

Bem de família de alto valor econômico: impenhorabilidade absoluta?
Decisão recente do TJSP indica relativização da proteção legal
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) proferiu acórdão autorizando a relativização da impenhorabilidade do bem de família, em votação unânime por sessão virtual da 12ª Câmara de Direito Privado.
A interpretação seguiu o entendimento de que a proteção legal à penhora do bem de família não pode ser desvirtuada “de modo a servir de blindagem de grandes patrimônios”. Isso porque, sendo possível conciliar a aquisição de outra moradia (de padrão similar ao conforto do imóvel penhorado) com o adimplemento das dívidas, a tutela do direito da entidade familiar não seria violada, mas sim readequada. No acórdão, destaca-se a tendência de abrandamento da impenhorabilidade do bem de família, seguindo a linha de raciocínio de que não há impeditivo absoluto à penhora de todo e qualquer bem, desde que a expropriação se dê com cautelas adicionais de forma a preservar o princípio da dignidade humana. Tal entendimento vem sendo aceito na doutrina.
Na visão do relator, essa interpretação aparece como solução à problemática de ser assegurado que imóveis de elevado valor econômico permaneçam intocados em detrimento do credor, desde que se reserve ao devedor parte do valor do bem de família que garanta a aquisição de outro imóvel que propicie à família moradia digna, ainda que não tão luxuosa quanto a anterior, evitando-se, assim, o desvirtuamento da proteção legal e o abuso do direito concedido pela legislação. Conforme o acórdão, o que deve ser preservado é a dignidade da pessoa, e não a intocabilidade de toda e qualquer moradia, valha o que valer.
No caso dos autos nos quais foi proferido o acórdão em questão, decidiu-se que caberia a relativização em relação a imóvel de alto padrão localizado em bairro nobre da cidade de São Paulo, avaliado em R$ 4.550.000,00 (quatro milhões quinhentos e cinquenta mil reais) e cuja alienação permitiria a aquisição de vários outros imóveis, uma vez que a expropriação do bem permitiria a quitação integral do crédito exequendo, que era cerca de R$ 730.000,00 (setecentos e trinta mil reais), e ainda propiciaria reserva de valor suficiente para aquisição de moradia apta a garantir padrão de conforto equivalente àquela propiciada pelo imóvel detido.
No voto, ainda ficou determinado que o imóvel não poderia ser vendido por valor inferior a 80% do seu valor de avaliação, limite que seria justificado para que se pudesse permitir que, com o produto final da venda não, o indivíduo/devedor adquirisse bem imóvel apto a servir de moradia digna de padrão análogo ao bem penhorado e, paralelamente, a liquidação do crédito.
Tal entendimento está alinhado com corrente de interpretação que vem ganhando força.
O bem de família e a impenhorabilidade
O bem de família encontra previsão legal na Lei nº 8.009/1990 e nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil de 2002, sendo conceituado como o imóvel residencial da entidade familiar que não ultrapasse 1/3 (um terço) do patrimônio líquido existente à época de sua constituição. Como regra, tal bem não responderá por qualquer tipo de dívida contraída pelos cônjuges, pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, inclusive de natureza civil, comercial, fiscal e previdenciária. A Constituição Federal ainda classifica a garantia do domicílio como direito social decorrente da dignidade da pessoa.
A impenhorabilidade, portanto, se apresenta como uma das maiores características do bem de família. Assim, caso algum dos familiares que resida no imóvel venha a adquirir dívidas posteriormente à sua caracterização como bem de família, este não pode ser penhorado para pagamento daquelas. As exceções são trazidas pela própria legislação e abrangem situações específicas, tais como cobrança:
- pelo titular de crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel;
- por credor de pensão alimentícia;
- de impostos predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
- para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pela entidade familiar;
- por ter sido adquirido com produto de crime ou pela execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
- ou por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
O que se observa, portanto, é que a legislação não prevê qualquer restrição à impenhorabilidade do bem de família relacionada ao valor desse bem. Assim, pela letra da lei, não há exclusão ou exceção a tal impenhorabilidade relacionado a imóveis considerados de alto padrão ou em razão de seu valor econômico.
A controvérsia
A proteção do bem de família foi instituída em atenção aos princípios da dignidade da pessoa, do direito a execução menos onerosa e aos direitos à moradia e ao patrimônio. Por outro lado, resulta em restrição a direitos fundamentais do credor. E é exatamente esse choque entre direitos fundamentais que dá margem para análise da validade do bem de família diante de cada caso concreto e à relativização da impenhorabilidade, especialmente se houver indícios de fraude ou quando o bem acobertado pela proteção for de alto valor.
Os debates giram em torno da pertinência e da possibilidade de reinterpretação da impenhorabilidade do instituto do bem de família com vistas a alargar as hipóteses de exceção previstas da legislação, ensejando a penhora parcial de imóvel considerado de alto valor econômico, em busca por conciliar o pagamento da dívida com o direito à moradia e à dignidade protegido por meio daquele instituto, tal como decidiu o acórdão recente do TJSP.
Embora o posicionamento majoritário tanto do TJSP quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda seja no sentido de interpretar a norma de forma restritiva em relação à impenhorabilidade, não aplicando exceções que não as expressamente previstas em lei, o que se nota é um crescimento dos adeptos à corrente de que é possível relativizar o instituto, a depender da análise de cada caso específico e, em especial, quando o bem de família representar imóvel luxuoso e de alto valor econômico, ainda que a definição de “alto valor econômico” seja de considerável subjetividade.
Certamente, a temática é complexa e as divergências interpretativas precisarão ser acompanhadas de maneira detalhada, uma vez que poderão representar significativa alteração para indivíduos que detenham bens de família de valor econômico significativo.
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