Riscos jurídicos pós-pandemia
Uma análise do ponto de vista da atuação Contenciosa quanto às expectativas de discussões jurídicas nos próximos meses
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Como costuma dizer Abílio Diniz, se há uma certeza é a de que toda crise passa. E a lição do grande empresário, que já viveu diversas crises, nos faz pensar em quais serão os efeitos jurídicos dos atos que estão sendo praticados durante a pandemia. Não estamos aqui a falar do “novo normal”, expressão que, de tanto que foi utilizada, passou causar náuseas a qualquer leitor minimamente atualizado. Nosso objetivo, com o presente artigo, é antecipar os riscos jurídicos que as empresas deverão administrar no cenário pós-pandemia.
O primeiro ponto que se pode prever é o aumento de ações propostas por trabalhadores que alegarem que contraíram o coronavírus no ambiente de trabalho. Isso porque trabalhadores contaminados, em tese, poderão acionar a Justiça do Trabalho a fim de verem reconhecidos seus direitos quanto ao tema, caso consigam comprovar que contraíram o vírus no ambiente de trabalho. O ponto de atenção aqui será verificar como os tribunais enfrentarão a dúvida sobre o local da efetiva contaminação vis-à-vis as medidas preventivas tomadas pelas empresas para evitar que trabalhadores infectados ingressem no ambiente de trabalho, assim como as medidas tomadas para evitar a contaminação entre trabalhadores.
Além de ações trabalhistas propostas por contaminados pela Covid-19, é de se esperar que surjam também demandas propostas em face das operadoras de planos de saúde, na tentativa de obter a cobertura integral dos consumidores para procedimentos médicos que possam ser necessários em decorrência da contração do vírus.
Ainda pensando em questões de saúde, caso seja desenvolvida uma vacina ou um medicamento que efetivamente cure a doença, há uma grande probabilidade de que tal produto possua um custo inicial elevado e isso gerará discussões não apenas com as operadoras de planos de saúde, mas também com o Poder Público, na medida em que é um dever constitucional do Estado garantir a saúde de todos os cidadãos.
As tendências de consumo da população também estão se modificando com o advento da pandemia, e provavelmente após a crise os consumidores continuarão a adotar a cultura do “digital first“. Ou seja, muitos consumidores provavelmente darão preferência às compras online, do que às lojas físicas. De fato, desde o início da pandemia, foram criadas 135 mil novas lojas no e-commerce, segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), e adotamos em larga escala o delivery para alimentação, por exemplo, o que reflete ainda mais essa tendência. Assim, é altamente provável que surjam novas demandas consumeristas oriundas deste novo perfil de consumo que está sendo desenhado com a crise.
Com a cultura do “digital first“, é razoável acreditar que surgirão também demandas relacionadas à proteção de dados pessoais dos consumidores. Atualmente, grande parte da população fornece, em algum momento, seus dados online e a proteção das informações pessoais dos consumidores é um tema cada vez mais recorrente, agravado pelo fato de que a pandemia ocasionou a prorrogação da vacatio legis da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18), determinada pela Medida Provisória nº 959/20.
Há que se destacar, ainda, novos riscos aos quais podem estar sujeitos comerciantes e varejistas em geral, porque foram publicadas, nos últimos meses, novas regras em todo o país que devem ser seguidas para garantir a segurança dos clientes. E a inobservância de tais normas certamente acarretará a aplicação de multas às empresas (que podem chegar a valores altíssimos), a fim de garantir a segurança e saúde de todos. E, nesse aspecto, a falta de coordenação pelo Governo Federal causará grave insegurança jurídica para empresas que possuem lojas em diversos municípios, pois em cada cidade há uma regra distinta que deverá ser sopesada com as regras editadas em cada um dos Estados da Federação.
A pandemia trouxe, ainda, discussões entre empresas e pessoas físicas relacionadas aos contratos privados, no tocante às prestações pecuniárias, em que se pretende, na grande maioria dos casos, obter uma redução nas referidas prestações diante da brusca mudança ocasionada no cenário econômico nacional, ou nas obrigações de fazer, a fim de buscar uma extensão dos prazos ou modificação das condições para o cumprimento dos contratos. Tais discussões se estenderão na fase pós-pandemia, especialmente nas pretensões dos credores em receberem o que lhes foi prometido contratualmente, ações de cobrança, ações revisionais, rescisões de contratos por inadimplemento, entre outras.
O primeiro round dessa disputa limitou-se à análise da concessão de medidas liminares, cujo escopo é muito mais restrito, focado na análise do periculum in mora e do fumus boni juris e suas variantes jurídicas. No mérito, a verificação do impacto dos efeitos da pandemia nos contratos será muito mais profunda e técnica, o que poderá gerar relevantes contingências pela reversão das liminares, pela apuração de perdas e danos ou de penalidades contratuais.
Ademais, a paralisação de diversos setores na economia trará um grande impacto também na área de seguros, especialmente no que concerne às grandes empresas ou contratos complexos resguardados por seguradoras. Isso porque a interrupção de inúmeras atividades causou atrasos no cumprimento de contratos, execução de obras, impossibilitou a conclusão de outras, e muitas empresas certamente tentarão acionar suas seguradoras, a fim de verem minimizados seus danos. O ponto de atenção é verificar se a apólice contratada efetivamente cobre os danos pretendidos pelo segurado.
Há, ainda, o risco de empresas pretenderem obter indenizações em razão das paralisações ocorridas durante o período de pandemia. A judicialização do tema já ocorre em países da Europa e nos Estados Unidos, e pode surgir também no Judiciário Brasileiro nos próximos meses.
Outro assunto relevante será o aumento dos pedidos de recuperações judiciais e falências no pós-pandemia. Segundo dados do Sebrae, mais de 600 mil empresas fecharam as portas desde o início da pandemia até abril deste ano. O encerramento de tantas sociedades poderá implicar em inúmeras disputas societárias, discussões sobre apuração de haveres e indica um aumento dos procedimentos relacionados à insolvência. Nesse aspecto, é importante destacar que há no Congresso um movimento para acelerar as alterações na Lei de Recuperação Judicial e Falência visando melhor adequar a Lei às pequenas empresas e à necessidade de que o processo seja mais célere.
Como se vê, já é possível antever e mapear os principais pontos de atenção para as empresas no cenário pós-pandemia e buscar implementar, desde já, medidas preventivas para minimizar os efeitos jurídicos causados pelos atos que já são conhecidos e para proteger as empresas das contingências que podem surgir das demandas relacionadas à pandemia.