

Preços de transferência: notas e sugestões ao novo APA
A consulta pública das novas regras de APAs pela RFB representa um passo positivo, mas há pontos a serem melhorados
A Receita Federal do Brasil (RFB) soltou no final de agosto mais uma minuta de regulamentação, por meio de Instrução Normativa, das regras de preços de transferência publicadas pela Lei nº 14.596, de 14 de junho de 2023. Por já estarem válidas em alguns casos desde o ano passado, trata-se de uma regulamentação tardia, em uma clara situação em que o contribuinte está trocando o pneu com o carro andando – ou nem isto, já que a regulamentação traz apenas regras para serviços intragrupo e os chamados Advance Pricing Arrangements (APAs). Ainda não há notícias sobre como a RFB verá em detalhes o tratamento de outras operações, como aquelas envolvendo intangíveis, operações financeiras, e mesmo as reorganizações societárias internacionais, que não esperam uma Instrução Normativa para serem implementadas.
À parte a crítica pela demora, é de se aplaudir mais uma vez a recente posição da RFB de colocar em consulta pública suas minutas de Instruções Normativas. Tanto ela quanto o contribuinte brasileiro estão hoje em processo de absorção das novas regras, e os dois lados se conversarem sobre um regulamento antes de ser publicado deveria servir de exemplo para qualquer outra regulamentação futura.
Para quem chegou agora, os APAs regulamentados pela RFB são acordos que determinam, antecipadamente, um conjunto apropriado de critérios para a determinação dos preços de transferência em transações controladas. Estes critérios podem incluir métodos, comparáveis e ajustes apropriados, bem como premissas críticas sobre eventos futuros.
Uma vez acertado entre RFB e contribuinte (e cumprido por este), o APA evita a surpresa de fiscalizações futuras em relação à operação analisada. Trata-se, portanto, de instrumento que gera uma importante certeza jurídica às empresas brasileiras operando com partes consideradas relacionadas no exterior, prevenindo litígios milionários e esvaziando um pouco a pauta dos tribunais. Tanto a RFB quanto o contribuinte conseguem, com isso, melhorar suas eficiências administrativas, utilizando seus recursos de forma mais eficiente.
Formalizada a regra no ano passado, as diretrizes estabelecidas na minuta colocada para consulta pública estão de forma geral alinhadas às diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (e isto em si já é outro elogio). A RFB fez bem em abrasileirar o nome dado pela OCDE e manter a sigla original, já conhecida por todos. Assim, o Advance Pricing Arrangement – APA passará a se chamar Acordo de Precificação Antecipada Unilateral – APA.
Unilateralidade do instrumento
Como se vê pelo próprio nome dado pela RFB, o APA brasileiro é essencialmente unilateral, o que parece ser um desperdício de oportunidade em sua criação. Mais do que isto, é um caminho diverso do sugerido pela OCDE.
Conceitualmente, APAs podem ser unilaterais, envolvendo apenas uma administração tributária e um contribuinte, ou bilaterais ou multilaterais, envolvendo duas ou mais administrações tributárias. Estes últimos, no entanto, tendem a oferecer diversas vantagens.
Com um APA bilateral ou multilateral, a RFB permitiria que as autoridades fiscais dos países envolvidos concordassem com a metodologia de preços de transferência aplicada às transações controladas pelo contribuinte brasileiro, gerando uma perspectiva de evitar a dupla tributação por alinhamento de expectativas e práticas fiscais. Com ele, os contribuintes de ambos os lados se beneficiariam de maior segurança jurídica, pois as metodologias e os critérios acordados seriam aceitos por todas as partes envolvidas, reduzindo significativamente o risco de disputas fiscais futuras.
Uma vez acordado por duas ou mais jurisdições, os APAs ajudariam também na harmonização das práticas fiscais entre os países, o que é particularmente importante para grupos multinacionais que operam em várias jurisdições já que facilitam a conformidade com as regras de preços de transferência de diferentes países de maneira coordenada e consistente.
Uma bilateralidade e a multilateralidade dos APAs brasileiros favoreceria também a já vantajosa eficiência administrativa porque, uma vez estabelecido, o APA reduz a necessidade de múltiplas auditorias e revisões por diferentes autoridades fiscais, economizando tempo e recursos tanto para o contribuinte quanto para as administrações tributárias. Um APA unilateral, ao contrário, não somente invalida esta eficiência como também pode afetar a responsabilidade fiscal de empresas associadas em outros países.
Por fim, é bom lembrar que a transparência e cooperação internacional são incentivadas em alinhamento aos objetivos da Ação 5 do Projeto Base Erosion and Profit Shifting (BEPS) da OCDE/G20. Ainda que envolvam duas ou mais jurisdições, os APAs podem ser mais flexíveis e adaptáveis às mudanças nas condições econômicas e operacionais das transações controladas. As premissas críticas e os parâmetros acordados podem ser ajustados de maneira coordenada entre as jurisdições envolvidas, garantindo que o acordo permaneça válido e aplicável mesmo em face de mudanças significativas.
Em discussão durante evento da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), no último dia 10 de setembro, a Dra. Claudia Pimentel, Subsecretária de Tributação e Contencioso da RFB, apontou que, ainda que o APA a ser criado seja essencialmente unilateral, aquela instituição está aberta à execução de APAs bilaterais ou multilaterais com países com os quais o Brasil já assinou Acordos para Evitar a Dupla Tributação.
A bem da verdade, o Brasil sempre teve condições de firmar APAs com países com os quais assinava tais acordos (naturalmente, no modelo OCDE), uma vez que tais documentos possuem cláusula relativa ao procedimento de acordo mútuo semelhante ao Artigo 25 do Modelo de Convenção Fiscal da OCDE. Não era preciso uma regra como a da Lei nº 14.596 (com a regulamentação de que falamos agora), porque as autoridades competentes geralmente já deveriam ser autorizadas a concluir acordos desta natureza se questões de preços de transferência pudessem gerar dupla tributação. Na medida em que os Acordos para Evitar a Dupla Tributação têm precedência sobre a legislação interna, a falta de uma base na legislação interna para celebrar APAs não impediria a aplicação destes acordos com base em um procedimento de acordo mútuo.
Esta faculdade, no entanto, nunca foi exercida, mas com a informação dada pela RFB, espera-se que a criação do APA brasileiro torne isto efetivo.
Uma possível inconsistência, no entanto, pode ser vista no fato de que a OCDE considera que os procedimentos de APAs locais sejam informados às autoridades competentes de outros países interessados o okpossível. Por meio do artigo 13 da minuta apresentada, a RFB se obriga a circular informações do APA já celebrado com o contribuinte. São timings diferentes, e isto deixa pouco espaço aos países envolvidos para estudarem se estão dispostos e capazes de discutir um acordo bilateral sob o procedimento de acordo mútuo do artigo 25 acima.
Processo de implementação
O processo de implementação de um APA, conforme descrito pela OCDE, geralmente envolve várias etapas:
- Reuniões iniciais entre o contribuinte e a administração tributária para discutir a viabilidade do APA;
- Apresentação de uma proposta detalhada que inclui informações sobre a estrutura organizacional, transações controladas, métodos de preços de transferência propostos e justificativas;
- Análise da proposta pela administração tributária, com a potencial solicitação de informações adicionais e de reuniões para discussão de detalhes;
- O acordo final entre as partes, com a formalização do APA.
O processo estabelecido pela RFB é similar ao recomendado pela OCDE, com etapas de consulta preliminar, proposta formal, análise e negociação, e formalização do acordo. A RFB também enfatiza a importância das premissas críticas da OCDE, alinhando-se a suas diretrizes.
A forma como o processo foi estabelecido pela Lei nº 14.596 (por meio do chamado processo de consulta específico) causou estranheza porque o processo de consulta é uma via de mão única: o contribuinte apresenta os fatos e a questão, e a RFB manifesta seu entendimento sem quaisquer interações intermediárias.
A minuta de Instrução Normativa, no entanto, segue uma via de mão dupla ao expressamente estabelecer que “o processo de consulta específico desenvolve-se por meio de um procedimento cooperativo”, e ao prever inclusive reuniões e a possibilidade de o contribuinte prestar esclarecimentos adicionais ao longo do caminho. Estamos de fato na rota de algo realmente parecido com uma negociação. A forma como o APA é concebido inaugura uma nova fase na relação entre a RFB e o contribuinte.
Outras notas sobre a minuta apresentada
Considerando o período de discussões sobre a regulamentação, cabem outras observações (em alguns casos, também sugestões) em função da minuta apresentada.
a) Barreira de acesso aos contribuintes:
Além da unilateralidade, este parece ser o aspecto mais relevante da minuta apresentada pela RFB: seu artigo 6º aponta que “poderá apresentar Proposta de APA o contribuinte que realize ou pretenda realizar transações sujeitas ao controle de preços de transferência e participe do programa de conformidade cooperativa fiscal há pelo menos seis meses”.
Três são os programas de conformidade cooperativa fiscal criados pela RFB – Confia (Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal), Sintonia (Programa de Estímulo à Conformidade Tributária) e OEA (Programa Brasileiro de Operador Econômico Autorizado).
O Confia promove cooperação e diálogo entre contribuintes e a Receita Federal, priorizando a autorregulação. O Sintonia incentiva boas práticas tributárias e classifica contribuintes conforme seu grau de conformidade, oferecendo benefícios como redução da alíquota de CSLL para os mais bem classificados. O OEA, por sua vez, fortalece a cadeia de suprimentos e a regularidade no comércio exterior, oferecendo diferimento no pagamento de tributos aduaneiros e prioridade no desembaraço alfandegário.
Todos os três programas possuem requisitos altos para cumprimento, e o único de fato com implementação mais antiga é o OEA, originalmente instituído de forma infralegal em 2014, pela Instrução Normativa nº 1.521. Os três programas estão, neste momento, ainda sendo apreciados em nível legal pelo Congresso Nacional (Projeto de Lei nº 15, de 2024) e suas implementações são incipientes ou restritivas – o Confia mesmo está em fase piloto e em agosto possuía apenas vinte empresas certificadas.
Conforme apontou a Dra. Cláudia Pimentel no evento da ABDF acima referido, a adequação a apenas um destes três programas seria suficiente para elegibilidade a uma proposta de APA. A despeito disto, a vinculação entre estes programas e a aprovação de um APA é ilógica e cria uma barreira de acesso aos APAs a relativamente poucos contribuintes.
Em caminho diverso, a OCDE (página 224) prega o acesso equitativo ao APA ao maior número possível de contribuintes, sugerindo, inclusive, a facilitação ao acesso por aqueles de menor porte:
“4.174. Como discutido acima, a natureza dos procedimentos de APA pode, de fato, limitar sua acessibilidade a grandes contribuintes. A restrição de APAs a grandes contribuintes pode levantar questões de igualdade e uniformidade, uma vez que os contribuintes em situações idênticas não devem ser tratados de forma diferente. […] As administrações fiscais também podem precisar considerar a possibilidade de adotar um acesso simplificado para pequenos contribuintes. As administrações fiscais devem tomar cuidado para adaptar seus níveis de investigação, na avaliação de APAs, ao tamanho das transações internacionais envolvidas.”
Importante sugestão à versão final da Instrução Normativa seria retirar esta condição a programas de conformidade. Ainda que eles prometam elevar a um novo patamar o relacionamento entre a RFB e os contribuintes, a vinculação proposta seria atribuir aos APAs o equivocado caráter de bônus por bom comportamento a partir de 1º de janeiro de 2025.
b) Recusa de APAs por conta da RFB:
Ponto que também chama a atenção é o fato de que a RFB se dá a faculdade de definir a quantidade máxima de propostas de APA a serem aceitas para análise por ano, considerando sua capacidade operacional (artigo 6º, parágrafo único).
Trata-se de uma franqueza lógica, já que o instrumento representa estudo detalhado que definirá a relação com o contribuinte em função das operações apresentadas, e reuniões, relatórios e discussões requererão esforços das equipes administrativas. Ainda que o APA seja único ao contribuinte, ele será um entre vários sob a perspectiva da RFB.
Esta regra pode ser lida com o artigo 5º, §1º, que estabelece que a RFB não está obrigada a celebrar um APA e poderá, durante a tramitação do Processo de Consulta Específico e antes da formalização do acordo, comunicar ao contribuinte as razões pelas quais decidiu não prosseguir com o processo, especialmente nos casos em que o contribuinte não atuar de forma cooperativa.
O que não permanece claro na minuta de Instrução Normativa seria como seria a definição da quantidade máxima de propostas. Por número de APAs? Por número de operações? Afinal, um APA pode considerar diversas operações e, apenas ele, tomar tempo relevante das equipes técnicas. Haverá preferência na escolha dos APAs a serem analisados em função da quantidade apresentada?
Seria importante ficar claro também o momento de divulgação desta informação: a definição de quantidade máxima seria dada ao início de cada ano ou seria informada quando a RFB atingisse seu limite? Neste caso, haveria a devolução de APAs protocolados? Uma definição de tais critérios seria importante para que o contribuinte possa se programar.
Em qualquer caso em que haja a devolução de APAs protocolados por conta da RFB, parece claro que a taxa deva ser devolvida, embora não haja previsão expressa relativa a isto – apenas uma presunção de devolução em função de um não reembolso caso o contribuinte deixe de apresentar a Proposta de APA ou a retire posteriormente à sua apresentação (artigo 18, parágrafo único).
c) Recusa de APAs por conta do contribuinte:
O artigo 8º aponta que o APA poderá abranger todas as transações controladas efetuadas pelo contribuinte, ou parte delas – tudo como incentiva a OCDE. Duas ressalvas, no entanto, caberiam aqui.
A primeira está no parágrafo único do artigo 8º, que estabelece que não serão aceitas propostas de APAs que envolvam transações que apresentem indícios de elisão fiscal.
Ora, ainda que tenha sido banalizado o conceito de elisão fiscal, este define o planejamento tributário lícito (conceito doutrinário já inclusive reconhecido pelo STF em decisão nos autos da ADI 2446, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) a respeito da chamada norma anti-elisiva), ao contrário do de evasão fiscal – este sim combatido. Ademais, não é escopo de um APA revisar planejamentos tributários e, portanto, a questão envolvendo elisão (ou mesmo evasão) fiscal não deveria ser uma restrição ao APA.
Importante observar que a OCDE não traz vínculos entre APAs e planejamentos fiscais, e uma restrição como esta abre espaço para que a RFB unilateralmente rejeite qualquer APA em que (sem contraditório) alegue existir planejamento tributário – e o CARF está cheio de discussões com estes contornos.
A segunda ressalva está no artigo 5º, §1º, desconectado do artigo 8º, mas que também estabelece que será negado o APA nos casos em que o contribuinte não atuar de forma cooperativa. Não há delimitação do que seja forma não cooperativa, deixando aberto o conceito para a discricionariedade da RFB.
d) Confidencialidade da informação:
Como APAs lidam com informações estratégicas e sigilosas, os contribuintes sempre se colocam em posição vulnerável quando acessam autoridades fiscais com o pedido de acordo de precificação. Este assunto está bem tratado pelo artigo 12 da minuta apresentada, que dispõe que a RFB se obriga a não divulgar (presume-se que a terceiros) informações recebidas, referentes a dados financeiros, comerciais, técnicos e fiscais que lhe sejam disponibilizados, em conformidade com as normas relativas ao sigilo fiscal e funcional.
A questão sensível que permanece, no entanto, estaria no fato de que, se por qualquer razão as partes não chegarem a um acordo, as informações factuais obtidas no curso do processo poderão ser compartilhadas com outros setores da RFB (artigo 31, § 4º).
A OCDE enfatiza que a confidencialidade é um aspecto crucial na administração dos APAs, e de fato reconhece esta possibilidade de uso de informações factuais, o que significa que a minuta de Instrução Normativa está alinhada à orientação geral daquela instituição. A OCDE reconhece, no entanto, que problemas podem surgir se as administrações tributárias usarem indevidamente informações obtidas em um APA em suas práticas de exame.
Considerando a histórica relação de oposição entre contribuinte e RFB, hoje este parece um ponto de receio: sendo as informações circuladas, ainda que apenas factuais, outros setores terão o conhecimento de que este buscou a RFB para um acordo sobre suas operações. Poderiam as autoridades fiscais iniciar fiscalizações pelo fato de terem conhecimento de que um APA não foi obtido?
Não há restrição formal na minuta apresentada, e naturalmente ela não será criada, embora – conforme expressamente aponta a própria OCDE – o fato de um contribuinte ter solicitado sem sucesso um APA não deva ser levado em consideração pela administração tributária ao determinar se deve iniciar um exame deste contribuinte. O cumprimento desta questão será, assim, ponto a ser verificado no futuro.
e) Validade e efeitos:
O texto proposto estabelece que o APA terá validade de até quatro anos, podendo ser prorrogado por mais dois anos – até seis anos, portanto. O APA brasileiro pode inclusive ser aplicado a períodos de apuração anteriores, conforme autorizado.
Este prazo não parece ser muito diferente do que se pratica nos EUA, por exemplo, onde os APA consideram que os contribuintes devam pedir que os acordos valham por um mínimo de cinco anos fiscais, podendo também ser solicitados de forma retroativa a um ou mais períodos – o que não significa que sejam concedidos.
A regra norte-americana possui uma amplitude maior que a brasileira: dos 156 APAs executados em 2023, a média geral concedida foi de seis anos, mas os prazos efetivamente variaram de dois a 14 anos (Announcement and Report Concerning Advance Pricing Agreements, página 11). Tais dados indicam que 121 dos 156 APAs foram aprovados com prazos entre cinco e sete anos, tendo apenas cinco sido aprovados por prazos entre dez e 14 anos – muito provavelmente executados em relação a operações com baixa instabilidade e melhor capacidade de previsão. Dos 156 APAs concedidos, 19% incluíram anos retroativos.
A questão que se coloca, no entanto, seria relativa ao prazo de aprovação de um APA. Os EUA reportam uma média de 50 meses (4,2 anos) para aprovação de instrumentos novos, e 32 meses (2,6 anos) para renovações (página 12). Os países europeus reportam em média prazos menores para negociação de APAs com países fora da comunidade europeia, embora isto varie mesmo de país a país: sete meses (Áustria), 24 meses (Holanda), 44 meses (Alemanha, Espanha), 46 meses (França) – Statistics on APA’s in the EU at the End of 2023, pág. 2 e seguintes.
O Brasil retirou de seu processo de consulta para o APA o prazo máximo de resposta de um ano aplicável aos processos regulares de consulta, o que parece natural dada a complexidade do instrumento. A dúvida sobre o prazo que levará para aprovar o seu APA, no entanto, fica aberta.
Dúvida mais relevante, no entanto, seria sobre os efeitos atribuíveis ao APA brasileiro: o contribuinte teria direito a não ser fiscalizado em relação às operações apresentadas no longo período em que se mantêm sob análise da RFB? A suspensão dos efeitos é o princípio do processo de consulta regular, mas nada é dito sobre o assunto neste processo de consulta específico que gera o APA – a não ser que o APA pode ser aplicado de forma retroativa conforme pedido.
Seria importante que a minuta contemplasse uma garantia sobre isto ao contribuinte principalmente considerando o fato de que são independentes as equipes que analisarão o APA e a que fiscalizarão o contribuinte.
f) Arquivamento do APA:
A minuta concede prazo para que o contribuinte pague a taxa de R$ 80.000,00 e apresente proposta de APA. Não sendo apresentada a proposta ou retirando-a o contribuinte posteriormente, o processo será arquivado e a taxa não será devolvida (artigo 21, §2º).
A não apresentação de proposta pode ocorrer por diversas razões, inclusive por uma simples perda de prazo. Imagina-se que o contribuinte não tenha aqui nenhum intervalo mínimo para apresentação de novo pedido com o mesmo objeto e para o mesmo período – ainda que recolha novamente a taxa. Uma observação neste sentido talvez possa ser bem-vinda na versão final da Instrução Normativa.
g) Revogação do APA:
Três seriam as hipóteses de revogação de um APA descritas na minuta apresentada pela RFB, pelo que estabelece o artigo 40, sendo uma delas a verificação de que o contribuinte não tenha cumprido algum termo ou condição relevante do acordo.
Assumindo que o compromisso de apresentação de relatórios anuais sobre a aplicação do APA seja uma condição relevante do acordo, o parágrafo 3º estabelece que sua não apresentação ou apresentação em atraso causará a prospectiva cessação de seus efeitos.
Esta consequência imposta parece desproporcional ao acordo feito. Todo e qualquer APA requer que o contribuinte incorra em custos financeiros relevantes, e que ambas as partes dediquem tempo a sua execução. Com base na regra colocada, a anulação dos efeitos de um APA por conta – por exemplo – de uma entrega do relatório com uma semana de atraso anularia todo este esforço incorrido com o assunto.
Parece que uma multa poderia caber melhor para penalizar o que corresponde a uma mera falha de informação, e não ao descumprimento da essência do APA. Isto não somente seria mais justo como também evitaria o retrabalho de o contribuinte precisar solicitar um novo APA e a Receita Federal alocar tempo e esforços de suas equipes para a devida análise.
Visão geral
As notas acima não são exaustivas, e é provável que cada um que leia a minuta apresentada tenha alguma visão adicional. Elas, no entanto, são capazes de demonstrar que RFB ainda possui o velho vício de adaptar regras internacionais trazendo vieses específicos – quem se lembra da velha Declaração de Informações de Operação Relevantes – DIOR, que criou diversos excessos ao tentar internalizar o Plano de Ação 12 do BEPS?
O mesmo caminho acaba sendo seguido na proposta de Instrução Normativa que cria um APA brasileiro com imposição de enquadramento a programas de conformidade como barreira de entrada, ao contrário do que defende a OCDE. Com ela, será relativamente limitado o número relativamente pequeno de empresas a solicitar um APA.
Este vício também se mostra na criação de incertezas no próprio curso do processo: o contribuinte pode ter sua proposta de APA unilateralmente devolvida se a RFB visualizar algum planejamento tributário (elisão fiscal), se entender que o contribuinte não cooperou de alguma forma ou se esta simplesmente alegar que não possui equipe disponível para análise. Nada disto com algum direito a contraditório.
O lado positivo do assunto está no fato de que é clara a intenção da RFB em fazer valer o novo instrumento, e isto é importantíssimo porque pressupõe uma boa-fé na interpretação das regras da futura Instrução Normativa. Ao mesmo tempo, o desenho do processo de APA em conformidade com as diretrizes da OCDE ajuda muito porque a estrutura está toda alinhada às práticas de outros países – o que facilita muito uma busca por bilateralidade ou multilateralidade, evitando, assim, uma exposição ao risco de dupla tributação.
Em se tratando de minuta, ainda há tempo de se conseguir um alinhamento maior às regras da OCDE. Ainda que a RFB e o contribuinte normalmente se sentem em lados opostos da mesa, um APA efetivo, assegurando certezas e reduzindo contenciosos, deveria ser um bom motivo para colocá-los do mesmo lado.
Para mais informações sobre as novas regras de preços de transferência, acompanhe a série especial da prática de Tributário do Mattos Filho sobre o tema.