

Uso e proteção de marcas no metaverso: desafios jurídicos à luz da legislação brasileira
Empresas buscam formas de garantir a manutenção e ampliação de seus direitos marcários em ambientes virtuais e transfronteiriços que se apresentam como metaversos
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A rápida e constante propagação do conceito de metaverso, a crescente expectativa sobre oportunidades de negócios que poderão ser exploradas neste ambiente e o estágio atual da tecnologia utilizada em devices que servem de conexão entre o mundo real e virtual, indicam que de fato podemos estar diante de uma transformação disruptiva no curto prazo.
Mais do que o oferecimento de um espaço virtual para interação entre pessoas, verifica-se que o metaverso poderá ser um ambiente único para que empresas possam aproveitar a proximidade com o seu público alvo para oferecer a melhor experiência possível (muitas vezes vividas de forma integrada e imersiva) entre diferentes mundos. Naturalmente, os sinais distintivos neste universo também importam e são diferenciais competitivos que merecem atenção por parte das empresas.
Com trocas cada vez mais intensas em uma zona multiconectada, que permite criações e compartilhamentos entre diversos entes, empresas passam, cada vez mais, a adotar novas estratégias para manter e monetizar a reputação e o status construídos no mundo real também no mundo virtual. A conquista de novos espaços e públicos no metaverso pelas empresas pode ocorrer por estratégias variadas, como a criação de versões digitais de objetos identificados por marcas registradas no mundo físico. Observa-se, neste sentido, que várias empresas já estão engajadas no mundo virtual, produzindo NFTs vestíveis que os usuários podem comprar por meio de seus avatares.
Além do aproveitamento das oportunidades trazidas com essa nova realidade, é importante que empresas se preocupem em fiscalizar usos não autorizados no cenário virtual e identificar violações às suas marcas.
Uma pesquisa recentemente conduzida pela World Trade Mark Review identificou diversas marcas/logomarcas sendo comercializadas por milhares de dólares na plataforma NFT OpenSea, sem autorização dos titulares. A investigação identificou que a logomarca da empresa Supreme, por exemplo, era comercializada por U$ 3 milhões na plataforma. Empresas do mercado da moda de luxo também já encontraram produtos virtuais não autorizados à venda na plataforma Roblox Metaverse, por meio da qual usuários podem comprar acessórios não autorizados por seus titulares.
Por esse motivo, o registro de marcas junto às autoridades oficiais de cada país é forma relevante para maximizar a proteção dos ativos utilizados no contexto virtual.
Como se dá a proteção de marcas no Brasil
Marca é o ativo de propriedade industrial que permite distinguir produtos e serviços de outros do mesmo gênero, de mesma atividade, semelhante ou afins. Como explicado em nosso Guia de Propriedade Intelectual, o registro de uma marca é o mecanismo capaz de proteger e garantir o uso exclusivo de certo ativo.
Pela legislação brasileira, há três princípios fundamentais que regem a proteção marcaria:
- Princípio do sistema atributivo: define que a propriedade e o uso exclusivo de determinada marca somente são adquiridos após o seu devido registro junto à autoridade competente, no caso, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Como regra geral, portanto, a quem primeiro depositar um pedido deve-se a prioridade ao registro. Como uma das exceções à regra geral, tem-se o direito de precedência ao usuário anterior, uma exceção a tal regra, como detalhado em artigo sobre o tema;
- Princípio da especialidade: dispõe que a proteção conferida a determinada marca recai somente sobre produtos ou serviços correspondentes às atividades desenvolvidas pelo requerente da marca, a fim de distingui-los de outros produtos ou serviços idênticos, similares ou afins;
- Princípio da territorialidade: restringe a proteção de uma marca registrada junto a determinada entidade aos limites territoriais do país, ou região, em que a marca é registrada (no caso, ao território brasileiro), único espaço em que ela pode ser utilizada com exclusividade, conforme determina o artigo 129 da Lei da Propriedade Industrial (LPI). Tal princípio foi consagrado na Convenção da União de Paris de 1883, que estabeleceu a proteção para ativos de propriedade industrial nos territórios em que tenham sido concedidos.
Desafios do uso e proteção de marcas no metaverso
Considerando que a proteção marcaria no Brasil pauta-se nos princípios acima destacados, a utilização e proteção de sinais distintivos nos diversos metaversos já desenvolvidos ou que ainda serão criados causa dúvidas e preocupações.
Nota-se, de início, que o ambiente do metaverso, realidade transfronteiriça, acaba por relativizar o princípio da territorialidade. Atualmente, entidades privadas tendem a concentrar a criação de metaversos, tornando-se responsáveis por definir regras privadas para reger seus próprios ambientes virtuais.
Nesse contexto, termos e condições específicos podem reger a utilização de ativos de propriedade intelectual dentro dos respectivos metaversos. Os provedores de aplicação de internet podem, inclusive, implementar regras e políticas internas para combater atividade ilícitas relacionadas ao uso de marcas registradas, como, analogicamente, já ocorreu com a Trademark Clearinghouse. Tal solução foi criada em 2013, momento em que novas extensões de nomes de domínios passaram a ser permitidos e temeu-se que terceiros poderiam apropriar-se indevidamente de marcas já registradas no momento de registro de certos nomes de domínio. A fim de evitar violações a marcas registradas nesse processo, a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) criou a Trademark Clearinghouse, uma database centralizada de marcas registradas globalmente.
Conflitos envolvendo uso indevido de marcas, por exemplo, ensejarão discussões sobre a legitimidade de aplicação dos termos e condições privados para dirimir conflitos, ou mesmo para definir-se qual legislação será aplicável para resolução da disputa no ambiente virtual.
Como consequência da relativização do princípio da territorialidade, há também problemáticas ocasionadas pelo potencial conflito entre o princípio do sistema atributivo, regente da legislação brasileira e de outros países, frente ao princípio do sistema declarativo ou misto, utilizados em outras jurisdições
Antecipando conflitos de jurisdições para dirimir disputas virtuais, em razão da inexistência de barreiras territoriais claras, não é possível afirmar se os direitos sobre uma marca criada no metaverso ou para o ambiente poderá infringir os direitos de algum titular de marca idêntica ou semelhante devidamente registrada em determinada jurisdição com acesso ao metaverso.
Apesar das incertezas quanto ao tema, a fim de evitar possíveis entraves e à luz da legislação vigente, importante que o titular de uma marca que pretenda expandir sua proteção e uso no metaverso busque o registro perante as autoridades oficiais especificamente para designar o seu uso em ambientes virtuais (utilizando-se, portanto, especificações que reflitam essa característica).
Efeitos da utilização de marcas
Empresas consolidadas do mercado já passaram a adotar essa estratégia. Em outubro de 2021, uma marca esportiva depositou uma série de novos pedidos de registro para tênis e roupas virtuais, a fim de proteger suas famosas marcas. Uma grife de luxo também depositou pedidos de registro para itens que incluem serviços de loja com roupas e acessórios virtuais, bem como roupas e acessórios virtuais online para uso em ambientes virtuais.
Na falta de regulamentações específicas sobre o tema hoje e com os rápidos avanços tecnológicos, é importante que as empresas que desejam inserir e utilizar suas marcas no metaverso sejam diligentes no processo de registro de marcas, ao menos nos territórios em que estas já forem utilizadas na realidade física.
É importante que empresas adotem estratégias de marketing e de proteção de seus ativos de propriedade intelectual que considerem não apenas as áreas de atuação atuais, mas também futuros escopos de aplicação de suas marcas. Recomenda-se, nesse sentido, que os pedidos de registro de marca sejam feitos incluindo expressamente especificações relacionadas à ambientes digitais, ainda que sejam necessários novos pedidos de registro de marca sob diferentes classificações.
Por isso, adotar uma robusta estratégia de proteção é uma necessidade do mundo de hoje, que poderá mitigar ou até evitar problemas futuros. Buscar a proteção adequada das marcas a serem utilizadas no metaverso certamente mitigará o risco de questionamentos e facilitará a tomada de ações caso alguma disputa venha a ocorrer no contexto cibernético. Uma lista adequada de atividades, bens e serviços para especificar e proteger os direitos de titulares de marcas pode ser preparada com a ajuda de um advogado.
As empresas devem, também, monitorar as plataformas virtuais como parte de sua estratégia de proteção de marcas, a fim de identificar usos não autorizados de seus ativos dentro dos diversos metaversos que se formam.
O cenário que hoje se desenha de forma incipiente com o metaverso assemelha-se ao contexto de dúvidas surgidas na década de 1990, com o surgimento da internet, que apresentou uma nova realidade sem fronteiras em sua época. Os titulares de marcas, portanto, precisarão adaptar-se a essa nova dimensão e delinear critérios para explorar e defender seus ativos, sendo certo que tribunais, governos, plataformas privadas e organizações internacionais também precisarão movimentar-se para atualizar a regulamentação sob essa nova perspectiva.
Para mais informações sobre estratégia de marcas, acompanhe a série especial Desafios jurídicos no posicionamento de marcas.
*Com colaboração de Ana Flávia Marques.