O reencontro do STF com a coisa julgada
Provida de atributos como indiscutibilidade, imutabilidade e coercibilidade, a coisa julgada em matéria tributária terá seu destino definido pela Corte
Assuntos
O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar, de 6 a 13 de maio, dois casos emblemáticos, sob a sistemática da repercussão geral, e que possuem grande relevância: o RE nº 949.297 (Tema 881), que aborda os limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento em controle concentrado de constitucionalidade; e o RE nº 955.227 (Tema 885), que aborda os efeitos das decisões do STF, em controle difuso de constitucionalidade, sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.
A controvérsia em torno da matéria teve início com a promulgação da Constituição de 1988, que atribuiu à União competência para instituir contribuição social sobre o lucro líquido, a qual foi efetivamente instituída pela Lei nº 7.689/88. À época, muitos contribuintes ingressaram em Juízo, alegando a inconstitucionalidade do novo tributo, considerando que a referida materialidade (lucro líquido) já era colhida por um imposto (IRPJ), o que representava indiscutível bitributação. A par das ações individuais ajuizadas, também foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 15), pela Confederação das Associações de Microempresas no Brasil, que tinha por objeto a declaração da inconstitucionalidade da contribuição.
A jurisprudência, entretanto, não evoluiu de maneira uniforme ao longo dos anos. É que, até 1992, os tribunais regionais federais, em sua maioria, passaram a julgar os processos individuais de forma favorável aos contribuintes. Em muitos casos, inclusive, a União deixou de recorrer aos tribunais superiores, o que fez com que várias dessas decisões transitassem em julgado.
Até que, finalmente, em 1992, o primeiro processo individual foi julgado pelo STF (RE nº 146733), oportunidade em que o tribunal, contrariando a tendência vinda dos tribunais regionais, decidiu pela constitucionalidade da exigência da CSLL, sob o principal argumento de que a concomitância entre um imposto e uma contribuição social sobre a mesma materialidade (no caso, o lucro líquido) não ofenderia qualquer preceito constitucional. Essa decisão, é importante destacar, teve efeitos somente entre as partes envolvidas naquele processo. Apesar disso, a partir de então, as decisões sobre o tema passaram a ser uniformes, ou seja, pela constitucionalidade da CSLL.
Alguns anos depois, o STF julgou a ADI nº 15 improcedente e confirmou esse mesmo entendimento, favorável ao fisco. Considerando os efeitos erga omnes de tal decisão, a Procuradoria da Fazenda Nacional se viu estimulada a propor ação rescisória contra alguns dos contribuintes com decisões favoráveis já transitadas em julgado, sem obter êxito em sua maioria; em outros casos, a União sequer lançou mão desse expediente, dando ensejo ao que chamamos de “coisa soberanamente julgada”.
Fato é que, apesar da decisão na ADI nº 15, muitos contribuintes mantiveram – e ainda mantêm – suas decisões definitivas que afastaram a exigência da CSLL, o que, entretanto, não impediu a Receita Federal do Brasil de ignorar o “imutável” e lavrar autos de infração para exigir a CSLL. O órgão justificava que a coisa julgada obtida pelo contribuinte só alcançaria períodos ocorridos até o trânsito em julgado, pois não teria “efeitos prospectivos”. Outro argumento utilizado foi o de que a legislação da CSLL teria sofrido inúmeras alterações, o que restringiria a coisa julgada às normas então vigentes quando da sua formação, ainda que as mudanças ocorridas tenham sido de alíquota ou vencimento, sem alteração quanto à sua materialidade.
Autoridade da coisa julgada
Tais argumentos foram rechaçados pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a eficácia da coisa julgada, sem qualquer limitação temporal. Diante disso, a Procuradoria da Fazenda Nacional passou a utilizar nova estratégia, alegando que os efeitos da coisa julgada formada em controle difuso – nas ações individuais propostas – deveriam ser interrompidos seja pela decisão contrária do STF no primeiro caso individual apreciado ou pela decisão na ADI nº 15. São essas controvérsias que serão apreciadas conjuntamente, em sede de repercussão geral, no Supremo.
O tema, entretanto, não é inédito na Corte, pois o STF já o analisou em julgamentos isolados. Em 2015, a 2ª Turma manteve a eficácia da coisa julgada, afirmando que a superveniência da decisão do Supremo rechaçando a inconstitucionalidade de dispositivo legal, ainda que eficaz para todos, não é apta a desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz verdadeiro limite insuperável à força retroativa dos pronunciamentos jurisdicionais em ação de controle concentrado (RE nº 589.513, Relatora Ministra Carmen Lucia).
O entendimento manifestado não poderia ter sido diferente. A coisa julgada é a interpretação da lei aplicada ao caso concreto, decorrente de um processo submetido ao contraditório e à ampla defesa, conduzido por um juiz imparcial. É dotada, portanto, dos atributos da indiscutibilidade, imutabilidade e coercibilidade, pois pode ser oposta às instâncias administrativas e judiciais, tudo no propósito de garantir a sua autoridade.
Com isso, protege-se não apenas a confiança depositada pelas partes na sentença definitiva, após o cumprimento do devido processo legal, como também a própria instituição judicante. A coisa julgada é considerada garantia fundamental, protegida pela cláusula pétrea, ou seja, não pode ser suprimida sequer por emenda constitucional.
Diante de todo o exposto, a par de serem emblemáticos, os julgamentos dos Temas 881 e 885, pelo Supremo Tribunal Federal, não devem trazer surpresas: espera-se o reconhecimento da autoridade e imutabilidade da coisa julgada, em prol da consagração dos preceitos constitucionais, do estado de direito e da segurança jurídica.
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