A “novela” da fixação dos juros nas dívidas civis pelo STJ
Debates entre os ministros sobre a interpretação do art. 406 do Código Civil gera controvérsia acerca da taxa de juros
Assuntos
A discussão sobre a incidência ou não da taxa Selic nas dívidas civis teve mais um capítulo com o julgamento dos Recursos Especiais nº 1.081.149/RS e nº 1.795.982/SP, em 26 de outubro de 2021, pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A controvérsia diz respeito à interpretação do art. 406 do Código Civil, aplicável quando não há índice de juros estipulados previamente entre as partes. Antigamente, na vigência do Código Civil de 1916, a questão não gerava controvérsia, pois o art. 1.062 dispunha que “a taxa de juros moratórios, quando não convencionada (art. 1.262), será de 6% ao ano”. Ou seja, o percentual a ser aplicado era expresso e claro.
Com o advento do Código Civil de 2002, a questão foi disciplinada no artigo 406, o qual dispõe que quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
Definição acerca da taxa de juros prevista no artigo 406
A partir da vigência da referida norma, passou-se a discutir qual seria a taxa de juros aplicável às dívidas civis, se aquela prevista no artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional (CTN), de 1% ao mês, ou a taxa Selic, aplicável aos tributos federais.
A matéria dividiu, e ainda divide, a doutrina e a jurisprudência. Em 2008, sob a relatoria do ministro Teori Zavascki, a Corte Especial do STJ, ao julgar o EREsp. 727.842/SP, pacificou a questão fixando o entendimento de que a taxa dos juros moratórios a que se refere o artigo 406 do Código Civil é a taxa SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais, conforme dispõem os arts. 13 da Lei 9.065/95; 84 da Lei 8.981/95; 39, parágrafo 4º, da Lei 9.250/95; 61, parágrafo 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02.
Não obstante à orientação firmada, a matéria continua a gerar discussões na Corte e, ao que tudo indica, poderá ser apreciada novamente pela Corte Especial. Isso porque, ainda em 2020, a matéria voltou a ser discutida na 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Naquele momento, o relator dos Recursos Especiais nº 1.081.149/RS e nº 1.795.982/SP, ministro Luis Felipe Salomão, proferiu votos propondo que, para as dívidas civis, seja substituída a taxa Selic pelos juros de 1% ao mês, nos termos do art. 161, parágrafo 1º, do CTN, e correção monetária conforme os índices oficiais aplicáveis ao caso concreto.
No entender do ministro Salomão, a aplicação da taxa Selic aos débitos decorrentes das relações privadas não se mostra adequada por uma série de razões, dentre elas:
- A ausência de coincidência dos termos iniciais para o cômputo da correção monetária e dos juros de mora;
- O fato de a taxa Selic não ser um espelho do mercado, mas sim o principal instrumento de política monetária da administração pública no combate à inflação, que não possui componente necessariamente técnico;
- A sua fixação tem com o objetivo interferir na inflação para o futuro, e não na inflação apurada para o passado, sendo que a atualização das dívidas é realizada com o viés pretérito;
- A possibilidade de conduzir o enriquecimento sem causa, o incentivo à litigância, a recalcitrância recursal e a desmotivação para soluções alternativas de conflito, já que o devedor estará ciente que sua mora não acarretará grandes consequências patrimoniais.
O relator ressaltou que já houve períodos em que a taxa Selic foi negativa, o que acarretou o pagamento de juros pelo credor ao devedor, o que seria uma incoerência. Assim, concluiu que a substituição da taxa Selic pelos juros de 1% ao mês torna a dívida menos oscilantes, mais previsível, sujeita à variação apenas inflação e não de juros flutuantes, resultando no cômputo da correção monetária e dos juros de mora justo e seguro às relações privadas.
Favoráveis e contrários à taxa básica
Nos autos do REsp. 1.081.149/RS, foram ouvidos na condição de amicus curiae o Ministério da Economia, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e o Conselho Federal da OAB, os quais se manifestaram contrariamente à aplicação da taxa Selic; e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (Cnseg) e a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que se mostraram favoráveis a aplicação da taxa básica de juros para a correção das dívidas civis.
Ainda no REsp. 1.081.149/RS, o ministro Marco Buzzi pediu vista dos autos, tendo-o apresentado na sessão do dia 1 de junho de 2021, ocasião na qual divergiu do relator, por entender que a discussão sobre o índice aplicável para correção da dívida não foi debatida no recurso especial, de modo que não poderia ser analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Posteriormente, o ministro Salomão pediu vista-regimental.
Retomado o julgamento do REsp. 1.795.982/SP, o ministro Raul Araújo votou para reconhecer que a taxa de juros prevista no artigo 406 do Código Civil é a taxa Selic. Em seu sentir, a aplicação da taxa Selic às dívidas cíveis se dá por quatro razões principais:
- A interpretação dos textos legais de regência indica que o atual índice de correção dos impostos federais, conforme as leis que os instituíram, é a taxa Selic e, por isso, deve ser ela aplicada;
- A jurisprudência da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento nesse sentido;
- Por ser o entendimento seguido pelas 1ª e 2ª Seção do STJ;
- A flutuação do índice não se revelar ponto de desprestigio para a aplicação da Taxa e nem servir de estímulo à litigância abusiva.
A ministra Isabel Gallotti acompanhou a divergência iniciada pelo ministro Raul Araújo por entender ter sido uma opção do legislador fixar que os juros de mora serão calculados com base na taxa que incide na mora dos impostos da Fazenda Nacional que, atualmente, é a Selic. Registrou, ainda, que essa posição foi abonada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADCs 58 e 59 e nas ADIs 5867 e 6021.
Após o voto do ministro Antônio Carlos acompanhando o ministro Luis Felipe Salomão, foi sugerido pela ministra Isabel Gallotti a afetação do REsp. 1.795.982/SP à Corte Especial, o que foi acolhido pelos demais ministros, ocasião em que se determinou que o julgamento do REsp 1.081.149/RS aguarde a solução da controvérsia.
O próximo capítulo desta “novela” acontecerá na Corte Especial do STJ que irá decidir, definitivamente, se os juros aplicados às dívidas civis devem seguir a Selic ou os juros pré-fixados de 1% ao mês.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.