Metaverso, interoperabilidade e propriedade intelectual: novos (velhos) desafios
Reflexões sobre a seleção de modelos de acesso à tecnologia que terão consequências importantes para a configuração do ambiente virtual
A crescente valorização do metaverso como espaço virtual de interação imersiva cria importantes oportunidades a empresas e organizações. De fato, considerando que o metaverso se propõe a ser uma extensão da realidade, as possibilidades de explorá-lo são bastante amplas, e incluem atividades como a realização de reuniões “presenciais” entre trabalhadores remotos, a compra de itens de vestuário (virtuais ou híbridos) e até treinamento de procedimentos médicos complexos, dentre outras possibilidades ainda não mapeadas.
Esse potencial atrai o interesse não só para a criação de formas de atuação no metaverso, como também para o desenvolvimento de “metaversos” independentes. Não à toa, já existe um número considerável de empresas ofertando esses espaços e tantas outras anunciando que o farão em breve.
“Metaversos” e desafios de acesso
No entanto, a existência de empreendimentos paralelos, cada qual com suas próprias estruturas, regras e tecnologias proprietárias, pode ter efeitos indesejados no futuro. Isso porque, na ausência de compatibilidade entre as tecnologias empregadas por cada plataforma, a tendência é que os usuários afunilem suas preferências em direção a apenas um metaverso ou a alguns poucos, em detrimento dos demais. Por exemplo, se um item de vestuário virtual não puder ser transposto de uma plataforma para outra, ou se cada plataforma demandar seu próprio gadget para acessar o seu metaverso, espera-se que os usuários foquem sua atenção e recursos em um número limitado de plataformas.
É interessante notar que, conforme ensina a economia comportamental, a escolha dos usuários não necessariamente ocorre com base em critérios racionais, como a qualidade. Nesse cenário, seria possível que tecnologias inferiores se tornassem as dominantes, enquanto outras superiores seriam preteridas.
Tecnologias padronizadas
Uma forma de combater as ineficiências geradas por uma eventual disputa entre diferentes tecnologias é a implementação de standards tecnológicos pelas plataformas. Na esteira de outras tecnologias padronizadas, como Wi-Fi ou 4G/LTE, a ideia é incentivar a inovação e a concorrência no mercado, e não pelo mercado. Nesse sentido, embora existam diferentes fabricantes e modelos de smartphones, o futuro é que todos acessem, por exemplo, redes móveis 5G. Igualmente, ao invés de cada plataforma desenvolver e ofertar diferentes tecnologias de gadgets, como óculos de realidade virtual, o objetivo é criar uma base tecnológica comum que permita a interoperabilidade, isto é, o uso dos óculos em todas ou na maior parte das plataformas.
Em antecipação às potencialidades do metaverso, iniciativas de padronização e interoperabilidade, com abordagens variadas, já começaram a surgir. Há grupos colaborativos formados por indivíduos, como o Open Metaverse Interoperability Group (OMI Group), que busca desenvolver repositórios abertos de soluções para o metaverso. Mas também existe o Metaverse Standards Forum (MSF), coalizão de empresas de tecnologia e organizações internacionais de padronização, a exemplo do World Wide Web Consortium (W3C), que pretende coordenar e dar suporte à criação de standards em diversas áreas relevantes para o metaverso, como sistemas geoespaciais, internet das coisas (IOT) e transações financeiras.
De toda sorte, é preciso ter em mente que a seleção e a implementação de standards é um processo complexo. Para que o standard seja bem-sucedido, é necessário que a tecnologia padronizada esteja amplamente acessível, o que pode ser desafiador se parte ou a totalidade dela for protegida por propriedade intelectual (em sua maioria, patentes), cujo uso depende de anuência do seu titular.
Potenciais discussões
Apesar dos esforços promovidos pelas organizações internacionais de standards em coordenar os diferentes interesses envolvidos nesse processo – tendo algumas delas, inclusive, estabelecido em suas políticas que o licenciamento sob termos justos, razoáveis e não discriminatórios (FRAND, no acrônimo em inglês) é condição para que tecnologias proprietárias sejam incluídas no standard –, as últimas décadas foram marcadas por disputas sobre patentes essenciais à implementação de standards (conhecidas como standard-essential patents – SEP ou patentes essenciais), sobretudo aquelas voltadas a standards de redes móveis 3G e 4G.
Mesmo após anos de discussão, não há consenso se a necessidade de acesso amplo aos standards impõe, ou não, restrições ao direito dos titulares de patentes essenciais. Dentre outras questões, ainda se debate se o titular pode recusar uma solicitação de licença de patente essencial, em especial quando lhe for mais conveniente, em um mercado com múltiplos níveis de produção e valor (fabricantes de componentes e fabricantes do produto final), negociar com apenas um e preterir os demais. Outra questão que permanece em aberto é se a essencialidade da tecnologia deve limitar o valor dos royalties para o licenciamento da patente. Seja como for, é fato que uma patente essencial tem um grande potencial de licenciamentos a terceiros, o que pode atribuir ao seu titular uma posição privilegiada (e desejada) nos mercados que implementam a tecnologia padronizada.
Face a esse histórico, é crucial refletir sobre como evitar que a interoperabilidade se torne gatilho para a replicação, no metaverso, de problemas já conhecidos, decorrentes do acesso a tecnologias padronizadas.
Tal reflexão perpassa pela avaliação e sopesamento dos objetivos e interesses existentes sobre o metaverso. Hoje, discussões sobre a manutenção de estruturas tradicionais de propriedade intelectual (que permitam, portanto, que os titulares exerçam seu direito de exclusividade sem maiores restrições) convivem com iniciativas voltadas a tornar o metaverso um ambiente de inovação e código abertos, em que, no limite, as licenças de uso sejam concedidas de forma irrestrita e gratuita. A princípio, esta segunda opção estaria em linha com ideia de descentralização inerente à chamada Web 3.0, em que o metaverso estaria inserido.
Por ora, se considerarmos as organizações internacionais de standands já envolvidas no processo de seleção de standands para o metaverso, há no horizonte um misto das duas possibilidades supramencionadas. Por exemplo, desde 2004, o W3C exige que todas as tecnologias necessárias à implementação de standards da web (voltados a web semântica, arquitetura web, web design, dentre outros) sejam licenciadas gratuitamente. Já o Open Geospatial Consortium (OGC), responsável por standards de sistemas de representação de características geográficas, também demanda o licenciamento das tecnologias patenteadas incluídas no standard, mas admite a cobrança de royalties.
Embora essas preocupações pareçam prematuras (afinal, sequer existe uma definição madura de metaverso), a seleção de modelo(s) de acesso à tecnologia terá consequências importantes para a configuração do metaverso, principalmente se considerarmos a enorme quantidade e a variedade de tecnologias envolvidas. Assim, olhar para experiências passadas pode contribuir à construção de um metaverso mais alinhado às necessidades e interesses atuais.
Para mais informações, acompanhe a série especial Propriedade Intelectual e Metaverso.