O cenário pós-crise dos contratos
Depois da avalanche de pedidos por tutela de urgência, tribunais terão que lidar com a revogação das flexibilizações contratuais
Assuntos
Desde a declaração pela Organização Mundial da Saúde (OMS) da pandemia causada pela Covid-19, que impactou diferentes setores da economia mundial, os Tribunais da Federação receberam uma avalanche de pleitos de concessão de tutela provisória de urgência, com o objetivo de alterar ou suspender temporariamente obrigações livremente estabelecidas entre partes de contratos públicos e privados, diante da impossibilidade de seu regular adimplemento.
Em linhas gerais, os pleitos acolhidos por diversos Tribunais para afastar, ainda que temporariamente, a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) em tempos de pandemia em razão de caso fortuito ou força maior pautaram-se na impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual. Essa impossibilidade decorreu das medidas restritivas impostas pelo Poder Público, seja em relação à circulação de pessoas, seja em relação ao funcionamento de atividades não essenciais. Isto onerou excessivamente uma das partes contratantes, dificultando o cumprimento ou impedindo a satisfação de determinadas obrigações e acarretando o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Considerando a gravidade da situação e valendo-se da faculdade atribuída por lei, o Judiciário decidiu rever as relações contratuais e estabelecer coativamente condições diversas de execução de seus termos, deferindo muitas tutelas de urgência a fim de fazer prevalecer a vontade estatal, em substituição à vontade dos contratantes. Em outras palavras, houve uma clara interferência na autonomia privada em benefício dos interesses coletivos, pela necessidade de ajustes na economia do contrato, considerando a ocorrência de fato extraordinário que tornou a prestação excessivamente onerosa (teoria da imprevisão).
Tutelas em caráter de urgência
As referidas medidas judiciais, adotadas de forma geral pelos diferentes Tribunais da Federação, atingiu diversos setores da economia nacional, apoiadas na ideia de que, se o contrato tornou-se oneroso e desequilibrado por caso fortuito/força maior e “fato do príncipe” decorrente da pandemia da Covid-19, seria possível estabelecer o cumprimento da obrigação de forma alternativa da que fora pactuada ou até mesmo a renegociação de valores e/ou de prazos para pagamento ou entrega (artigos 479 e 480 do Código Civil).
Sobrevieram, então, tutelas provisórias de caráter de urgência que autorizaram:
- a redução ou suspensão do pagamento de aluguel;
- o pagamento mínimo mensal em contas de energia elétrica;
- a redução de mensalidade escolares;
- o faturamento apenas da energia consumida, com exclusão das cobranças pela demanda contratada, entre outros.
Ressalvadas as críticas destas subscritoras com relação às suspensões indiscriminadas de obrigações assumidas em diferentes contratos ‑ o que ocasionou, em muitos setores, verdadeiro “efeito cascata”, especialmente considerando que a ausência de cumprimento de uma obrigação por uma das partes pode frustrar o cumprimento de obrigações subsequentes pela outra ‑ fato é que a gradual retomada das atividades econômicas, com o controle da crise sanitária instaurada, traz o questionamento acerca do momento e da maneira pela qual as obrigações não cumpridas neste período serão ser implementadas ‑ considerando o momento pós-crise.
De início, o referido questionamento nos remete a um dos requisitos específicos impostos pelo próprio legislador ao prever a possibilidade de deferimento da tutela provisória de urgência, qual seja, a reversibilidade dos efeitos da medida, seja ela satisfativa ou antecipada (art. 300, § 3º, do Código de Processo Civil), sendo imprescindível a possibilidade de se retornar ao
status quo ante, caso se constate que a medida merece ser alterada ou revogada.
Ressalvadas as peculiaridades de cada caso concreto, a retomada das atividades, a reabertura de estabelecimentos que estavam fechados e a liberação da circulação de pessoas altera de forma substancial o cenário que levou à concessão de tutelas de urgência para interferir nas relações contratuais livremente pactuadas entre as partes.
Se, por um lado, a justificativa para as alterações e suspensões de obrigações estabuladas em contratos civis e comerciais ocorreu em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis que tornaram o adimplemento impossível ou excessivamente oneroso, com vantagem extrema a uma das partes (arts. 317 e 478 a 480, Código Civil), por outro lado, não há mais justificativa plausível para que as obrigações contratuais não sejam retomadas de imediato nos casos em que restar comprovado que não mais subsistem os fatos impeditivos ligados à pandemia, que teriam causado o desequilíbrio do contrato, impondo-se a revogação da tutela de urgência e a obrigatoriedade de quitação das diferenças dos valores não pagos neste período, ainda que de forma parcelada.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo tem reconhecido que a interferência do Poder Judiciário nas relações contratuais privadas no momento de pandemia não se deu com o objetivo de permitir um “desconto” ou “isenção” dos valores pactuados ou das obrigações estabelecidas, mas tão somente de autorizar o “diferimento do pagamento” ou do “adimplemento” para um momento pós-crise, sob pena de completa desestruturação das avenças e desequilíbrio às avessas (TJ-SP, 36ª Câmara de Direito Privado, AI nº 2135436-96.2020.8.26.0000, rel. Des. Pedro Baccarat, DJe 31/7/2020; TJ-SP, 33ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento 2151765-86.2020.8.26.0000, rel. Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, j. 31/07/2020, DJe 31/07/2020; TJ-SP, 27ª Câmara de Direito Privado, AI 2100768-02.2020.8.26.0000, rel. Des. Daise Fajardo Nogueira Jacot, j. 30/07/202, DJe 30/07/2020).
Nos casos de redução dos valores de aluguel, por exemplo, já é possível constatar a prevalência do entendimento de que
“a redução
não implica inexigibilidade do que não tiver sido pago, já que a discussão sobre o valor, período e saldo remanescente deverão ser feitas durante o processo” (TJ-SP, 29ª Câmara de Direito Privado, AI 2120519-72.2020.8.26.0000, rel. Des. Silvia Rocha; j. 31/07/2020, DJe 31/07/2020).
Afinal, como bem reconheceu o Presidente do Col. Superior Tribunal de Justiça, Exmo. Sr. Ministro João Otávio de Noronha, durante participação no 1º Congresso Virtual do Fonajem – Fórum Nacional de Juízes de Competência Empresarial, não se recomenda uma interferência exagerada nos contratos;
“os juízes não devem atender automaticamente aos pedidos de empresas sem demonstração real de desequilíbrio financeiro” e que
“os juízes que decidem assim cometem um erro indesculpável”, já que
“não há princípio de miserabilidade no direito empresarial, e as garantias são pensadas exatamente para momentos de crise”.
A lógica do referido posicionamento se dá com base na constatação de que eventual dificuldade momentânea do contratante que pleiteou a interferência estatal na relação contratual livremente pactuada não pode ensejar uma isenção definitiva do cumprimento da obrigação, sendo justa a apuração da diferença devida ou da obrigação pendente e o seu pagamento ou cumprimento, ainda que parcelado ou de forma alternativa nesse momento de retomada da economia.
Ainda que seja cedo para se assegurar o caminho que a jurisprudência de nossos Tribunais irá trilhas, pode-se afirmar com relativa certeza, considerando-se o movimento iniciado pela jurisprudência pátria neste momento de “controle” da crise sanitária relacionada à Covid-19, que serão revistas as decisões que temporariamente flexibilizaram disposições contratuais por considerarem as situações extraordinárias vividas durante a pandemia, determinando-se a retomada do cumprimento das obrigações e a quitação dos valores momentaneamente reduzidos, ainda que de forma gradual e parcelada, o que será possível em razão do reequilíbrio contratual e do dever das partes contratantes de honrarem o que foi livremente pactuado.