Inteligência Artificial na prestação de serviços de saúde e saúde suplementar
Desafios éticos, mudanças na proposta de regulamentação e inovações na prestação de serviços e fiscalização
Assuntos
No primeiro artigo da série especial sobre “Inteligência Artificial: Impactos na Saúde e no Agronegócio, abordamos o uso da Inteligência Artificial (IA) em dispositivos e softwares médicos.
Neste segundo artigo, trataremos dos aspectos referentes ao uso de IA na prestação de serviços de saúde, discorreremos sobre a implementação da transformação digital conduzida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, por fim, apresentaremos atualizações relevantes para a regulamentação de IA no Brasil, que incluem o texto substitutivo apresentado em novembro de 2023.
IA e serviços de saúde
Na ausência de regulamentação específica, os conselhos profissionais têm sido importantes fontes de informações para orientar profissionais de saúde sobre a aplicação da IA na prestação de serviços de saúde. Em resposta ao aumento na oferta de produtos e serviços baseados em inteligência artificial, observa-se que estes conselhos têm se preocupado em publicar diretrizes ou firmar compromissos para tratar do assunto.
Um exemplo disso é a Carta de Brasília, documento que estabelece compromissos bioéticos em resposta ao avanço tecnológico na saúde e na medicina. Publicada após encontros realizados pelo Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais de Medicina, a carta enfatiza a importância de se incorporar o estudo da IA aos currículos acadêmicos em todos os níveis de formação, a fim de estimular a análise crítica da ferramenta e, consequentemente, garantir que a sua implementação não fragilize a essência da relação médico-paciente, a qualidade e a segurança da assistência ao paciente.
Os debates se estendem por todas as demais profissões relacionadas ao setor da saúde, que discutem se, e como, podem fazer uso das ferramentas de IA para atividades que vão desde o suporte ao funcionamento de um consultório à efetiva contribuição nas atividades centrais do atendimento à saúde (incluindo o auxílio em procedimentos cirúrgicos, diagnósticos, exames e definição de tratamentos).
A título exemplificativo de como estas soluções ocupam espaço cada vez mais importante no dia a dia do setor, os Conselhos Regionais de Farmácia (CRF) e Nutricionistas (CRN) também promoveram debates em 2023 sobre o uso de sistemas de IA, discutindo os benefícios e limites para a aplicação nas respectivas áreas. Além disso, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão vinculado ao Ministério da Educação, divulgou um estudo científico que utiliza sistemas de IA para detecção de cárie dentária por fotoluminescência por meio de processamento digital de imagem.
Diante de um assunto que atrai interesse global e que tende a ser cada vez mais frequente em todas as pontas da cadeia de prestação de serviços, a ausência de lei não deve ser um motivo para que questionamentos éticos e bioéticos sejam postergados ou relativizados na concepção de ferramentas de inteligência artificial para o setor da saúde.
Neste sentido, recomenda-se que o desenvolvimento de qualquer solução de IA considere princípios como a proteção da dignidade humana, a proteção dos dados pessoais, o consentimento informado, a transparência em relação aos processos e decisões tomadas por sistemas de IA e a não-discriminação desde a sua concepção. Além dos cuidados a serem observados aos desenvolvedores, a adoção de sistemas de IA por empresas contratantes destas soluções e oferecimento a usuários finais deve ser precedida de uma avaliação dos possíveis impactos adversos, tanto aos indivíduos quanto à sociedade.
Sendo um tema em constante evolução, é esperado que esse debate se intensifique e que algumas regras sejam impostas com o passar do tempo. No entanto, independentemente destas regras, recomenda-se às partes envolvidas (seja na qualidade de desenvolvedoras de sistemas ou suas contratantes) que tomem as precauções necessárias para incluir em seus instrumentos de contratação as especificações da solução contratada e disposições claras sobre a responsabilização por danos que sejam causados em decorrência de suas utilizações.
IA e saúde suplementar
No âmbito da saúde suplementar, a ANS está empenhada em transformar digitalmente seus serviços. Uma amostra concreta desta intenção é vista no Plano de Transformação Digital, que faz parte da Estratégia de Governo Digital, e possui como objetivos específicos, ampliar a oferta de serviços digitais, aumentar a satisfação do usuário com a oferta de serviços digitais, simplificar e desburocratizar serviços, reduzir o tempo médio de espera na obtenção dos serviços da ANS, promover integração e uso de ciência de dados, e implementar soluções tecnológicas que otimizem trabalhos.
Em 2023, no projeto “Soluções de Inteligência Artificial (IA) para o Poder Público”, a ANS assinou três contratos com startups para desenvolvimento dos seguintes projetos de IA para a agência: um analista de reclamação digital, que objetiva agilizar o atendimento aos beneficiários de planos de saúde que recorrem à ANS para garantir seus direitos de acesso à saúde; um assistente de alteração de dados cadastrais dos regulados, que busca qualificar e agilizar a atuação da fiscalização e regulação econômico-financeira da ANS nas operadoras de planos de saúde; e o uso de IA no processo de ressarcimento ao SUS.
Além das aplicações de IA nas atividades administrativas da ANS, operadoras de planos de saúde e outros entes do setor de saúde suplementar também têm utilizado a IA em suas operações. Dentre tais aplicações, cita-se integração entre unidades de operadoras de planos de saúde e parceiros para melhoria na orientação e acompanhamento dos pacientes; otimização do processo de autorização de procedimentos; implementação de chatbot para acesso rápido e gratuito às informações sobre o setor de saúde suplementar; e combate a fraudes na saúde suplementar.
Regulamentação da IA
O Marco Legal da IA está em discussão no Congresso Nacional, com o propósito de definir diretrizes, princípios e regras para o uso e desenvolvimento responsável de sistemas de IA.
No ano passado, após discussões realizadas na Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para abordar o tema, o Projeto de Lei 2.338/2022 foi proposto pelo Senador Rodrigo Pacheco, inspirado na regulamentação da União Europeia conhecida como EU AI Act.
Em 28 de novembro de 2023, por meio de uma emenda, foi proposta uma substituição integral do referido projeto. Destacam-se como principais novidades a exclusão do capítulo sobre os direitos das pessoas sujeitas aos sistemas de IA, bem como a introdução de uma metodologia específica para avaliar o risco associado a esses sistemas. Diferente do texto original, que apresentava um rol de sistemas de IA de alto risco com base na sua finalidade de uso e setor de aplicação, o texto substitutivo prevê parâmetros para a avaliação da probabilidade e do impacto negativo do uso do sistema, bem como para o cálculo e classificação do risco (como alto, médio ou baixo).
Nos termos da nova redação proposta, os fatores contribuintes para a probabilidade incluem a análise sobre a capacidade do sistema, tipo e qualidade de dados, qualidade do sistema, vulnerabilidade cibernética e facilidade de acesso e uso. Já os fatores contribuintes para o impacto incluem impactos sobre o ser humano, soberania e segurança nacional, financeiro e material, e ambiental. O cálculo do nível do risco é realizado a partir da combinação entre probabilidade e impacto. Com relação aos sistemas de saúde, o substitutivo exemplifica que sistemas críticos para a população, como a saúde, podem ser de impacto médio-alto.
Em que pese o fato da pluralidade de iniciativas para regulação de inteligência artificial dificultar um prognóstico claro quanto ao teor da lei específica e do prazo para que se atinja o texto final, resta claro que se trata de matéria que atrai os interesses dos legisladores e que, dada a sua relevância no setor da saúde, deve ser objeto de discussões mais profundas em breve.
No próximo artigo desta série, exploraremos os aspectos jurídicos em relação ao uso de sistemas de IA na indústria agropecuária brasileira, bem como o impacto das regulamentações propostas, desafios e oportunidades para o setor.
Para mais informações sobre o uso da Inteligência Artificial na prestação de serviços de saúde, conheça as práticas de Tecnologia e Life Sciences e Saúde do Mattos Filho.