

A possibilidade de aplicação da proteção por desenho industrial aos produtos no metaverso
A discussão sobre a manufatura aditiva de obras e produtos protegidos por direitos de propriedade intelectual já é conhecida no mundo jurídico, mas ainda é bastante incipiente nesse novo ambiente
O artigo 95 da Lei nº 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial ou LPI) define desenho industrial (DI) como “a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial.”
Extraem-se da previsão legal os seguintes elementos dos desenhos industriais:
- Forma plástica: devendo haver a necessária visibilidade da criação, ou seja, uma configuração externa;
- Função ornamental: que diz respeito às características decorativas e acessórias à configuração da criação a fim de mudar a sua aparência;
- Proteção de um objeto tridimensional ou de um conjunto bidimensional;
- Necessidade de que o objeto seja suscetível de servir como tipo de fabricação industrial: de maneira que os objetos ou os padrões possam ser plenamente reprodutíveis em escala industrial com uniformidade predominante, sem haver desvios de configuração relevantes;
- Tese de que só se protejam objetos e não parte deles.
Adicionalmente, o Manual de Desenhos Industriais do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) dispõe que o desenho industrial precisa atender aos requisitos da novidade (de forma que não tenha sido conhecido antes do depósito feito no Instituto) e da originalidade (a criação deve ser distinta, apresentando-se de uma forma diferente das demais que lhe sejam anteriores).
Assim como outros ativos de propriedade industrial, os desenhos industriais são passíveis de registro e proteção perante o INPI, podendo ser apresentados em duas formas: padrões ornamentais, que consistem em um conjunto ornamental de linhas e cores que pode ser aplicado à superfície de um produto, como as estampas, por exemplo; e configuração aplicada, cuja criação seja tridimensional, sendo projetadas a altura, largura e profundidade, como por exemplo, os móveis, veículos e embalagens.
O registro do desenho industrial é importante, pois confere ao seu titular o direito de impedir terceiros de produzi-lo, usá-lo, colocá-lo à venda, vendê-lo ou importá-lo, sem a devida autorização para tanto. Tal proteção, no entanto, limita-se ao território nacional, devendo o titular registrar a sua criação nos demais locais em que pretende utilizá-la.
Não obstante, é importante destacar que o artigo 98 da LPI determina que não se considera desenho industrial qualquer obra de caráter puramente artístico, e que não são registráveis os desenhos industriais que, dentre outras hipóteses, aquele em que apresenta a forma necessária comum ou vulgar do objeto ou, ainda, aquela determinada essencialmente por considerações técnicas ou funcionais.
O fato é que desde muito antes das novas concepções e desdobramentos na representação de ativos digitais como temos hoje – os NFTs, por exemplo –, costuma-se dizer que os desenhos industriais são considerados por muitos como os ativos de propriedade intelectual que talvez mais representem a integração entre a tecnologia e a arte.
Isso porque o DI cuida de expor o design do produto ou sua aparência técnica a partir de um desenho que pode ser replicado no âmbito industrial. Podemos dizer que o DI é o esquema que vai gerar certo produto. Ou, para tornar o assunto mais próximo ao senso comum, podemos assemelhar o desenhista industrial à ideia de um designer de moda. Como exemplo de DI, podemos ter desde padrões aplicados à vestimenta até ícones de aplicativos para celular.
Nesse sentido, pensando na proteção e registro de um ativo como um DI, ressalta-se que estamos falando de um direito fundamental de exclusividade sobre a sua exploração comercial dentro de determinado território, conforme consolidado em nossa Constituição Federal, por meio do artigo 5º, incisos XXVII e XXIX.
DI no metaverso
Como se sabe, o metaverso vem com o condão de introduzir a realidade virtual em nosso cotidiano. Assim, a sua interseção com as diferentes formas de proteção dos direitos de propriedade intelectual se mostra cada vez mais relevante. Um ponto crucial dessa nova realidade é a eliminação de fronteiras dentro do ambiente virtual, reforçado ainda mais pelo metaverso. Esse ponto é de extrema relevância, uma vez que o limite territorial de extensão do direito é um dos pilares determinantes do campo da propriedade intelectual, no qual os DIs estão inseridos.
As transações comerciais envolvendo desenhos industriais no metaverso poderão permear desafios de caracterização do DI que passarão por aqueles designs desenvolvidos dentro do ambiente virtual, 100% digitais, assim como por aqueles elaborados fora do metaverso, mas que foram pensados para serem comercializados exclusivamente no metaverso.
Dentre os primeiros desafios que nos vêm à mente, destacamos: como garantir a originalidade e exclusividade de um desenho industrial colocado à venda no metaverso? Como não violar direitos sobre DIs de terceiros e não ter os seus próprios infringidos em um espaço sob constante discussão de jurisdição aplicável? Como regular a compra de um produto criado a partir de um DI dentro do metaverso? Como impor limites de responsabilidade e negociar parcerias para associações de DIs com outros direitos de propriedade intelectual em produtos a serem transacionados nesse ambiente? Como fiscalizar e opor-se a contrafações e atos de concorrência desleal dentro de uma realidade que pode ser paralelamente conflitante com a mesma situação no mundo real? Parece complexo, e de fato ainda é. A gama de possibilidades e preocupações jurídicas é significativa, uma vez que – naturalmente – ainda não temos muitas respostas (e quiçá regulação específica) para este tipo de comércio em realidades virtuais.
Ainda assim, algumas das discussões envolvendo essa realidade virtual transfronteiriça não são de todo novidade para alguns setores, como o mundo dos games. A indústria gamer, que soma significativa parcela da receita mundial, já experimenta, há alguns anos, diferentes nuances de proteção de propriedade intelectual para os ativos envolvidos.
De maneira geral, a proteção relativa aos jogos eletrônicos é comumente endereçada ao nosso sistema de direitos autorais em virtude da variedade de produtos que o conteúdo de um jogo pode abarcar, muito embora, ressalta-se, a questão possa ser objeto de discussões quanto a tal direcionamento e fracionamento dentro da PI. Filtrando ao caso dos DIs, por exemplo, essa fatia geralmente pode se direcionar aos acessórios que possibilitam a jogabilidade, como controles, consoles e dispositivos portáteis, bem como a itens desenvolvidos exclusivamente para o ambiente digital.
Embora inseridos no regime de propriedade intelectual, os desenhos industriais e os direitos autorais estão mergulhados em contextos diferentes. Enquanto a proteção conferida ao direito autoral prescinde de registro; a proteção concedida pelo Estado às criações enquadradas em desenhos industriais tem sua exclusividade – temporal e territorial – impostas de maneira mais restritiva. Isso implicará, por exemplo, na possibilidade de exploração comercial com exclusividade dentro de determinado território.
Para a correta comercialização de um produto originado a partir de um desenho industrial (seja por venda ou por licença), é preciso que este tenha sido devidamente registrado como tal. A obra autoral, por sua vez, se submete a critérios menos objetivos. Nesse caminho, o desenvolvimento de produtos exclusivamente virtuais e transacionados somente no metaverso nos força a pensar sobre se há limites de aproveitamento e fruição para quem os adquirir. Assim, emerge mais uma sensibilidade: a impressão 3D.
DIs e impressões 3D
Como temos visto no mercado, a tecnologia de impressão em 3D tem o potencial de desenvolver uma infinidade de materializações, desde materiais hospitalares de pequeno porte até coleções inteiras de moda.
Na interação entre desenhos industriais, impressões 3D e metaverso, é importante refletir que, na prática da realidade virtual há o potencial de se criar um ambiente no qual, em vez de ir a uma loja comprar um tênis, o usuário vai poder simplesmente interagir, comparar a analisar um produto em sua representação digital, “comprar o desenho do tênis” – ou obter uma licença de impressão única para fins particulares – dentro do metaverso e imprimir em sua própria casa, com sua impressora 3D.
A cadeia de titularidade, responsabilidade e entes licenciados da propriedade intelectual dentro dessa única hipótese pode ser bastante extensa. Nesse sentido, é basilar pensar se o uso pessoal de sua impressora 3D estará autorizado a qualquer tipo de impressão e como controlar isso, tanto sob aspecto contratual-jurídico como técnico. E mais: pensar até que ponto um uso é considerado particular; se haverá licença para tais impressões; quais serão os requisitos; e se haverá a possibilidade de aplicação industrial. E, havendo, se o direito original do designer ou do titular do estaria infringido ou já teria sido recompensado ou exaurido.
Independentemente do metaverso, a discussão sobre a manufatura aditiva de obras e produtos protegidos por direitos de propriedade intelectual já é conhecida no mundo jurídico, mas ainda bastante incipiente. A zona cinzenta do tema, dentro de PI, permeia sobre a necessidade – ou não – de alterações legislativas, interpretativas ou somente medidas práticas de bloqueios e controle tecnológico sobre as impressoras.
Na ausência de regulação específica, é importante valer-se de princípios fundamentais relacionados à essa esfera do direito, tendo como analogia conceitos e experiências que nos são familiares – como a licença de uso particular para exibição privada de filme, também conhecida como “compra de DVD”.
Além disso, acompanhar os avanços e debates jurídicos, assim como observar e aprender a partir dos modelos e paralelos práticos que vão surgindo pelo caminho, apresentam-se como boas alternativas enquanto ainda tateamos o desconhecido. A postura ativa e algumas boas práticas são ferramentas-chave no sentido de tentar antever alguns entraves práticos e regulatórios que naturalmente poderão se impor aos DIs no metaverso, sem que isso impeça o fluxo do desenvolvimento social e tecnológico imposto pelas novas realidades.
Para mais informações, acompanhe a série especial Propriedade Intelectual e Metaverso.
*Com a colaboração de Nathalia de Assis Siqueira.