Dispensa de documentação ou dispensa de comprovação?
Ao adotar o princípio do arm's length e as Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE, talvez a Receita Federal pudesse ter oferecido maior alívio — principalmente aos contribuintes de pequeno e médio porte — na conformidade com as novas regras, introduzindo dispositivos que dispõem sobre dispensa de comprovação ou safe harbours
Desde a introdução das regras de preços de transferência no Brasil pela Lei nº 9.430, de 1996, o país adotava um modelo que apresentava características rígidas e uma falta de alinhamento com as diretrizes internacionais, especialmente no que diz respeito ao princípio do arm’s length. A utilização de margens fixas e fórmulas predefinidas desconsiderava as particularidades das transações entre partes relacionadas, gerando discussões sobre dupla tributação e subtributação da renda.
Em 2023, o Brasil fez uma importante mudança ao adotar oficialmente o princípio do arm’s length, conforme as Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE, por meio da Lei nº 14.596. Esta nova abordagem alinha o Brasil com as principais economias do mundo, estabelecendo regras de preços de transferência que promovem maior consistência e segurança jurídica para as transações internacionais.
Críticas às regras iniciais de preços de transferência
As regras estabelecidas pela Lei nº 9.430/1996 previam o uso de margens fixas para determinar os preços de transferência em transações entre partes relacionadas. Métodos como o Preço de Revenda menos Lucro (PRL), com uma margem de 20%, 30% ou 40%, eram amplamente criticados por desconsiderarem as funções desempenhadas, os ativos utilizados e os riscos assumidos por cada parte na transação. Esta padronização excessiva resultava em distorções na precificação e gerava conflitos fiscais, uma vez que o Brasil não estava alinhado ao princípio do arm’s length adotado por outros países, gerando a possibilidade de dupla tributação ou subtributação da renda.
A desconexão das regras brasileiras com as práticas internacionais tornava mais complexo o relacionamento fiscal com outros países e elevava o risco de litígios entre administrações fiscais de diferentes jurisdições. A aplicação rígida das margens fixas também impunha dificuldades para as empresas multinacionais brasileiras, que viam suas operações internacionais sujeitas a critérios que não refletiam a realidade econômica de suas transações.
Dispensa de comprovação nas regras de preços de transferência: análise dos artigos 48, 49 e 50 da IN nº 1.312/2012
A Instrução Normativa nº 1.312/2012 foi introduzida para regulamentar as regras dispostas na legislação ordinária, estabelecendo inclusive a dispensa de comprovação para operações de exportação sujeitas à aplicação das regras.
A primeira hipótese de dispensa de comprovação dos preços de transferência nas exportações para pessoas jurídicas vinculadas foi prevista no artigo 48 da Instrução Normativa nº 1.312/2012, que estabeleceu que a pessoa jurídica que comprovasse haver apurado lucro líquido antes da provisão do imposto sobre a renda (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) decorrente das receitas de vendas nas exportações para pessoas jurídicas vinculadas, em valor equivalente a, no mínimo, 10% do total dessas receitas, considerando-se a média anual do período de apuração e dos dois anos precedentes, poderia comprovar a adequação dos preços praticados nas exportações, do período de apuração, exclusivamente, com os documentos relacionados com a própria operação.
Esta hipótese de dispensa de comprovação dos preços de transferência nas exportações para pessoas jurídicas vinculadas somente se aplicava à hipótese de a receita líquida de exportação para pessoas jurídicas vinculadas não ultrapassar 20% do total da receita líquida de exportação. Esta regra não implicava a aceitação definitiva do valor da receita reconhecida com base no preço praticado, o qual poderia ser impugnado, se inadequado, em procedimento de ofício, pela RFB.
A segunda hipótese de dispensa de comprovação dos preços de transferência nas exportações para pessoas jurídicas vinculadas foi prevista no artigo 49 da Instrução Normativa nº 1.312/2012, que estabeleceu que a pessoa jurídica, cuja receita líquida das exportações, no ano-calendário, não excedesse a 5% do total da receita líquida no mesmo período, poderia comprovar a adequação dos preços praticados nessas exportações, exclusivamente, com os documentos relacionados com a própria operação.
Nos casos de dispensa de comprovação, os contribuintes estão desobrigados de preparar a documentação de preços de transferência, desde que atendam aos requisitos estabelecidos. O pressuposto das regras de dispensa de comprovação é que as operações sujeitas a essas regras não são materiais ou relevantes o suficiente no contexto das operações da entidade brasileira, de modo que não necessitam seguir integralmente as normas de preços de transferência. Nesse sentido, a RFB optou por disponibilizar uma metodologia simplificada, que exige uma rentabilidade mínima para assegurar que as transações entre partes relacionadas estejam em conformidade com o espírito das regras de preços de transferência.
Embora essas dispensas buscassem aliviar o ônus administrativo das empresas, as críticas às regras de preços de transferência não foram mitigadas. A abordagem continuava descolada do princípio do arm’s length, o que mantinha os riscos de conflitos fiscais internacionais e a possível incidência de dupla tributação.
Adoção do princípio do arm’s length e a Lei nº 14.596/2023
A promulgação da Lei nº 14.596/2023 marcou uma mudança paradigmática no sistema tributário brasileiro, ao adotar oficialmente o princípio do arm’s length com base nas Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE. Com esta mudança, o Brasil passa a ter regras de preços de transferência simétricas às das principais economias do mundo, adotando o mesmo padrão utilizado pela grande maioria dos países. Este alinhamento internacional mitiga discussões relacionadas à dupla tributação ou à subtributação da renda, promovendo maior consistência e segurança jurídica para as transações transnacionais envolvendo partes relacionadas.
O artigo 7º desta nova legislação estabelece que as funções desempenhadas, os ativos utilizados e os riscos assumidos pelas partes devem ser considerados na análise de comparabilidade das transações controladas. Este novo enfoque, que abandona as margens fixas e fórmulas predefinidas, está em consonância com as práticas internacionais, o que promove uma maior adequação das regras brasileiras ao cenário global, além de mitigar distorções tributárias que poderiam gerar conflitos entre jurisdições.
Adicionalmente, o artigo 37 prevê a simplificação da documentação para determinadas transações, o que visa reduzir o custo de conformidade para os contribuintes, sem comprometer a integridade das análises fiscais. Mesmo com esta simplificação, todas as transações controladas continuam sujeitas ao princípio do arm’s length, reforçando a necessidade de observância das normas, ainda que haja dispensa de documentação em alguns casos.
Impacto da Instrução Normativa nº 2.161/2023
A Instrução Normativa nº 2.161/2023, que regulamenta a Lei nº 14.596/2023, traz disposições adicionais para a simplificação das regras de preços de transferência. O artigo 57, inciso III prevê a dispensa da apresentação do Arquivo Local e Arquivo Global para contribuintes cujas transações controladas sejam inferiores a R$ 15 milhões no ano-calendário anterior. Contudo, o parágrafo 3º do mesmo artigo estabelece que, ainda que dispensados da entrega dos arquivos, os contribuintes continuam obrigados a aplicar integralmente as regras de preços de transferência.
Esta dispensa não significa, portanto, que os contribuintes estão liberados de cumprir as normas de preços de transferência. A preparação da documentação completa, mesmo sem a obrigação de entrega formal, permanece necessária para garantir a conformidade com a legislação. Na prática, isto implica que os contribuintes ainda estão sujeitos a um alto custo de conformidade, já que a preparação da documentação de preços de transferência, especialmente do Arquivo Local, continua sendo exigida como a última etapa do processo, demandando a mesma complexidade e custo.
Adicionalmente, parte das informações que seriam fornecidas via Arquivo Local e Arquivo Global ainda deve ser apresentada por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF). Assim, mesmo com a dispensa formal de alguns documentos, os contribuintes ainda precisam seguir rigorosos critérios de conformidade, com custos relevantes para empresas que realizam transações controladas.
Limites de materialidade e a eficiência administrativa nas regras de preços de transferência
As Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE apresentam limites de materialidade como critério para a elaboração de documentação de preços de transferência. Estes limites foram desenhados com o objetivo de garantir que os custos de conformidade sejam proporcionais ao tamanho e à complexidade das operações dos contribuintes. O foco, portanto, é direcionar os esforços de conformidade para as transações mais significativas, enquanto se busca reduzir o custo administrativo desnecessário em operações de menor relevância econômica.
Como dito, no contexto brasileiro, a Instrução Normativa nº 2.161/2023 estabelece, no artigo 57, inciso III, um limite de R$ 15 milhões em transações controladas como critério para a dispensa da apresentação do Arquivo Local e Global. Embora este critério represente um avanço, é possível questionar se ele foi suficiente para proporcionar alívio proporcional aos contribuintes brasileiros, considerando a diversidade de suas operações. A economia local e a natureza das transações realizadas por empresas brasileiras, especialmente de menor porte, poderiam ter sido melhor contempladas com uma lista mais detalhada de critérios de materialidade.
Ainda que a Receita tenha estabelecido esse limite de R$ 15 milhões como critério de materialidade, ele parece insuficiente para reduzir significativamente os custos de conformidade dos contribuintes. Isto porque, mesmo que estejam dispensados da apresentação formal da documentação, os contribuintes continuam obrigados a seguir integralmente as regras de preços de transferência ao aplicá-las em todas as suas transações controladas.
O princípio da eficiência sugere que a Receita Federal deveria ter adotado uma lista mais exaustiva de critérios para dispensar a documentação de preços de transferência ou introduzido métodos simplificados de conformidade às regras (i.e., safe harbours). Ao incluir outros fatores além do valor absoluto das transações, como o perfil econômico do contribuinte, o tipo de operação e sua complexidade, seria possível fornecer um alívio mais concreto e adequado para as empresas brasileiras. Isto contribuiria para evitar que contribuintes sejam onerados com a preparação de documentação cara e detalhada que, na prática, pode não trazer benefício fiscal relevante à Receita Federal, especialmente considerando seus recursos limitados para auditar todas as transações controladas.
É fundamental destacar que, sob as novas regras de preços de transferência, a entrega do Arquivo Local representa o last mile de todo o processo de conformidade documental. Isso significa que, embora o contribuinte esteja dispensado de entregar o arquivo, ele deve seguir todos os passos prévios para preparar a documentação completa, aplicando as regras de preços de transferência em sua totalidade. Na prática, esta obrigação implica um alto custo de conformidade, pois o contribuinte ainda terá que realizar toda a jornada de documentação e análise, mesmo sem a necessidade de apresentação formal.
Portanto, é possível concluir que, apesar de a legislação brasileira já incluir um critério de materialidade, ele poderia ser mais detalhado e alinhado às práticas internacionais, visando uma maior eficiência tanto para os contribuintes quanto para a administração tributária. Essa adequação proporcionaria um equilíbrio mais justo entre o custo de conformidade e a eficácia do controle fiscal, evitando que pequenas transações sejam excessivamente documentadas sem uma contrapartida prática em termos de fiscalização eficiente.
Considerações sobre safe harbour
As Diretrizes de Preços de Transferência da OCDE discutem a aplicação de safe harbours como uma alternativa para simplificar o cumprimento das regras de preços de transferência, especialmente em operações de menor complexidade ou relevância econômica, como explicado acima. Um safe harbour estabelece condições simplificadas e pré-definidas que, se atendidas, dispensam o contribuinte de seguir integralmente as regras de preços de transferência baseadas no princípio do arm’s length.
Embora a OCDE reconheça que o uso de safe harbours possa desviar-se do princípio do arm’s length e gerar riscos, como dupla tributação ou subtributação, admite que em algumas circunstâncias a sua adoção pode ser benéfica. Entre os benefícios, destacam-se a redução de custos de conformidade e o aumento da segurança jurídica para os contribuintes. A OCDE recomenda, inclusive, o uso de safe harbours bilaterais ou multilaterais, de modo a mitigar potenciais conflitos de interpretação entre diferentes jurisdições.
No contexto brasileiro, considerando as limitações da RFB para auditar adequadamente todas as operações de preços de transferência, a adoção de mais safe harbours poderia ser uma solução eficaz. Essa abordagem facilitaria o cumprimento das regras por parte dos contribuintes e permitiria que a RFB concentrasse seus recursos em fiscalizar contribuintes com maior relevância em termos de risco fiscal. Esta recomendação está totalmente alinhada com o princípio da eficiência, visto que otimizaria os esforços tanto dos contribuintes quanto da administração tributária, sem comprometer a arrecadação fiscal ou o controle sobre as operações mais relevantes.
Para mais informações sobre as novas regras de preços de transferência, acompanhe a série especial da prática de Tributário do Mattos Filho sobre o tema.