Os desafios e soluções da proteção jurídica dos podcasts no Brasil
Aumento no consumo desse tipo de conteúdo durante a pandemia fomenta a discussão sobre os aspectos legais aplicáveis
A pandemia teve impacto direto e relevante na forma como o público consome conteúdo, sobretudo digital. É o que demonstra o estudo Global Entertainment & Media Outlook 2020-2024, da PwC Brasil, o qual indica que, nesse período, a indústria do entretenimento teve o crescimento acelerado e a transformação digital foi impulsionada em diversos setores.
As estatísticas comprovam o aumento no consumo de conteúdos atrelados ao entretenimento, streaming de vídeo e de áudio durante a quarentena e sinalizam que essa tendência de crescimento seguirá até 2024. Para se ter uma dimensão da proporção da indústria, a pesquisa vislumbra do mercado de entretenimento e mídia um aumento de 2,47% ao ano e o atingimento da métrica de 38 bilhões de dólares em 2021.
Na indústria dos podcasts e streamings de áudio, a perspectiva de crescimento não foi diferente. O mercado de áudio está mobilizando empresas e muitas delas já se adaptam para serem capazes de atingir seu público também nesse formato.
Dentre os benefícios envolvidos, o conteúdo de áudio possibilita a realização de outras tarefas simultaneamente e traz diversos assuntos sob demanda, como notícias, comédia, séries investigativas, reflexões, meditação, fatos históricos e contos, para que o ouvinte ouça quando e onde quiser, sem se prender a uma tela. Não bastasse isso, o mercado ainda é novo (estudo da Kantar IBOPE estima que cerca de 8% dos brasileiros ouçam podcast) e, portanto, ainda há muito espaço para expansão.
Aspectos legais aplicáveis aos podcasts
A importância crescente dos podcasts como ferramenta de entretenimento e informação faz com que a sua proteção jurídica se torne cada vez mais necessária. Apenas por meio dos mecanismos previstos em lei, pode-se resguardar os direitos envolvidos em podcasts, evitando plágios e estimulando a criação de conteúdo.
Mas, afinal, qual a proteção jurídica aplicável aos podcasts? Podcasts são considerados obras nos termos do artigo 7º da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610 de 1998 ou LDA), ou seja: uma criação do espírito humano, fruto de esforço intelectual, expressa por qualquer meio e fixada em qualquer suporte.
A LDA prevê um rol exemplificativo extenso de criações que podem ser consideradas obras – bem como tantas outras que não podem, como ideias, conceitos matemáticos, leis e etc. Os podcasts se enquadram na previsão do inciso II do artigo 7º: “conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza“. É a mesma proteção que se confere aos programas de rádio, por exemplo.
Como resultado prático, a proteção dos podcasts pela LDA confere aos seus autores os direitos morais e patrimoniais sobre o seu conteúdo. Vale lembrar que, diferentemente do que ocorre com outros ativos de propriedade intelectual, como marcas e patentes, a proteção legal atribuída à obra autoral exsurge no momento imediato da sua criação, não sendo necessário o seu registro perante qualquer órgão para que esses direitos se originem. Também é importante chamar a atenção ao fato de que há algumas figuras envolvidas em um podcast: o criador de seu roteiro, os “intérpretes”, os convidados e, a depender, terceiros responsáveis pela produção de músicas, vinhetas e outras contribuições. Diante disso, a análise dos direitos envolvidos no podcast deve ser feita de acordo com o papel ocupado por cada um daqueles que participaram de seu desenvolvimento.
Direitos morais e patrimoniais
Por direitos morais, entendem-se os direitos do autor de ter a sua autoria reconhecida, de modificar a obra como desejar, de impedir a publicação do conteúdo sem seu consentimento e de assegurar a integridade da obra, evitando qualquer uso e circulação que violem sua reputação e imagem. Esses direitos não podem ser transferidos ou renunciados, invariavelmente acompanhando o autor ao longo de toda a sua vida e, em algumas hipóteses, sendo transmitidos aos seus sucessores.
Os direitos patrimoniais, por sua vez, são basicamente os direitos de usar, fruir e dispor economicamente do podcast como preferir. Diferentemente dos direitos morais, os direitos patrimoniais podem ser livremente negociados, licenciados e cedidos a terceiros. Além disso, a vigência desses direitos é limitada aos 70 anos posteriores ao falecimento do autor, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente à sua morte. Superado o referido prazo, as obras caem em domínio público, podendo ser usadas, fruídas e dispostas por qualquer um, contanto que sejam preservados a paternidade e integridade da obra.
Muitas vezes, os podcasts são criados em coautoria, ou seja, por mais de um podcaster, ou então entre um podcaster e um convidado. Aqui é importante frisar que só pode ser considerado coautor aquele que efetivamente participou da criação do conteúdo, e não apenas quem auxiliou na sua produção, revendo ou atualizando a obra, por exemplo. Havendo coautoria, portanto, a LDA determina que os coautores deverão exercer os seus direitos de comum acordo, resolvendo-se qualquer controvérsia por decisão da maioria. Sendo assim, a oposição da maioria dos coautores tem o poder de impedir que certa medida seja adotada em relação ao podcast, motivo pelo qual é importante escolher muito bem com quem o podcaster se aliará no processo de desenvolvimento e elaborar com cautela os contratos firmados entre os envolvidos.
A proteção conferida pela LDA ao autor tem como principal objetivo fomentar o desenvolvimento artístico e garantir os direitos de exploração exclusivos daquele que investiu tempo, dinheiro e disposição para criar algo original. Após a criação de um podcast, portanto, apenas os seus autores poderão determinar o que será feito com ele. Isso estimula a criação de novos conteúdos, garantindo-se ao criador o direito de evitar qualquer uso indevido da sua criação, seja para zelar pela sua reputação ou para manter uma posição competitiva vantajosa e obter os rendimentos que lhe cabem.
Direitos de terceiros em podcasts
Além do conteúdo autoral, é comum que podcasts também façam uso de conteúdos de terceiros, igualmente protegidos pela Lei de Direitos Autorais.
Nesse caso, as mesmas ferramentas de proteção mencionadas no tópico anterior podem ser suscitadas pelos autores do conteúdo utilizado, tornando necessária a autorização de tais autores para que o conteúdo integre parte dos podcasts, ainda que apenas de um episódio. É recomendável, portanto, obter autorização por escrito, mediante um contrato de licença de uso ou de um termo de autorização pontual assinado pelo titular do respectivo direito de autor.
Uma exceção a essa regra, contudo, é a inserção de pequenos trechos, hipótese prevista na Lei de Direitos Autorais em seu artigo 46, VIII, segundo o qual não configura ofensa aos direitos autorais “a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores“.
A legislação não determina com maior grau de precisão o que seria considerado um pequeno trecho. Por isso, recomenda-se um uso breve e, especialmente, que não caracterize exploração comercial ou indevida. Também é importante que o uso do pequeno trecho seja sempre acompanhado da atribuição da autoria da obra (indicação que, por se tratar de um direito moral do autor, não é passível de negociação ou alienação).
Política das plataformas
Atualmente, muitos podcasts são veiculados em plataformas de streaming. Cada uma dessas plataformas tem uma política específica em relação ao tratamento de direitos autorais, então, para entender exatamente quais seriam os deveres e obrigações dos podcasters em relação aos direitos autorais de terceiros, é recomendável analisar os termos de uso das plataformas para avaliar como essa questão é regulada nesse ambiente específico.
Algumas das plataformas, por exemplo, remuneram os direitos de execução pública diretamente ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), o que dispensa o repasse de valores pelo podcaster. Além disso, algumas plataformas disponibilizam um catálogo de músicas devidamente licenciadas e que, portanto, podem ser utilizadas livremente pelos podcasters no desenvolvimento de seu conteúdo e de acordo com os termos de uso, sem que qualquer pagamento precise ser feito a título de direitos autorais pela inclusão e reprodução das obras.
Caso, ainda assim, o podcaster opte por utilizar obras que envolvam direitos de terceiros, além de estar ciente dos termos da plataforma, os podcasters devem estar cientes de que os titulares dos direitos envolvidos nas obras utilizadas podem, em tese, exigir a cessação do uso da obra e o pagamento de indenizações por danos morais e materiais advindos da referida utilização, caso não autorizada. Além disso, a depender das políticas específicas da plataforma em que esteja, o podcast pode ter sua monetização sequestrada e direcionada ao titular da obra autoral ou pode ter aquele episódio específico derrubado.
Dessa forma, o que se conclui é que o autor de um podcast deve manter uma conduta cautelosa no que diz respeito aos seus próprios direitos e a direitos de terceiros, visando não apenas proteger o conteúdo que produz, mas, em igual medida, respeitar os limites e condições de uso do conteúdo de outros. Em um mercado em ascensão, tal cautela é cada vez mais aconselhável para evitar litígios futuros e viabilizar o desenvolvimento seguro do seu podcast.
Para saber mais sobre proteção jurídica de podcasts, conheça a prática Propriedade Intelectual e Tecnologia do Mattos Filho.
*Com colaboração de Vitória Moreira Alves.