Infrações ambientais podem levar a declaração de inidoneidade
Parecer aprovado pelo Presidente da República confere interpretação à Lei de Licitações para que infrações ambientais sejam consideradas como conduta inidônea em licitações e contratos administrativos
O Presidente da República aprovou, no dia 22 de dezembro de 2023, orientação jurídica vinculante da Advocacia Geral da União para que determinadas infrações ambientais sejam enquadradas no conceito de comportamento inidôneo, em linha com o art. 155, X, da Lei Federal n. 14.133/2021 (Lei de Licitações). Nos termos do art. 40, §1º da Lei Complementar n. 73/1993, a aprovação e publicação do parecer em conjunto com o despacho presidencial “vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento.”
Assim, na prática, o entendimento jurídico aprovado leva à possibilidade de aplicação da sanção de declaração de inidoneidade aos supostos infratores ambientais, o que impede o agente de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de três anos e máximo de seis anos.
Para fundamentar a referida interpretação, a AGU se valeu de entendimento anteriormente exarado pelo próprio órgão e aprovado pela Presidência da República, que enquadrou a participação em atos antidemocráticos como conduta inidônea para fins do inc. X do art. 155 da Lei Federal n. 14.133/2021 – como resultado dos atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023.
Premissas para o enquadramento de infrações ambientais em conduta inidônea
Em síntese, o racional da AGU para enquadrar as infrações ambientais como conduta inidônea, nos termos do art. 155, X, da Lei Federal n. 14.133/2021, decorre das seguintes premissas:
- O cometimento de infrações que afetam bens ambientais de forma especialmente grave é conduta que agride um valor essencial à Constituição Federal e cuja preservação é necessária para a manutenção da própria vida;
- Com base nos valores éticos norteadores do princípio da moralidade (artigo 37, caput, da Constituição Federal) seria contraditório que o Poder Público não utilizasse, no âmbito das licitações e contratações públicas, eventuais mecanismos existentes que lhe possibilitassem defender-se contra a contratação de pessoas naturais ou jurídicas que tenham praticado condutas especialmente gravosas à tutela do meio ambiente;
- A proteção ao meio ambiente permeia os comandos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, já que a lei exige observância ao princípio do desenvolvimento sustentável (art. 5º); exige, na fase preparatória, estudo técnico preliminar que contenha o elemento de descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras (art. 18, §1º, XII); admite, nos critérios de julgamento, que o impacto ambiental possa ser considerado para a definição do menor dispêndio, nos casos de julgamento por menor preço ou maior desconto; entre outros;
- A Nova Lei de Licitações, diferentemente do regime anterior, admite que o licitante ou o contratado sejam responsabilizados administrativamente por atos cometidos contra a Administração Pública, não necessariamente decorrentes de procedimento licitatório ou da execução de contrato administrativo. Assim, a pessoa física ou jurídica que cometa ato que se enquadre ao inciso X do artigo 155 da Lei Federal n. 14.133/2021, caso venha a se encontrar na condição de licitante ou contratado perante a Administração Pública, pode ser responsabilizada por essas condutas;
- A prática de infrações ambientais especialmente graves pode ser considerada conduta inidônea “não apenas pela estatura constitucional do direito ao meio ambiente, mas também pela sua destacada posição como diretriz para os procedimentos licitatórios e contratações públicas e como importante vetor democrático para o Estado brasileiro”.
Em seguida, a AGU específica o que deveria ser considerado como “infração ambiental especialmente grave” para fins de aplicação da declaração de inidoneidade. No entendimento do órgão, a resposta para o que seria uma infração ambiental especialmente grave – já que inexistente na legislação essa classificação – deveria advir do Direito Penal e da equiparação entre os tipos penais mais graves e seu correspondente na seara administrativa.
Diante disso, a AGU propõe “considerar como conduta especialmente grave em matéria ambiental as infrações administrativas que, em primeiro lugar, correspondam aos tipos penais ambientais considerados, por si, de maior potencial ofensivo e, dentre eles, aqueles que revelem aptidão de violação qualificada ao meio ambiente.”
Com base nisso, a AGU desenhou critério um tanto quanto inovador – embora sujeito a crítica -, nos seguintes termos: primeiro, foram avaliados os crimes de elevado potencial ofensivo, assim considerados aqueles que apresentam pena mínima superior a um ano e pena máxima acima de dois anos; segundo, busca-se as qualificadoras desses crimes de elevado potencial ofensivo; terceiro, são analisados os correspondentes administrativos dos tipos penais; quarto e por último, aplica-se as qualificadoras do tipo penal à infração administrativa para considerá-la como infração ambiental especialmente grave. Veja a explicação didática abaixo.
O Art. 50-A da Lei de Crimes Ambientais dispõe o seguinte:
Art. 50-A. Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente: Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa. 1º Não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família. 2º Se a área explorada for superior a 1.000 ha (mil hectares), a pena será aumentada de 1 (um) ano por milhar de hectare. (g.n.) Os correspondentes administrativos, no entanto, são os arts. 51 e 52 do Decreto Federal n. 6.514/2008, que não preveem nenhum tipo de qualificação especial caso a área seja superior a 1.000ha: Art. 51. Destruir, desmatar, danificar ou explorar floresta ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, em área de reserva legal ou servidão florestal, de domínio público ou privado, sem autorização prévia do órgão ambiental competente ou em desacordo com a concedida: Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração. Art. 52. Desmatar, a corte raso, florestas ou demais formações nativas, fora da reserva legal, sem autorização da autoridade competente: Multa de R$ 1.000,00 (mil reais) por hectare ou fração. Diante disso, a AGU propõe que a infração seja considerada especialmente grave caso a área desmatada/danificada seja superior a 1.000ha para fins de declaração de inidoneidade da pessoa física ou jurídica. |
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Infrações ambientais graves
Com efeito, a AGU faz uma correlação entre tipo penal e tipo administrativo inexistente na legislação para criar sanção não prevista na Lei Federal n. 9.605/98 e nem no Decreto Federal n. 6.514/2008. Abaixo encontra-se um quadro resumo dos tipos administrativos que serão considerados como infrações ambientais especialmente graves e as condições para que isso ocorra:
Infração Ambiental (Decreto Federal n. 6.514/2008) | Condição para ser considerada infração ambiental especialmente grave |
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Art. 29. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Multa de R$ 500,00 (a R$ 3.000,00 por indivíduo. |
Será considerada infração ambiental especialmente grave quando o animal vier a óbito por decorrência nos maus-tratos, com base no tipo penal qualificado do art. 32 da Lei de Crimes Ambientais. |
Art. 51. Destruir, desmatar, danificar ou explorar floresta ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, em área de reserva legal ou servidão florestal, de domínio público ou privado, sem autorização prévia do órgão ambiental competente ou em desacordo com a concedida:
Multa de R$ 5.000,00 por hectare ou fração. Art. 52. Desmatar, a corte raso, florestas ou demais formações nativas, fora da reserva legal, sem autorização da autoridade competente: Multa de R$ 1.000,00 por hectare ou fração |
Será considerada infração ambiental especialmente grave quando a área desmatada/danificada for superior a 1.000ha, com base no tipo penal qualificado do art. 50-A, da Lei de Crimes Ambientais. |
Art. 58. Fazer uso de fogo em áreas agropastoris sem autorização do órgão competente ou em desacordo com a obtida:
Multa de R$ 1.000,00, por hectare ou fração. |
Será considerada infração ambiental especialmente grave quando a área queimada for superior a 1.000ha, com base no tipo penal qualificado do art. 50-A, da Lei de Crimes Ambientais. Destaca-se que tal tipo penal não se refere à prática de uso de fogo/incêndio, mas sim ao desmatamento. Ainda assim, a AGU entendeu pela aplicação para esta infração administrativa. |
Art. 82. Elaborar ou apresentar informação, estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente falso, enganoso ou omisso, seja nos sistemas oficiais de controle, seja no licenciamento, na concessão florestal ou em qualquer outro procedimento administrativo ambiental:
Multa de R$ 1.500,00 a R$ 1.000.000,00. Parágrafo único. Quando a infração de que trata o caput envolver movimentação ou geração de crédito em sistema oficial de controle da origem de produtos florestais, a multa será acrescida de R$ 300,00 por unidade, estéreo, quilo, metro de carvão ou metro cúbico. |
Será considerada infração ambiental especialmente grave quando, em decorrência do uso da informação falsa, incompleta ou enganosa, há dano significativo ao meio ambiente, com base no §2º do art. 69-A da Lei de Crimes Ambientais. |
A AGU afirma, como não poderia ser diferente, que a classificação se destina exclusivamente para os fins de aplicação de institutos da Lei de Licitações, não para a apuração, pelos órgãos do Sisnama, de infrações ambientais.
No que se revela ponto extremamente polêmico da interpretação, a AGU estabelece que deverá haver concorrência entre as instâncias administrativas, isto é, aquela que realizará a apuração da infração ambiental e aquela relativa à aplicação de sanção de inidoneidade, ainda que o último somente possa ter início com a lavratura do auto de infração.
A AGU ainda dispõe que o resultado do processo administrativo de apuração de infração somente influenciará o resultado do processo administrativo para aplicação de sanção de inidoneidade quando o primeiro resultar em reconhecimento da inexistência do fato ou a negativa de autoria – como exemplificado pela AGU, eventual reconhecimento de prescrição intercorrente do processo de apuração de infração não teria o condão de influenciar no processo relativo à inidoneidade.
Por fim, a AGU ainda ressalta que a prática das infrações especialmente graves pode também ser causa para justificar a rescisão do contrato administrativo com base no art. 137, inciso VIII, da Lei Federal n. 14.133/2021, segundo o qual constituem motivo para a extinção do contrato “razões de interesse público, justificadas pela autoridade máxima do órgão ou da entidade contratante”. No entendimento do órgão “a prática de atos especialmente graves à preservação do meio ambiente pode, em tese, caracterizar interesse público relevante, apto a ensejar – desde que respeitado o devido processo legal e havendo justificativa pela autoridade máxima do órgão ou entidade contratante -, o encerramento do contrato administrativo.”
O posicionamento da AGU certamente trará relevantes implicações práticas e suscitará diversas discussões jurídicas, sobretudo com relação à legalidade e constitucionalidade da interpretação, sob múltiplos aspectos, como a criação de sanção que afeta direitos sem previsão legal e sem abertura normativa no âmbito da Lei de Crimes Ambientais; a criação de procedimento administrativo de apuração de infração ambiental por órgão não integrante do SISNAMA; e a tramitação conjunta de dois procedimentos para apurar a ocorrência da infração ambiental – já que o procedimento para a declaração da idoneidade inevitavelmente terá de perpassar a ocorrência ou não da infração.
Ainda que louvável a tentativa da AGU de imprimir critérios mais sustentáveis para as compras públicas, a opção de fazê-lo por meio de opinião jurídica vinculante pode não ser o caminho mais adequado, considerada a legalidade administrativa e os limites da interpretação vinculante.
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