Novo marco legal de pesquisa clínica com seres humanos é aprovado no Brasil
Sancionada a lei que estabelece direitos e deveres para pesquisadores, patrocinadores e participantes de pesquisas clínicas com seres humanos
Assuntos
Após mais de sete anos de tramitação no Congresso Nacional, foi sancionada e publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 28 de maio de 2024, a Lei nº 14.874, que regula a pesquisa clínica com seres humanos no Brasil.
O projeto original foi aprovado pelo Senado Federal em 2017 (PLS nº 200/2015) e encaminhado para revisão à Câmara dos Deputados (Projeto nº 7082/217), tendo retornado à casa iniciadora, na forma de substitutivo, e aprovado em 23 de abril de 2024 (PL nº 6007/2023).
A nova lei está dividida em nove capítulos com temas como a instituição do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, funcionamento dos Comitês de Ética em Pesquisa, parâmetros de proteção e remuneração dos sujeitos da pesquisa, responsabilidades do pesquisador e do patrocinador, dentre outros aspectos, conforme detalhado abaixo.
Além de abarcar pesquisas clínicas realizadas com medicamentos, a lei é aplicável também a produtos e dispositivos médicos e aos produtos de terapias avançadas experimentais, no que couber.
A norma define pesquisa com seres humanos como pesquisa que, individual ou coletivamente, tem como participante o ser humano e envolve de forma direta ou indireta, incluindo por meio do manejo de seus dados, informações ou material biológico.
Além do conceito principal da modalidade de pesquisa clínica – que é aquela composta por conjunto de procedimentos científicos desenvolvidos de forma sistemática com o objetivo de avaliar a ação, a segurança e a eficácia de medicamentos, produtos, técnicas, procedimentos, dispositivos médicos ou de cuidados à saúde; para fins terapêuticos, preventivos ou de diagnóstico, verificar a distribuição de fatores de risco, doenças e agravos na população ou avaliar os efeitos de fatores/estados sobre a saúde – a lei traz mais duas categorias de pesquisas:
- Ensaios clínicos: pesquisa clínica experimental para avaliar a segurança, o desempenho clínico ou a eficácia de dispositivo médico, medicamento experimental ou terapia avançada;
- Pesquisa científica, tecnológica ou de inovação: são aquelas que não tem por objetivo o registro sanitário do produto sob análise.
O texto publicado no DOU apresenta dois vetos em relação ao projeto enviado para sanção presidencial:
- A obrigatoriedade de comunicação ao Ministério Público quando da participação de membro de grupo indígena em pesquisa (§3º do art. 24 do Projeto de Lei). A justificativa do veto indica que o parágrafo feriria o princípio da isonomia, uma vez que aponta para possível situação de tutela estatal em relação aos povos indígenas, situação que segundo a justificativa já teria sido superada pela legislação;
- O prazo máximo de cinco anos para fornecimento pós-estudo do medicamento experimental, contados da disponibilidade comercial do medicamento no país (inciso VI do art. 33 do Projeto de Lei). As razões do veto indicam que o estabelecimento de prazo máximo para o fornecimento do medicamento pós-estudo seria contrário ao interesse público, além de ferir os direitos dos participantes da pesquisa clínica e de comprometer eventual desenvolvimento de pesquisas éticas baseadas nos princípios da dignidade, da beneficência e da justiça. Além disso, é pontuado que atualmente não há prazo máximo para a continuidade do fornecimento gratuito do medicamento experimental pós-estudo, para os participantes da pesquisa, e que o fornecimento deve ser continuado independentemente de sua disponibilidade comercial pela iniciativa privada.
Em que pese a publicação da nova lei, os vetos ainda passarão pelo crivo do Congresso Nacional, devendo ser rejeitados ou confirmados. A partir da publicação da norma, passa a correr o prazo de 30 dias para a deliberação dos vetos presidenciais pelos senadores e deputados em sessão conjunta, sendo necessária a maioria absoluta do Congresso Nacional para a rejeição do veto (arts. 57, §3º, IV e 66 da CF). Decorrido o prazo regulamentar sem deliberação, a matéria é incluída na ordem do dia e passa a sobrestar as demais deliberações até a votação final do veto.
Por fim, caso os vetos sejam rejeitados, as partes correspondentes da lei apreciada serão encaminhadas para a promulgação pelo Presidente da República em até 48 horas (art. 66, §7º da CF).
Instituição do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
O Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos é composto pela:
- Instância nacional de ética em pesquisa, responsável por editar normas regulamentadoras sobre ética em pesquisa e por atuar como a instância recursal das decisões proferidas pelos CEPs;
- Instância de análise ética em pesquisa, representada pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) vinculados aos centros de pesquisa, a qual órgãos responsáveis pela análise ética prévia ao início da pesquisa, de forma a garantir a dignidade, a segurança e o bem-estar do participante da pesquisa.
Em uma atuação conjunta, a instância nacional de ética em pesquisa será responsável por credenciar e acreditar os CEPs, para que estejam aptos a exercer a função de análise ética em pesquisas de acordo com o grau de risco envolvido, além de acompanhar, apoiar e fiscalizar os CEPs em relação à análise dos protocolos de pesquisa e ao cumprimento das normas pertinentes.
Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
Na qualidade de instância de análise ética em pesquisa, o CEP deve estar credenciado na instância nacional de ética em pesquisa e será composto por equipe interdisciplinar, nas áreas médica, científica e não científica.
São atribuições do CEP, dentre outras, assegurar os direitos, segurança e bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos que estão em situação de vulnerabilidade; conduzir análises dos protocolos de pesquisa a ele submetidos e monitorar a execução da pesquisa; e assegurar que estejam previstos os meios adequados para a obtenção do consentimento do participante da pesquisa ou de seu representante legal.
Qualquer pesquisa com seres humanos estará sujeita à análise ética prévia, a ser realizada pelos CEPs, a qual não poderá ultrapassar o prazo de 30 dias úteis da data de aceitação da integralidade dos documentos da pesquisa, e essa aceitação, ou sua negativa, deverá ser feita pelo CEP em até dez dias úteis a partir da data de submissão.
Pesquisas de interesse estratégico para o Sistema Único de Saúde (SUS) e que sejam relevantes para o atendimento de situações de emergência pública de saúde terão prioridade e contarão com procedimentos especiais de análise, inclusive quanto aos prazos de aprovação, conforme regulamento a ser publicado, ao que parece, pelo Poder Executivo Federal.
Proteção aos sujeitos da pesquisa e remuneração
A norma garante proteção aos sujeitos da pesquisa, cuja participação está condicionada à autorização expressa do participante ou de seu representante legal, mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
É vedada a remuneração do participante ou a concessão de qualquer tipo de vantagem por sua participação em pesquisa. Contudo, a Lei nº 14.874/2024 permite o pagamento para a participação de indivíduos saudáveis em ensaios clínicos de fase I ou de bioequivalência, desde que observados alguns requisitos previstos na lei.
Não configuram remuneração ou vantagem para o participante da pesquisa: o ressarcimento de despesas com transporte, alimentação ou o provimento material prévio; outros tipos de ressarcimento necessários, segundo o projeto de pesquisa.
Além disso, conforme a normativa atual vigente, deve ser garantido pelo patrocinador ao sujeito de pesquisa indenização por eventuais danos sofridos em decorrência da sua colaboração na pesquisa, com o recebimento de assistência à saúde necessária relacionada a esses danos.
Responsabilidades do patrocinador e do pesquisador
A lei define “patrocinador” como a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que apoia pesquisa mediante ação de financiamento, infraestrutura, recursos humanos ou de suporte institucional.
Constituem responsabilidades do patrocinador, dentre outros aspectos: a implementação e a manutenção da garantia de qualidade e dos sistemas de controle de qualidade; o estabelecimento do contrato entre as partes envolvidas na pesquisa; e a indicação de pesquisador para ser o responsável pelas decisões clínicas relacionadas à pesquisa, quando se tratar de ensaio clínico.
O patrocinador segue responsável pelo armazenamento dos dados e documentos essenciais da pesquisa, após o seu término ou descontinuação, em conformidade com as normas vigentes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Assim como previsto na norma vigente da Anvisa, o patrocinador poderá delegar a execução de determinadas funções às Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (ORPC), as quais assumirão responsabilidade compartilhada em relação ao objeto da delegação. Além disso, o patrocinador é responsável pela verificação do consentimento do participante da pesquisa em relação ao acesso direto a seus dados e informações para fins de monitoramento, de auditoria, de revisão pelas entidades éticas competentes e de inspeção de agências reguladoras.
O pesquisador, por sua vez, é responsável pela condução da pesquisa em instituição ou em centros de pesquisa e corresponsável pela integridade e bem-estar dos participantes da pesquisa, juntamente com o patrocinador. Dentre as suas atribuições estão a submissão da documentação da pesquisa, inclusive eventuais emendas à aprovação do CEP e condução da pesquisa com observância ao projeto aprovado pelo CEP.
Apesar de especificar as responsabilidades de cada parte, em linha com as regulamentações éticas vigentes, a Lei nº Lei nº 14.874/2024 esclarece que todas as instituições e organizações envolvidas na pesquisa são corresponsáveis por sua condução e pela assistência integral aos participantes no tocante a complicações e danos decorrentes da pesquisa.
Fornecimento pós-estudo
Tema de grande relevância, a lei prevê regras sobre o fornecimento do medicamento experimental pós-estudo.
De forma a garantir maior segurança jurídica e previsibilidade para o patrocinador e, principalmente, para o sujeito de pesquisa, a Lei nº 14.874/2024 determina que, antes do início da pesquisa, o patrocinador e o pesquisador devem submeter ao CEP responsável o plano de acesso pós-estudo, com apresentação e justificativa da necessidade ou não de fornecimento gratuito do medicamento experimental após o término do ensaio clínico aos participantes que dele necessitarem.
Para esses casos, será elaborado um programa de fornecimento pós-estudo, sujeito à aprovação regulatória, por meio do qual será garantida a continuidade do acompanhamento da segurança do sujeito de pesquisa e do recebimento, por prazo determinado, do tratamento experimental, após o término do ensaio clínico.
A necessidade de continuidade do tratamento experimental será avaliada, individualmente, para cada participante, ao término do ensaio clínico e o fornecimento deverá ser realizado sempre que este for considerado a melhor terapia ou tratamento para a condição clínica do participante da pesquisa, com apresentação de relação risco-benefício mais favorável em comparação com os demais tratamentos ou alternativas terapêuticas disponíveis.
A lei elenca, ainda, hipóteses nas quais o programa de fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido, mediante submissão de justificativa ao CEP responsável, para apreciação. Dentre elas destacam-se:
- Impossibilidade de obtenção ou de fabricação do medicamento experimental por questões técnicas ou de segurança, devidamente justificadas, desde que o patrocinador forneça alternativa equivalente ou superior existente no mercado;
- Cura da doença ou agravo à saúde, alvos do ensaio clínico, ou introdução de alternativa terapêutica satisfatória;
- Ausência de benefício do uso continuado do medicamento experimental ao participante da pesquisa;
- Ocorrência de reação adversa que, a critério do pesquisador, inviabilize a continuidade do medicamento experimental, mesmo diante de eventuais benefícios;
- Disponibilidade do medicamento experimental na rede pública de saúde.
A versão da lei aprovada pela Congresso continha, ainda, dispositivo que estabelecia a possibilidade de interrupção do fornecimento pós-estudo após cinco anos da disponibilidade comercial do medicamento no país. Entretanto, como já discutido acima, tal inciso foi suprimido por meio de veto presidencial.
Sanções e outras disposições
Além dos temas acima, a nova lei trata de outras temas relevantes como o armazenamento de dados em biobancos para utilização em futuras pesquisas e a importação, uso, fabricação e exportação de produtos para fins de pesquisa clínica com seres humanos.
Visando acelerar o processo de disponibilização de novos produtos ao mercado, a norma estabelece também prazo máximo para aprovação de ensaios clínicos com seres humanos pela Anvisa. A análise sanitária relacionada às petições primárias de ensaios clínicos com seres humanos, para fins de registro sanitário do produto sob investigação, não poderá superar o prazo de 90 dias úteis. Se não houver manifestação da autoridade sanitária neste prazo, após regular recebimento da petição primária do ensaio clínico, o desenvolvimento clínico poderá ser iniciado, desde que contenha as aprovações éticas pertinentes.
O descumprimento da lei pode constituir infração ética e sujeitar o infrator às sanções disciplinares previstas na legislação do conselho profissional ao qual é vinculado, além de configurar infração sanitária em algumas hipóteses, sem prejuízo das sanções civis e penais cabíveis.
Vista como um avanço importante pelo setor regulado, por aprimorar regras e endereçar questões sensíveis anteriormente tratadas apenas no âmbito de regulações infralegais, a nova lei de pesquisas clínicas busca fomentar e incentivar a realização de pesquisas clínicas no Brasil, de forma a permitir maior acesso a terapias inovadoras pelos cidadãos brasileiros. Como desafio, será importante que órgãos e autoridades envolvidos no processo de regulamentação e aprovação de pesquisas clínicas trabalhem de forma célere e harmônica com vistas à regulamentação e implementação da nova lei.
Neste sentido, a Anvisa publicou a Consulta Pública nº 1.257, que tem por objetivo a revisão da Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 9/2015, que atualmente regulamenta sob a ótica regulatório-sanitária os ensaios clínicos com medicamentos no Brasil. Com prazo para contribuições até 4 de julho de 2024, a CP busca adequar e harmonizar a regulação sanitária aos dispositivos trazidos pela Lei nº 14.874/2024.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Life sciences e saúde do Mattos Filho.