

STJ aborda aplicação de Tratados tributários na importação de serviços técnicos
Recente decisão tem gerado discussões sobre suposto caráter inovador na jurisprudência da Corte
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A 2ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, em dezembro de 2020, o Recurso Especial nº 1.759.081 (Caso Engecorps), abordando a histórica disputa entre União e contribuintes acerca da necessidade de retenção do Imposto de Renda na Fonte (IRRF) nas remessas ao exterior em decorrência de importação de serviços e assistência técnicos. A decisão teve por foco os casos em que o Brasil firmou acordo para evitar a dupla tributação ou não-tributação (Tratado) com o país de residência do prestador do serviço.
Desde então, o referido julgamento tem suscitado diversos debates no meio jurídico, envolvendo, principalmente, o seu caráter supostamente inovador, no sentido de que tal decisão alterou o entendimento anterior do STJ sobre a aplicação de Tratados sobre tais remessas.
Não obstante, não nos parece ser essa a melhor leitura da decisão, mas sim de que a Corte Superior apenas se aprofundou à discussão da aplicabilidade do Tratado ao caso específico, sem, ainda, trazer balizas definitivas.
Caso Engecorps
No Caso Engecorps, o contribuinte questionava a exigência do IRRF nas remessas à Espanha, país que detém Tratado com o Brasil (Tratado Brasil-Espanha), em razão da importação dos serviços técnicos em questão não envolver a transferência de tecnologia. A Fazenda Nacional defendia, por outro lado, a aplicação do artigo 12 do Tratado Brasil-Espanha, o qual se refere a royalties e permite o IRRF no Brasil limitado a 15%, dado que o Protocolo anexo ao Tratado permite a equiparação de serviços técnicos e assistência técnica a royalties.
Diante dessa situação fática, a Corte Superior entendeu que não se deve aplicar, automaticamente, o artigo 7 (Lucro das Empresas), que permitiria o afastamento do IRRF no Brasil, de modo que alguns passos devem ser seguidos e analisados nesses casos.
Primeiramente, deve-se verificar se o Protocolo do Tratado tributário possui a equiparação de serviços e assistência técnicos a royalties (atualmente, apenas os Tratados de cinco países não possuem essa previsão: Áustria, Finlândia, França, Japão e Suécia), o que autorizaria a incidência do IRRF. Em seguida, é importante confirmar se o rendimento remetido ao exterior se adequaria ao previsto no artigo 14 (Serviços profissionais independentes), que também permitiria o IRRF. Além disso, caso esses dispositivos não fossem aplicáveis, seria possível afastar a retenção no Brasil por força do artigo 7, tributando apenas o rendimento no país de residência do prestador do serviço.
Por fim, a Turma Julgadora destacou a relevância de se verificar o tratamento tributário conferido ao rendimento no destino, a fim de se evitar o hibridismo (classificação tributária assimétrica do mesmo rendimento), prática que tem sido combatida pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Dito isso, embora, de fato, o STJ tenha trazido alguns pontos ainda não abordados em decisões anteriores, a interpretação do Caso Engecorps precisa ser colocada em perspectiva, de modo a evitar conclusões precipitadas no sentido de que, havendo equiparação a royalties, todo e qualquer serviço técnico estaria sujeito a IRRF. De modo geral, anteriormente a essa decisão, grandes controvérsias se limitavam ao conceito de lucro das empresas (se lucro operacional ou lucro real, sendo afastado esse último) e efeitos das disposições dos Tratados frente à legislação interna, por exemplo, sem, contudo, trazer uma análise mais criteriosa dos termos do Tratado aplicável ao caso.
Assim, na decisão da Engecorps, o que se percebe não é uma mudança estrita de entendimento, mas sim que o STJ foi um pouco além das análises anteriores, deixando de aplicar diretamente o artigo 7 a tais remessas sem antes analisar a natureza do serviço prestado para fins de equiparação a royalties.
Em uma primeira análise, nota-se que tal entendimento estaria em linha com o disposto no Ato Declaratório Interpretativo 5, de 16 de junho de 2014 (ADI 5/2014), que prevê a aplicação subsidiária do artigo 7 (após análise da aplicação dos artigos 12 e 14, sucessivamente). Os julgados anteriores se centravam no revogado Ato Declaratório Normativo Cosit 1, de 5 de janeiro de 2000 (ADI 1/2000), que estabelecia interpretação já afastada pelo Poder Judiciário de que, na importação de serviços técnicos, o IRRF seria devido no Brasil em razão da aplicação dos artigos dos Tratados que dispõem de “Rendimentos não expressamente mencionados”.
Análise do Caso Engecorps
Não se tem conhecimento de julgados do STJ que tenham analisado, pormenorizadamente, a questão da equiparação do Protocolos. Até houve uma tentativa no começo de 2020, por meio do RESP 1.821.336, porém foi somente no Caso Engecorps que a Corte se debruçou sobre a discussão da aplicação dos Protocolos dos Tratados tributários, determinando que os autos fossem remetidos à Corte de Origem para avaliar a natureza do contrato que fundamentou a remessa à Espanha, especificamente, “se há ou não pagamento de royalties embutidos”.
Por essa decisão, ainda não é possível determinar, precisamente, como o STJ continuará decidindo sobre o tema, se irá se aprofundar na discussão ou se deixará a análise dessa matéria sempre às Cortes de Origem, que se dedicarão às circunstâncias fáticas dos casos.
De qualquer forma, nosso entendimento é que a melhor interpretação dos Protocolos está no sentido de que a assistência e os serviços técnicos poderiam ser equiparados a royalties somente quando “acoplados” a uma transferência de tecnologia know-how (objeto principal de um contrato). Ou seja, o prestador de serviço no exterior transfere ao Brasil informações que sejam correspondentes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial e científico; e, para se garantir o êxito dessa expertise em solo brasileiro, também fornece serviços que instrumentalizam e concretizam a transferência da tecnologia ao país.
Não se deveria entender que, pelo simples fato de haver um Protocolo prevendo a equiparação, todo e qualquer serviço técnico importado permitiria o IRRF no Brasil – isso parece uma clara e unilateral distorção do entendimento inicial dos acordos assinados entre os países contratantes. A tributação na fonte somente seria cabível nas situações em que o serviço seja acessório e instrumental à efetiva transferência de tecnologia e que implique em remessa de royalties ao exterior.
Por outro lado, chama atenção o critério imposto pelo STJ ao determinar que a Corte de Origem investigue o tratamento fiscal desse rendimento na Espanha, a fim de que se evite que o contribuinte utilize o Tratado de forma abusiva para se furtar à tributação na transação, o que acabaria por violar a concorrência, eficiência econômica e justiça fiscais, nos termos defendidos pela OCDE na Ação 2 do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting).
De fato, seria importante que se pudesse evitar o tratamento fiscal desalinhado e se buscasse a melhor interpretação para os Tratados nas transações internacionais; contudo, não parece razoável impor ao contribuinte buscar o entendimento da legislação espanhola para, somente então, avaliar o impacto fiscal no Brasil sobre o rendimento remetido ao exterior.
Sob a perspectiva brasileira, deve-se perseguir a adequada interpretação do ordenamento jurídico e dos Tratados frente à situação fática em discussão. Qualquer necessidade de inspeção no país de residência do prestador do serviço, além de não possuir fundamento jurídico no Brasil, acaba por extrapolar a competência tributária da União e ainda encontra óbices de natureza prática. Os contribuintes não deveriam ter que aguardar pronunciamentos de autoridades estrangeiras para se definir a carga tributária brasileira, submetendo-se a riscos de penalidades moratórias – a dinamicidade das relações comerciais impede a aplicação efetiva de um requisito como esse.
Embora haja algumas inovações, o Caso Engecorps não deveria ser visto como uma mudança no entendimento da jurisprudência do STJ, mas apenas uma abordagem mais criteriosa, demandando análise das disposições previstas nos Tratados tributários e adequação fática às naturezas dos rendimentos remetidos ao exterior.
Percebe-se uma evolução na aplicação do artigo 7, valorizando-se o teor dos Tratados e seus protocolos, alinhados à natureza de cada contrato de serviço (sendo ainda indefinido se o STJ seguirá ou não a linha de que tais serviços devem estar acoplados à transferência de tecnologia). Não se deve admitir, contudo, que referida decisão, proferida sem efeito vinculantes, seja aplicada sem sua perfeita delimitação, sobretudo se exigindo requisitos não previstos em nosso ordenamento jurídico, como a tese do hibridismo.