão não edificável das faixas marginais de qualquer curso d’água perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo art. 4º, caput e inc. I, alíneas ‘a’, ‘b’, ‘c’, ‘d’ e ‘e’ a fim de garantir a mais ampla proteção ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade. Após a leitura do voto, o ministro Benedito Gonçalves colocou em debate a possível modulação de efeitos, para que a tese fixada tenha efeitos a partir do trânsito em julgado do Tema Repetitivo 1010.
Em seguida, o ministro Herman Benjamin pediu a palavra para sugerir uma modificação na redação da tese, assim como para opinar de forma contrária à modulação de efeitos. Em sua visão, seria desnecessária a modulação de efeitos, uma vez que mesmo na vigência do Código Florestal antigo, o STJ já mantinha entendimento no sentido de que seria aplicável a lei florestal, uma vez que mais protetiva ao meio ambiente e mais específica, de modo que a insegurança jurídica adviria justamente da modulação de efeitos, pois se permitiria fossem beneficiados aqueles que utilizaram do espaço protegido de maneira inadequada. Prosseguiu o ministro afirmando que a modulação seria permitir a aplicação da teoria do fato consumado, o que inclusive contraria súmula do próprio STJ.
Após a fala do ministro Herman Benjamin, o ministro Benedito Gonçalves imediatamente acolheu sua opinião e retirou a possibilidade de modulação de efeitos, o que foi acompanhado à unanimidade pelos demais ministros da Primeira Seção.
Assim, restou fixada a seguinte tese: “na vigência do Novo Código Florestal, Lei n.º 12.651/2012, a Área de Preservação Permanente de qualquer curso d’água perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo art. 4º, caput e inc. I, alíneas ‘a’, ‘b’, ‘c’, ‘d’ e ‘e’ a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade”.
Necessária observância da função ambiental das APPs
A despeito da fixação de tese que assegura a aplicação do Novo Código Florestal para as APPs ciliares situadas em áreas urbanas consolidadas, é necessário que seja sempre levada em conta a função ambiental das APPs, que é justamente o que as caracteriza.
Isso significa que eventuais edificações em imóveis urbanos cujas APPs tenham perdido suas funções ambientais não poderão sofrer repressão do poder público, com eventual aplicação de sanções, sejam cíveis ou administrativas.
Justamente nessa linha que o Conselho Estadual do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Consema) expediu a Deliberação Normativa Consema 3/2019, que reconhece como “atividade de baixo impacto ambiental a implementação ou a regularização de edificações em imóveis urbanos cujas Áreas de Preservação Permanente (APPs) tenham perdido suas funções ambientais”. Para o Consema, considera-se que uma APP que perdeu sua função ambiental quando, simultaneamente:
- Não mais exerça a função de preservação de recursos hídricos;
- Sua ocupação não comprometa a estabilidade geológica;
- Não desempenhe papel significativo na preservação da biodiversidade;
- Não seja relevante para facilitar o fluxo gênico de fauna e de flora;
- Sua preservação não tenha relevância para a proteção do solo ou para assegurar o bem-estar das populações humanas.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), um dos Estados mais urbanizados da federação, segue o entendimento do Consema e, em ações em que se busca a demolição de construções realizadas em áreas que, na letra da lei, seriam consideradas APPs, tem firmado o entendimento de que não havendo função ecológica a ser protegida é desproporcional o desfazimento de edificações nas faixas marginais de cursos d’água inseridos em contextos urbanos consolidados.
Esse entendimento do Consema e do TJSP traz uma razoabilidade e segurança jurídica necessárias para a verificação de APPs em perímetros urbanos, em razão da consolidação de inúmeras áreas. Espera-se que ao interpretar o Tema Repetitivo 1010 o poder público como um todo considere a função ambiental das APPs, permitindo-se a manutenção daquelas edificações nas áreas cuja função ambiental não mais exista.
Para mais informações sobre a aplicação do Código Florestal e APP em áreas urbanas, conheça a prática de Ambiental do Mattos Filho.
*Com colaboração de Henrique Borges.