Requisição de leitos privados: entenda os aspectos de saúde suplementar
Saiba o posicionamento do CNS, ANS e de outros agentes envolvidos pela questão
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De acordo com estudos e estimativas técnicas informados pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), aproximadamente 20% da população infectada pela Covid-19 ao longo de 12 meses demandarão internação e, destes, 5% necessitarão de cuidados intensivos. Os dados também mostram que em fevereiro de 2020 o SUS contava com um total de 14.876 leitos adultos de terapia intensiva no país, enquanto 15.898 unidades do mesmo equipamento estavam destinadas a beneficiários de planos de saúde ou a pacientes particulares.
Considerando tais dados, as especialistas do Mattos Filho em Life Sciences analisam o posicionamento de agentes do setor público e privados que impactam nessa questão.
Recomendação do CNS
O CNS aconselhou aos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) que requisitassem leitos privados, quando necessário, e procedessem a sua regulação única, conforme a Recomendação nº 26/2020.
Segundo o CNS, o SUS não disporá de capacidade suficiente para atender a todos os pacientes de Covid-19 que demandarão cuidados intensivos, sendo que em algumas capitais estaduais, como Manaus e Fortaleza, os leitos de terapia intensiva já se encontram 100% ocupados.
A gestão unificada dos leitos públicos e privados, recomendada pelo CNS, é fundamentada na função social da propriedade privada que, em situações de iminente perigo público tal como a Covid-19, pode ser usada por autoridade competente, assegurada posterior e justa indenização ao proprietário, conforme a Constituição Federal (artigos 5º, incisos XXV e XXIII e artigo 170, inciso III), a Lei nº 8.080/1990 (artigo 15, inciso XIII) e a Lei nº 13.979/2020 (artigo 3º, inciso VII).
No mesmo sentido, o CNS faz referência a decisão do Ministro Ricardo Lewandowski no âmbito da Arguição de Descumprimento de Direito nº 671, que, embora tenha negado seguimento ao pedido do Partido Socialismo e Liberdade para o uso pelo SUS dos leitos da rede privada, menciona que a requisição administrativa de bens e serviços é autorizada por diversos atos normativos.
Aspectos do Setor de Saúde Suplementar
Neste contexto, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) emitiu o Voto nº 11/2020/DIGES durante a 11º reunião extraordinária de sua Diretoria Colegiada, em 27 de maio de 2020.
No documento são apontados os seguintes aspectos para a análise do compartilhamento da rede assistencial:
- a interdependência dos agentes do setor de saúde suplementar;
- a heterogeneidade das operadoras de planos de saúde e da rede de atendimento à saúde;
- o perfil demográfico brasileiro;
- o hibridismo no acesso aos serviços de saúde; e
- as determinantes da curva epidemiológica da Covid-19.
No que se refere a interdependência dos agentes do setor de saúde suplementar, a ANS aponta a relevante atuação das operadoras de plano de saúde, mas ressalta que estas não têm completo domínio na cadeia de prestação dos serviços de saúde, nos seguintes termos:
“Essas digressões são importantes para se compreender que a produção em saúde, no campo da saúde suplementar, está imbricada em um plexo de fatores e agentes que atuam de forma interdependente, de modo que a operadora é a ponta de um dos elos da cadeia produtiva, que decerto interage e exerce poder econômico sobre os demais, mas não tem (nem a legislação permite o que tenha) o completo domínio sobre toda a produção. No caso da COVID-19, sendo o que aqui interessa, a decisão clínica pela internação dos beneficiários e, com isso, a ocupação de leitos extrapola à gestão em saúde a cargo da operadora, ainda que tenha verticalizado parte de sua cadeia produtiva, via rede própria. Releva salientar, que essas internações se dão em regime de emergência, o que dispensa a autorização prévia das operadoras por força das regras impostas pela regulação setorial. “
Também, a Agência menciona a heterogeneidade que pode ser verificada tanto no âmbito das operadoras de planos de saúde, quanto no âmbito da rede de atendimento à saúde, conforme a seguir:
“Vale destacar, ainda, que a saúde suplementar não é um setor homogêneo, pois é composto por um mosaico de operadoras de diferentes portes e arranjos jurídico-institucionais. Nele estão presentes desde conglomerados econômicos com operações em bolsa de valores a pequenas instituições confessionais.
Essa heterogeneidade também diz respeito a diversidades regionais da rede de atendimento à saúde, que adquire proporções expressivas quando se toma em conta as dimensões continentais do país, marcado por significativa desigualdade, seja de natureza socioeconômica, seja em termos de densidade demográfica.”
Outro aspecto considerado no Voto é o perfil demográfico que, segundo a ANS, “(…)Hoje pessoas com 60 anos ou mais representam quase quatorze porcento de todo o universo de beneficiários cobertos por operadoras. E os idosos estão no principal grupo de risco da infecção pelo COVID-19, sendo os mais vulneráveis diante da doença, em razão de comorbidades que aumentam o grau de letalidade nesse estrato da população.”
O hibridismo no acesso aos serviços de saúde é analisado no Voto, para fins de compartilhamento da rede assistencial. Isto porque, “Quanto ao compartilhamento da rede assistencial, deve-se, ainda, considerar outra especificidade do caso brasileiro na assistência à saúde, que decorre do hibridismo no acesso aos serviços de saúde, na medida em que o SUS também lança mão de unidades privadas de forma a complementar sua rede de cuidados, consoante permissão constitucional. Dessa sorte, a distribuição dos leitos hospitalares se dirige a diferentes contratantes, sendo que a gestão dessa ocupação não se dá de forma integrada. Mais ainda, na saúde suplementar, não há, em regra, uma pactuação entre as diferentes operadoras, de modo que, salvo arranjos de intercâmbio para compartilhamento de rede (comum nas cooperativas médicas), cada operadora é responsável por garantir, dentro da sua área de abrangência e de atuação, a assistência a seus beneficiários.”
Ainda, a ANS comenta sobre as determinantes da curva epidemiológica na medida em que “A estimativa quanto à disponibilidade de leitos depende ainda dos determinantes que influenciam a curva epidemiológica, como as medidas adotadas pelas autoridades locais e regionais no combate à pandemia e a adesão da sociedade ao distanciamento social e a outros hábitos de precaução, variáveis essas com performances bastante distintas em termos espaço temporais.”
Além dos aspectos para a análise do compartilhamento da rede assistencial, o Voto aponta como efeitos deste compartilhamento o risco sistêmico em toda cadeia do setor privado de saúde e o aumento da judicialização na área da saúde.
De acordo com a Voto, o risco sistêmico em toda cadeia do setor de saúde pode ser verificado à medida que “Em cenário de gestão unificada dos leitos públicos e privados, o uso compulsório dos leitos levaria os hospitais a deixar de receber a receita da saúde suplementar.
(…)
Nessa linha, a suspensão total ou parcial das atividades e até mesmo a insolvência dos hospitais, dependendo da magnitude desses eventos, em que pese ser inviável de se estimar no momento, podem levar à desarticulação da rede assistencial privada não somente durante, mas após a pandemia, afetando a vida dos mais de 47 milhões de beneficiários de planos de assistência à saúde. A isso se acresça a possibilidade de ruptura do equilíbrio sistêmico do setor, ao afetar os integrantes da cadeia de valor em que se inserem os hospitais, como é o caso de empregados, profissionais de saúde, fornecedores e, em efeito cascata, com repercussões econômicas negativas para toda a sociedade.”
No que se refere ao aumento da judicialização da saúde, a ANS aponta que “Diante de um contexto de instabilidade e insegurança quanto ao porvir, supõe-se a possibilidade de se amplificar a regulação judicante das demandas tanto por beneficiários de operadoras, quanto por usuários do SUS.”
Judicialização da Saúde
A fim de prevenir a judicialização sobre o tema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Nota Técnica nº 24/2020, na qual é sugerida aos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais e ao Procurador-Geral da República a adoção de um modelo de gestão hospitalar.
Segundo o CNJ, dos mais de 430 mil leitos de internação, 62% estão em instituições privadas e, destes, 52% já são disponibilizados ao setor público.
Com base em um modelo de gestão hospitalar, o gerenciamento das demandas e dos recursos disponíveis dos hospitais públicos estaduais deve ser realizada por gabinetes de crise, tais como os Centros de Operações de Emergência Estadual (COEs).
Como estratégia de preparação para a contingência hospitalar, os COEs devem, primeiro, expandir a capacidade pública hospitalar existente e, após o esgotamento da utilização do parque hospitalar existente, devem buscar por leitos não contratados pelo SUS ou buscar por estruturas temporárias.
Em caso de necessidade de contratação, os COEs devem preparar chamamentos públicos direcionados a hospitais privados com ofertas de custeio à operação. Feito isto, e caso a capacidade hospitalar à disposição do SUS ainda estiver esgotada, deverão ser requisitados leitos à rede assistencial privada.
Atuação Integrada e Coordenada dos Setores Público e Privado
Além dos aspectos envolvendo o compartilhamento da rede assistencial e dos efeitos de risco sistêmico à cadeia do setor privado de saúde e de judicialização, a ANS aponta que:
“Diante de tais contornos, a hipótese de gestão unificada dos leitos públicos e privados, pela via da requisição administrativa, a fim de promover uma alocação mais eficiente dos leitos de terapia intensiva disponíveis no país, como recomendado pelo CNS, dependeria de uma regulação que equilibrasse oferta e demanda, considerando todos os fatores e variáveis aqui levantados, de modo a ocupar leitos efetivamente ociosos. Para tanto, seria necessária integração de um conjunto de informações que, no curto prazo, talvez não se viabilizasse, de modo que não parece nítida a evidência técnica da eficiência dessa medida.”
A necessidade do compartilhamento de informações dos setores público e privado é apontada pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) como caminho para a gestão hospitalar integrada e, em especial, para a coordenação das demandas de leitos.
A CNSaúde, também, se manifestou sobre o tema com o ajuizamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6362, em que questiona a constitucionalidade da Lei nº 13.979/2020 que permite aos gestores locais de saúde adotarem a requisição administrativa de bens e serviços no combate a Covid-19 sem o controle e sem o esgotamento de alternativas menos gravosas disponíveis. Segundo a CNSaúde, esta requisição deveria estar vinculada a uma ação global coordenada e controlada por autoridades federais.
Projetos de Lei no Âmbito da Saúde Suplementar
Por fim, em âmbito legislativo, a requisição de leitos do setor privado é objeto dos Projetos de Lei nº 2.161/2020, 2.333/2020, 2.176/2020, 2.324/2020 sendo este último o mais avançado já com aprovação no plenário do Senado Federal, que seguiu para a Câmara dos Deputados.