Life Sciences: uma retrospectiva de 2022 e o que esperar do setor em 2023
Telessaúde, regulamentação de rótulos e embalagens e novos modelos de remuneração são alguns dos destaques de 2022 que prometem impactar, também, o ano de 2023
Assuntos
O ano de 2022 foi marcado pelo “novo normal” após a primeira pandemia do século XXI, que continua provocando mudanças estruturais em nossa sociedade. Embora a circulação do vírus da Covid-19 permaneça sendo um desafio sanitário global, no último ano tivemos avanços científicos significativos que permitiram a desaceleração das infecções e o término da Declaração de Emergência Nacional de Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional. Esta realidade é, em grande medida, fruto de uma estratégia global de vacinação em massa, do aumento da capacidade de testagem e da aprovação de medicamentos específicos para controle da doença.
Práticas regulatórias
Vale notar que a pandemia tem contribuído para a consolidação de práticas regulatórias importantes, como a adoção de um regulamento técnico expresso para iniciativas de confiança regulatória (regulatory reliance), definida de forma ampla como a utilização de procedimento técnico otimizado para admissão de análises ou documentações previamente emitidas por uma Autoridade Reguladora Estrangeira Equivalente (AREE).
Para contexto, a RDC Anvisa nº 741/2022 define AREEs como autoridades reguladoras ou entidades internacionais estrangeiras reconhecidas pela Anvisa como de confiança regulatória, garantindo que os produtos autorizados para distribuição foram adequadamente avaliados e atendem a padrões reconhecidos de qualidade, segurança e eficácia.
Em termos práticos, o reconhecimento de uma AREE poderá permitir que a decisão da entidade estrangeira seja adotada automaticamente pela Anvisa, acelerando processos de regularização de produtos e serviços regulados em âmbito nacional. A admissão das AREEs dependerá de decisão colegiada da agência, mediante apreciação de pareceres técnicos, podendo ser revogada a qualquer momento caso não mantenha as condições e requisitos que ensejaram a sua aprovação.
Para 2023, quando se inicia um novo período de mandato eleitoral, espera-se que a saúde continue nas principais pautas das autoridades do Legislativo, Executivo e Judiciário, em âmbito local e federal. Abaixo, confira alguns dos temas que devem movimentar o setor de saúde ao longo dos próximos 12 meses:
Nova gestão do Ministério da Saúde
A transição de governo, ao que parece, deve resultar em mudanças significativas em termos de prioridades e temas de atenção para o Ministério da Saúde que, conforme anunciado, buscará priorizar os seguintes eixos técnicos:
- Aumento da cobertura vacinal infantil e adulta, considerando o atual risco de retorno de doenças previamente erradicadas e casos graves de outras doenças preveníveis, como a Covid-19;
- Incentivo à Política Nacional de Inovação Tecnológica na Saúde e ao Complexo Industrial da Saúde, mediante negociação de parcerias entre laboratórios públicos, nacionais e estrangeiros para desenvolvimento de novas tecnologias e fabricação de insumos farmacêuticos, vacinas e terapias, por exemplo, através de Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, Encomendas Tecnológicas e Medidas de Compensação na Área da Saúde;
- Gestão de condições negligenciadas durante a pandemia (doenças oncológicas e crônicas, saúde mental, infantil e reprodutiva), bem como realização de mutirões e procedimentos de saúde rotineiros, como cirurgias, consultas e exames de forma integrada entre serviços públicos e privados para alívio do fluxo de atendimentos do SUS;
- Implementação da Estratégia de Saúde Digital para o Brasil, bem como da Rede Nacional de Dados em Saúde.
Saúde digital
Mais de dois anos após a publicação da Lei nº 13.989/2020 e da Portaria nº 467/2020 do Ministério da Saúde, que autorizaram de forma temporária o exercício da telemedicina, finalmente o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.510/22, que alterou a Lei Orgânica da Saúde (Lei n° 8.080/1990) para regular diretrizes à prestação de serviços remotos de saúde de forma definitiva.
A telessaúde é definida como a modalidade de prestação de serviços de saúde a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação e mediante à transmissão segura de dados e informações de saúde por via de textos, sons, imagens ou outras formas adequadas.
Dentre os principais aspectos da nova lei, destacam-se:
- A prática da telessaúde deve ser realizada sob a responsabilidade do profissional de saúde, que deverá observar as atribuições conferidas pela lei no tocante ao exercício de sua profissão e preservando a dignidade do profissional, a assistência segura e com qualidade ao paciente e a promoção da universalização do acesso dos brasileiros às ações e aos serviços de saúde;
- Futuros atos normativos que imponham restrições quanto à prática da telessaúde deverão demonstrar que a medida é necessária para se evitar danos à saúde dos pacientes;
- A modalidade remota exige o consentimento livre e esclarecido do(a) paciente, que terá o direito de recusar a telessaúde e solicitar atendimento presencial;
- Os atendimentos realizados à distância possuirão validade em todo o território nacional e, caso o profissional atenda por meio da modalidade de telessaúde em jurisdição distinta de seu registro, ficará dispensado de solicitar uma inscrição secundária ou complementar para realizar o atendimento neste novo local.
O uso da telemedicina em larga escala também deve impulsionar:
- A geração de prescrições eletrônicas, tema pendente de definição e regulação por parte da Anvisa, que chegou a publicar consulta pública sobre o tema e deve avançar ao longo do ano;
- Iniciativas de Point-of-Care Testing (PoCT), ou seja, qualquer tipo de teste de diagnóstico realizado remotamente, dentro ou fora de ambientes hospitalares ou laboratoriais, e que também foi objeto de consulta pública, que propôs novos requisitos técnicos para a execução das atividades relacionadas a Testes de Análises Clínicas (TAC) na prestação de Serviços de Apoio ao Diagnóstico e Terapêutico (SADT);
- O uso de softwares médicos (Software as a Medical Device ou SaMD) que, agora, contam com uma regulação específica (RDC Anvisa nº 657/2022) e são definidos de forma ampla como qualquer sistema de uso ou aplicação médica, odontológica ou laboratorial, destinado à prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e anticoncepção. Para os próximos meses, espera-se que a Anvisa avalie a necessidade de um regramento específico para uso de ferramentas de inteligência artificial em SaMDs.
Impactos da pandemia
Em meio às medidas de quarentena, isolamento social e restrição da circulação de pessoas, o comércio eletrônico de serviços e produtos regulados também foi impulsionado pela pandemia e é uma alternativa de modelo de negócio que deve se fazer cada vez mais presente na vida dos consumidores.
Especificamente no caso de medicamentos, o arcabouço regulatório que trata da dispensação desses produtos prevê, desde 2009, a possibilidade de venda por meios eletrônicos limitado, contudo, a farmácias e drogarias devidamente licenciadas e abertas ao público, devendo dispor de farmacêutico responsável presente durante todo o horário de funcionamento.
Com a pandemia, há um interesse cada vez maior das plataformas de comércio online (marketplace) em oferecer produtos hoje disponíveis apenas em farmácias e drogarias. A Anvisa tem atuado na fiscalização e autuação dessas plataformas que, por outro lado, clamam pelo tratamento do tema de forma aberta e transparente, por meio do estabelecimento de regulação aplicável às atividades dos marketplaces como uma forma de ampliando o acesso e aumentar a competitividade do setor, gerando maiores benefícios, em última instância, aos consumidores.
Nesse contexto, é esperado que, em 2023, a Anvisa divulgue os resultados do Grupo de Trabalho (GT) criado pela agência para revisar os requisitos técnicos para a solicitação remota de dispensação de medicamentos.
Pesquisa clínica
Ao final de 2022, foi sancionado o Decreto nº 11.287/2022, que institui formalmente a Rede Brasileira de Pesquisa Clínica (RBPClin), destinada a promover e incentivar o desenvolvimento científico, tecnológico e a inovação nacional em pesquisa clínica. A entidade funcionará como fórum de articulação intersetorial e de cooperação técnico-científica, visando ao fortalecimento da pesquisa clínica no Brasil.
Ainda na seara de pesquisas clínicas, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7.082/2017, já aprovado pelo Senado Federal, que propõe uma série de mudanças visando ao progresso e fluidez dos processos inerentes às pesquisas clínicos, como o fim de duplas aprovações éticas, além de critérios para obrigatoriedade de fornecimento de tratamento aos participantes após o término do estudo clínico.
Produtos de cannabis e drogas psicodélicas
Após a tentativa de restrição para uso terapêutico do canabidiol por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao final de 2022, que culminou com a suspensão dos efeitos da Resolução CFM n° 2.324/2022, há uma expectativa de nova revisão para os critérios de prescrição terapêutica destes produtos nos próximos meses, após nova consulta pública.
No âmbito da Anvisa, a RDC Anvisa nº 327/2019 disciplina os procedimentos para importação, comercialização, monitoramento, fiscalização, prescrição e dispensação de produtos industrializados contendo como ativos derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis sativa, denominados produtos de cannabis para fins medicinais. De forma mais ampla, a normativa destaca que os produtos de cannabis devem ser prescritos, exclusivamente, por profissionais médicos devidamente registrados no CFM e nas hipóteses em que estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro. Esta regulação também se encontra em fase de revisão por parte da Anvisa, e espera-se que uma nova proposta de texto normativo seja publicada para consulta pública e comentários pela sociedade em geral.
Vale lembrar que, além da RDC 327, a RDC ANVISA n° 660/2022 que também trata de produtos derivados de cannabis dispõe sobre os critérios e os procedimentos para a importação, por pessoa física, para uso próprio e com fim terapêutico, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado.
Além disso, seguindo a tendência de outros países, há uma expectativa de que nos próximos meses as autoridades brasileiras (sanitárias e de pesquisa clínica) se deparem com cada vez mais pedidos de regularização envolvendo medicamentos psicodélicos, como psilocibina, mescalina, LSD, MDMA, sustâncias consideradas promissoras no tratamento de distúrbios psiquiátricos como depressão e trauma severos, tendo se mostrado eventualmente superiores aos métodos e drogas atualmente adotados.
Verticalização da saúde e novos modelos de remuneração
Sob a ótica de serviços, após seis anos da mudança legislativa, que permitiu investimentos estrangeiros em atividades de assistência à saúde, o mercado de saúde continua oferecendo oportunidades para fusões e aquisições de todos os tamanhos nesse segmento.
Os diagnósticos e tratamentos de doenças como câncer, diabetes, depressão, cardiopatia e procedimentos eletivos que foram negligenciados durante a pandemia devem continuar relevantes no setor público e privado, estimulando ainda mais os movimentos de verticalização e a adoção de novos modelos de remuneração em saúde – o que deve impactar inclusive a indústria de medicamentos e produtos para a saúde.
Esse cenário também deve favorecer as discussões sobre novos Acordos de Compartilhamento de Risco (ACR), em que o risco quanto ao uso do produto é compartilhado entre pagador (por exemplo, Ministério da Saúde ou operadoras de plano de saúde) e fornecedor (indústria), por meio da definição de um preço variável, conforme resultados apresentados a partir de desfechos financeiros ou clínicos ou, ainda, métricas de gerenciamento definidas entre as partes envolvidas.
Considerando a tendência de alta de inflação, custos operacionais e preço de medicamentos, seja por alta demanda ou por seu caráter inovador como no caso de terapias avançadas, a estruturação de ACRs para aquisição desses produtos se mostra uma alternativa sustentável, tendo em vista a necessidade de continuidade de estudos e acompanhamento dos pacientes para avaliação do desempenho do produto no mundo real.
Em meio à insegurança jurídica trazida pela ausência de previsão expressa a respeito dessa estrutura em negociações com entes públicos, o Projeto de Lei nº 667/2021 merece atenção, pois pretende alterar a Lei nº 8.080/1990 para prever sobre acordos de compartilhamento de risco como ferramenta para incorporação de novas tecnologias no SUS.
Alimentos
Na frente de alimentos, tivemos um volume relevante de atividades regulatórias conduzidos pela Anvisa e Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) durante o ano de 2022, e que deve se manter dessa forma em 2023, com diversos temas na agenda regulatória dos dois órgãos.
Destaque para a RDC Nº 429/2020, que entrou em vigor em outubro de 2022, alterando regras aplicáveis à rotulagem de alimentos embalados. A RDC prevê prazos distintos de adaptação para os fabricantes mas, para os produtos que já estavam no mercado à época da entrada em vigor da norma, as embalagens deverão estar adequadas às novas exigências até outubro de 2023.
Em termos práticos, foram alteradas regras de rotulagem nutricional frontal por meio da adoção de símbolo destacado de lupa em preto e branco, na parte frontal das embalagens de alimentos com alto teor de açúcar, sódio e gordura, como forma de chamar a atenção do consumidor. Além disso, as tabelas nutricionais deverão ter esquema de cores predefinido e padronização de porções, facilitando o entendimento do consumidor com relação ao efetivo valor nutricional dos alimentos embalados.
Em outra frente, a Anvisa submeteu à consulta pública duas propostas de atos normativos para modernização da regulamentação de alimentos e embalagens que visam, dentre outros, desburocratizar e simplificar o processo de regularização de alimentos e embalagens sob competência do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Detalhes sobre o conteúdo e novidades trazidas pelas CPs poderão ser acessados por meio de artigo à época. O prazo para contribuição às consultas públicas foi encerrado em dezembro de 2022 e espera-se que a Anvisa submeta os novos textos normativos para deliberação e aprovação pela Diretoria Colegiada em breve.
Além desses temas, merecem também destaque as iniciativas adotadas, tanto pela Anvisa quanto pelo Mapa, para criação de marcos regulatórios aplicáveis a produtos de proteínas alternativas como os produtos vegetais (plant-based) e carne cultivada em laboratório. Longe de um desfecho, é provável que tenhamos novidades regulatórias em relação a esses temas também em 2023.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Life Sciences e Saúde do Mattos Filho.