A “modulação” em matéria tributária: dilemas do instrumento jurídico
A aplicação da modulação de efeitos pelo Supremo vem provocando insegurança jurídica, além de, em muitos casos, servir para exclusivamente salvaguardar os interesses do fisco
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O ordenamento jurídico faculta ao Supremo Tribunal Federal (STF) postergar os efeitos de uma decisão no tempo, caso entenda que sua eficácia imediata poderá trazer consequências negativas à sociedade. É a chamada modulação de efeitos que, no passado, tratou-se de uma ferramenta pouco utilizada, mas que, ultimamente, tem sido cada vez mais presente, inclusive e principalmente, nas ações que envolvem matéria tributária.
Em outras palavras, o procedimento que deveria ser exceção está cada vez mais se tornando regra. E, o que mais preocupa, sendo aplicado de forma não homogênea, especialmente em relação ao marco temporal estabelecido para que a decisão produza efeitos, o que, ao invés de trazer a estabilidade nas relações e a segurança jurídica, vem provocando exatamente o contrário.
Basta dizer que, ao longo de 2021, foram julgados 44 processos relevantes de natureza tributária. Destes, 16 tiveram decisões cujos efeitos foram modulados, o que representa 36,37% dos casos. Esses números mostram, por sí só, que há algo sobre o que devemos refletir.
Até 2015, antes da edição do atual Código de Processo Civil (CPC), o instituto da modulação de efeitos era disciplinado pelo artigo 27, da Lei 9.868/99, aplicável às ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade, o que, entretanto, não impedia que fosse utilizado em outros tipos de demanda, sempre que o Supremo entendesse presentes “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”.
Mais recentemente, o artigo 927, parágrafo 3º, do CPC/2015, dispôs sobre a modulação de efeitos nos seguintes termos: “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
A própria premissa do dispositivo legal já nos enseja reflexão, pois normatiza a possibilidade de alteração de entendimento consolidado das mais altas Cortes, o que, para alguns, gera algum estranhamento.
Por outro lado, se o instituto for aplicado para realmente fazer valer o princípio da confiança e garantir a segurança jurídica, e em casos excepcionais, penso que teríamos no ordenamento um instrumento louvável e muito bem-vindo.
“Modulação” em matéria tributária
Ocorre que, nas ações tributárias com decisões favoráveis ao contribuinte, a modulação vem sendo usada (exclusivamente) para salvaguardar efeitos danosos aos cofres públicos. Ora, interesse público não se confunde com o interesse da Fazenda Pública. Seria esse o melhor uso da ferramenta, considerando que esses mesmos cofres, ainda que públicos, receberam valores indevidos que, na maioria dos casos, foram considerados como tal após longos anos de discussão enfrentados pelo contribuinte?
Isso nos permite concluir que, na prática, possuímos dois tipos de modulação: aquela prevista no CPC/2015 e que se funda nas razões ali elencadas (interesse social e segurança jurídica), e a “modulação” em matéria tributária das decisões favoráveis ao contribuinte, cujo único objetivo é postergar (e até inviabilizar) a devolução de valores indevidos, exclusivamente para salvaguardar o interesse do fisco.
Uma decisão que considera determinado dispositivo inconstitucional deveria, em regra, ter eficácia imediata, sob pena de permitir que a inconstitucionalidade perdure no tempo (mais tempo!). A exceção deveria ser a suspensão de seus efeitos, não o contrário. Se a exceção se torna regra, ampliaremos as hipóteses em que uma norma inconstitucional produz efeitos, o que não parece desejável.
A alteração de jurisprudência por parte de uma Corte superior significa que o colegiado concluiu ser distinta a vontade da lei e da Constituição em relação àquilo que foi anteriormente decidido. A modulação de efeitos da nova decisão, portanto, permite que o antigo entendimento prevaleça, ainda que contrário à legalidade, entre outros princípios. Essencial, no caso, a ponderação pelos julgadores entre fazer valer a legalidade (com a eficácia imediata da nova decisão) e a conveniência de postergar seus efeitos, em situações excepcionais. Em nenhuma hipótese se mostra adequado o uso indiscriminado do instituto, para fazer a exceção se tornar regra.
Marco temporal da modulação de efeitos
Mas não é só. A prática reiterada de aplicação da modulação de efeitos em matéria tributária nos traz mais um desconforto (ou dilema), especificamente em relação ao marco temporal a ser estabelecido para que a decisão produza efeitos.
Exemplifico a partir de duas decisões com grande impacto aos contribuintes. No julgamento do tema 201 (RE nº 593.849) – “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida” –, o relator do recurso, ministro Edson Fachin, determinou a modulação de ofício e estabeleceu como marco temporal a publicação da ata de julgamento.
No caso, os contribuintes que já possuíam ações sobre a matéria até a publicação da ata de julgamento do recurso foram autorizados a recuperar os valores passados, enquanto os demais só poderiam se valer da decisão a partir de então.
Já no julgamento da chamada “tese do século”, tema 69 (RE nº 574.706) – “O ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS/Cofins” –, o marco temporal fixado foi a data da sessão de julgamento, o que, evidentemente, traz enorme insegurança ao contribuinte, além de contribuir para o aumento da judicialização antes mesmo de uma definição do tribunal sobre a matéria. Isso porque aqueles que deixaram de recorrer ao Judiciário antes de iniciado o julgamento perdem o direito de recuperar valores passados, sendo estimulados ingressar judicialmente antes da definição do tema.
Dois casos de relevância, em que o marco temporal para a modulação de efeitos de decisão contrária ao fisco foi distinto. Sem falar que, nos dois casos, é absolutamente controversa a premissa de que a modulação seria cabível, em virtude de “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos”, que muitos acreditam não ter ocorrido em ambas as situações.
Como se não bastasse, no tema 962 (RE nº 1.063.187) – “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário” –, os recentes embargos de declaração da Fazenda Nacional, em que pleiteia a modulação de efeitos da decisão, ela sugere que o marco temporal a ser fixado seja a data da inclusão do recurso em pauta. Uma terceira hipótese absolutamente injustificável e que só traz ainda mais incerteza e dúvida.
Impasse para contribuintes
Será que era esse o objetivo do legislador ao inserir o instituto da modulação no código processual? Ou será que a aplicação da modulação nesses temos traz resultado diametralmente oposto ao pretendido, ensejando não a preservação da segurança, mas verdadeira insegurança jurídica diante de tamanha imprevisibilidade?
Infelizmente, como reconhecido por muitos, a imprevisibilidade é até mais prejudicial do que um julgamento contrário ao contribuinte. Não saber o que se deve é, para alguns, pior do que ser exigido do que é indevido. Dilema para os operadores do direito, para aqueles que tomam as decisões empresariais e para os que arcam com o custo da tributação errática que temos no país: o consumidor final de bens e serviços.
Além das inúmeras situações em que o contribuinte é levado ao Judiciário para questionar exigências ilegais e inconstitucionais, algo que vimos ocorrer com frequência nas últimas décadas, penso que a forma indiscriminada e inconstante de como a modulação de efeitos vem sendo aplicada em matéria tributária é mais um motivo para o aumento do contencioso no país. E de todos os problemas decorrentes desse fenômeno. Mais um, entre os vários dilemas a serem enfrentados.