A oportunidade da doação em vida e os desafios das restrições ao patrimônio
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Com a crise econômica que o país enfrentou ao longo dos últimos anos, os Estados brasileiros se utilizaram de diversos meios para arrecadar recursos, dentre os quais se incluiu o aumento dos impostos sobre herança e doação. Diante desta crescente tendência, verificou-se no mercado um aumento na procura por serviços de planejamento sucessório: como forma de evitar alíquotas superiores, os contribuintes têm se organizado para antecipar esse processo de transmissão de seu patrimônio, utilizando-se de diversos recursos para perpetuação de seu legado com eficiência fiscal.
No Brasil, a doação e o testamento estão entre as ferramentas mais utilizadas para a transmissão planejada do patrimônio. Dentre os mecanismos que estes dois instrumentos podem apresentar, cabe destacar a imposição das chamadas cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade. A cláusula de incomunicabilidade impede que os bens assim gravados se comuniquem ao patrimônio do cônjuge ou companheiro do herdeiro, qualquer que seja o regime de bens adotado no casamento ou na União Estável do beneficiado. A cláusula de inalienabilidade, por sua vez, impede que os bens sejam dispostos, a qualquer título, pelo herdeiro ou legatário. A cláusula de impenhorabilidade, por fim, impede que o ônus da penhora recaia sobre o bem gravado, também o protegendo de má-administração do herdeiro ou de sua perda em razão de uma dívida, ainda que a proteção seja considerada relativa perante alguns credores do herdeiro.
Se antigamente a imposição dessas cláusulas dependia exclusivamente da vontade daquele que dispunha de seus bens, o Código Civil de 2002 trouxe, em seu artigo 1.848, a exigência da declaração expressa de uma “justa causa” para a gravação do patrimônio com incomunicabilidade, impenhorabilidade ou inalienabilidade, sob pena de ineficácia dessas cláusulas. Vale dizer que referida exigência se dá somente com relação à legítima, ou seja, à metade dos bens da herança pertencente, de pleno direito, aos chamados herdeiros necessários, podendo a outra metade, chamada de disponível, ser gravada sem qualquer justificativa.
Como se nota, a indicação da causa não é o único requisito exigido para a imposição das cláusulas restritivas. A lei exige, ainda, que a causa seja justa, ou seja, que a restrição se embase em motivo sério e legítimo, de modo que possa ser sustentada em eventual impugnação pelo próprio herdeiro ou por terceiros interessados (cônjuges, credores, etc.).
No tocante à subjetividade e indefinição legal do termo “justa causa”, a doutrina e a jurisprudência têm acordado que não basta a declaração de que as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade são impostas para preservação ou segregação do patrimônio, já que isto é justamente o que as caracteriza. Entende-se, assim, que a motivação precisa ser fundada nas particularidades e circunstâncias que envolvem instituidor e instituídos, devendo ser preferencialmente acompanhada de fatos concretos.
A questão é que o Código Civil menciona, exclusivamente, a necessidade de justa causa da gravação de bens da legítima via testamento, ou seja, não há qualquer menção expressa em lei que essa exigência se estende para as doações. Por essa razão, muito se discute sobre a efetiva possibilidade de se impugnar uma doação com cláusulas restritivas sobre a legítima sem justa causa.
Aqueles que alegam a desnecessidade da justa causa na doação explicam que se trata de um ato bilateral, visto que exige ciência e concordância dos dois lados, ou seja, tanto o doador, quanto o donatário, não somente acordam quanto ao objeto da doação em si, mas também com relação a todos os outros termos do contrato, inclusive eventual imposição de restrições à legítima. Nesse sentido, e diante da ausência de vedação legal expressa, defende-se que não há razão para se exigir uma justa causa na gravação da legitima com incomunicabilidade, impenhorabilidade ou inalienabilidade se as próprias partes envolvidas tiverem, de comum acordo, dispensado essa motivação.
O testamento, por sua vez, é um ato unilateral, muitas vezes desconhecido pelos herdeiros até o momento do falecimento do testador. Daí a razoabilidade de se exigir uma justificativa para eventual gravação da legítima, pois a restrição dos bens vai contra a expectativa dos herdeiros de receber um patrimônio livre.
Por outro lado, há quem entenda que, embora exista uma lacuna na lei com relação à necessidade de justa causa na gravação de bens na doação, este instrumento é um negócio jurídico análogo ao testamento, devendo ambos receberem o mesmo tratamento.
A despeito de todos os argumentos apresentados, fato é que não existe uma previsão legal determinando que se justifiquem as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade na doação, o que a torna um instrumento mais atrativo a depender do interesse daquele que desejar dispor de seu patrimônio.
Ademais, não há dúvidas de que doar bens ainda em vida traz diversas outras vantagens, principalmente sob a ótica fiscal. Na doação, sabe-se exatamente os custos envolvidos na transmissão do patrimônio. Em se tratando de herança, por outro lado, o imposto devido somente é certo no momento do falecimento, o que traz um grande risco para os herdeiros, já que a lei pode majorar os impostos a qualquer momento. Outrossim, A doação é isenta de IR (Imposto de Renda) quando o valor de avaliação do bem doado não sofre variação da Declaração de Bens e Direitos do beneficiário em relação à Declaração de Bens e Direitos do doador no ano anterior.
Considerando a instabilidade do cenário econômico atual e a iminência do aumento dos impostos, inegável que os contribuintes estão diante de uma excelente oportunidade de rever as suas intenções com relação à transmissão de seu patrimônio a seus herdeiros e usar dos diversos mecanismos permitidos na doação a seu favor, dentre os quais se destaca a imposição das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade com uma maior liberalidade.