

Instituições financeiras e a litigância predatória
Como a litigância abusiva traz prejuízos à sociedade e emperra o Poder Judiciário, é urgente a adoção de providências efetivas para limitar esse abuso
Assuntos
Embora o abuso do processo seja objeto de estudo há tempos, o debate em torno da advocacia predatória é recente e objeto de discussões acaloradas. Para compreender a dimensão do problema, a Rede de Inteligência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresenta a estarrecedora estimativa de que cerca de 2,8 milhões de ações no país versam sobre litígios irreais.
Embora a litigância predatória seja caracterizada pela utilização abusiva do Poder Judiciário, muitas vezes caracterizada pela conduta desvirtuada por parte de patronos, as medidas para conter esse comportamento não devem limitar a defesa de direitos legítimos, tampouco restringir o correto e pleno exercício da advocacia, função essencial à justiça. Contudo, diante da constatação do abuso, é necessário tomar providências mais efetivas, sob pena de maior proliferação da conduta.
Este artigo aborda dois pontos relacionados ao tema. Primeiro, procede-se à análise das decisões proferidas por Tribunais Estaduais em julgados contra instituições financeiras desde a edição da Recomendação nº 159/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) até o fim de 2024. Em segundo lugar, refletimos a respeito da urgência de se adotar providências efetivas com o objetivo de limitar esse comportamento.
Reconhecimento da Litigância Abusiva pelo STJ
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu, em março, o julgamento do Tema Repetitivo 1.198 (Recurso Especial 2.021.665/MS), fixando, por unanimidade, a tese de que, diante de indícios de se tratar de demanda abusiva, o juiz pode, de modo fundamentado e razoável, exigir que a parte autora emende a petição inicial a fim de demonstrar seu interesse de agir e a autenticidade da postulação, respeitadas as regras da distribuição de ônus probatório.
Nesse mesmo contexto, em outubro de 2024, o CNJ editou a Recomendação nº 159/2024, com o escopo de orientar os magistrados na identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva, definida como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça”.
Exemplos desse comportamento são a atribuição de elevado valor à causa sem justificativa, o ajuizamento de ações sem provas estruturais para a comprovação da relação jurídica ou incoerentes com as causas de pedir e os requerimentos de justiça gratuita sem fundamento.
Desde sua edição até o fim de 2024, a Recomendação nº 159/2024 já foi mencionada, no âmbito da Justiça Estadual, em 143 acórdãos, sendo que 133 deles foram proferidos em litígios que têm instituições financeiras no polo passivo. Instituições financeiras são alvo em boa parte dessas estratégias, não só por conta de sua robustez financeira e dos valores expressivos envolvidos em suas relações jurídicas, mas, também, porque instituições financeiras brasileiras tendem a ter atuação em diversos foros e grande quantidade de clientes.
A partir da análise dos julgados encontrados, foram identificados, na prática forense, dez comportamentos mais comuns de litigância abusiva:
- Requerimentos injustificados de justiça gratuita (Item 1 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “requerimentos de justiça gratuita apresentados sem justificativa, comprovação ou evidências mínimas de necessidade econômica”;
- Inexistência de prévio pedido administrativo (Item 10 do Anexo B da Recomendação nº 159/2024): “notificação para apresentação de documentos que comprovem a tentativa de prévia solução administrativa, para fins de caracterização de pretensão resistida”;
- Fracionamento de demandas pelo autor (Item 6 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “proposição de várias ações judiciais sobre o mesmo tema, pela mesma parte autora, distribuídas de forma fragmentada”;
- Procuração sem firma reconhecida (Item 11 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “apresentação de procurações incompletas, com inserção manual de informações, outorgadas por mandante já falecido(a), ou mediante assinatura eletrônica não qualificada e lançada sem o emprego de certificado digital de padrão ICP-Brasil”;
- Procuração desatualizada (Item 13 do Anexo B da Recomendação nº 159/2024): “adoção de cautelas com vistas à liberação de valores provenientes dos processos com indícios de litigância abusiva, especialmente nos casos de vulnerabilidade econômica, informacional ou social da parte, podendo o(a) magistrado(a), para tanto, exigir a renovação ou a regularização de instrumento de mandato desatualizado ou com indícios de irregularidade, além de notificar o(a) mandante quando os valores forem liberados por meio do mandatário”;
- Procuração não específica (Item 18 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “apresentação em juízo de notificações extrajudiciais destinadas à comprovação do interesse de agir, formuladas por mandatários(as), sem que tenham sido instruídas com procuração, ou, se for o caso, com prova de outorga de poderes especiais para requerer informações e dados resguardados por sigilo em nome do(a) mandante”;
- Documentos probatórios desatualizados ou em nome de terceiros (Item 5 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “submissão de documentos com dados incompletos, ilegíveis ou desatualizados, frequentemente em nome de terceiros”;
- Ajuizamento de ações semelhantes pelo mesmo patrono (Item 13 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “concentração de grande volume de demandas sob o patrocínio de poucos(as) profissionais, cuja sede de atuação, por vezes, não coincide com a da comarca ou da subseção em que ajuizadas, ou com o domicílio de qualquer das partes”;
- Ajuizamento da ação em comarcas injustificadas (Item 4 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “ajuizamento de ações em comarcas distintas do domicílio da parte autora, da parte ré ou do local do fato controvertido”; e
- Pedido genérico (Item 9 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024): “distribuição de ações com pedidos vagos, hipotéticos ou alternativos, que não guardam relação lógica com a causa de pedir”.
Entre as espécies acima elencadas, a mais frequente, nos primeiros três meses de vigência da Recomendação nº 159/2024, foi o fracionamento de demandas pelo mesmo autor (54,88%):
Fracionamento de demandas e procurações irregulares
O fracionamento de demandas pode ocorrer, tanto pelo ajuizamento de diversas ações pelo autor contra a mesma ré, quanto por meio de diversas ações contra diferentes instituições financeiras, embasadas em fundamentos similares, senão idênticos. A multiplicação de demandas, pelo mesmo autor, por meio do fracionamento de ações que poderiam ser reunidas em um único processo, contribui para um ineficaz ambiente de resolução de conflitos.
O ajuizamento de ações por patronos investidos de poderes por meio de procurações sem firma reconhecida foi a terceira espécie mais frequente, com seu reconhecimento em 22 processos envolvendo instituições financeiras, o que corresponde a 16,5% dos casos analisados.
De fato, a falta de procurações dotadas de lastro se tornou uma grande preocupação, como, inclusive, mostra a questão submetida a discussão no Tema Repetitivo 1.198/STJ. A apresentação de procurações não específicas ou procurações desatualizadas são outras duas espécies de litigância predatória, sendo reconhecidas, respectivamente, em cinco (3,75%) e seis (4,5%) julgados de Tribunais Estaduais nesse período.
A inexistência de prévio pedido extrajudicial também foi levada em consideração, sendo reconhecida em onze julgados (8,27%). Até para demonstrar o interesse processual, exige-se a demonstração de uma tentativa prévia de solução do problema diretamente com as instituições e agentes relevantes.
Pedidos genéricos e o ajuizamento de ações semelhantes pelo mesmo patrono também foram identificados pelos magistrados, respectivamente, em quatro (3%) e oito (6%) processos contra instituições financeiras no âmbito da Justiça Estadual.
Por fim, quanto ao ajuizamento de ações em comarcas injustificadas ou à utilização de documentos que supostamente seriam comprobatórios, mas que são desatualizados ou na verdade atestam direitos de terceiros e não do autor da ação, foram identificados, em cada hipótese, em cinco casos (3,75%).
Quanto à origem dos processos em desfavor de instituições financeiras em que foram reconhecidas espécies de litigância predatória, os 133 julgados encontrados concentram-se em seis Tribunais de Justiça.
O TJSP foi o Tribunal Estadual que mais identificou condutas processuais abusivas, com 69 julgados, o que corresponde a 51,87% do total de casos encontrados. Logo atrás, estão o TJRN e o TJCE nos quais foram proferidos, respectivamente, 21 e 20 acórdãos, ou seja, correspondendo a 15,78% e 15,03%. O TJMG também identificou litigância abusiva em quinze processos (11,27%), e o TJPB em sete processos (5,26%). Por fim, no TJSC foi identificado um julgado reconhecendo conduta processual abusiva (0,75%). Visto que há 27 Tribunais de Justiça no Brasil, ainda é baixo o número daqueles que enfrentaram a questão da litigância predatória à luz da Recomendação nº 159/2024:
Impacto da Concessão da Justiça Gratuita na Litigância Predatória
Outra conclusão importante extraída do mapeamento é a de que, dentre os 133 processos, em 93 processos (69,9%) deles, o benefício da justiça gratuita foi deferido ao autor da demanda, ainda que se tenha reconhecido a conduta de litigância predatória.
O Item 1 do Anexo A da Recomendação nº 159/2024 apresenta, como exemplo de conduta processual potencialmente abusiva, “requerimentos de justiça gratuita apresentados sem justificativa, comprovação ou evidência mínimas de necessidade econômica”.
Soma-se a isso o entendimento do Enunciado 2, publicado no Comunicado CG nº 424/2024, pela Corregedoria Geral da Justiça do TJSP, ao recomendar que: “[a] identificação de indícios de litigância predatória justifica a mitigação da presunção de veracidade da declaração de hipossuficiência, bem como a determinação de comprovação dos requisitos do art. 5º, LXXIV, da CF, para a obtenção da gratuidade”. (grifou-se)
Como se sabe, a Lei nº 1.060/50 assegura o acesso à justiça a qualquer pessoa que não tenha condições de arcar com os custos um litígio. A declaração de hipossuficiência, em geral, é suficiente para o deferimento do benefício, que garante a representação por defensor público ou advogado dativo e a dispensa de arcar não só com as custas e despesas judiciais, mas também com o ônus sucumbencial, ou seja, o dever da parte sucumbente – a que perde – de reembolsar as custas e despesas judiciais incorridas pela outra parte e pagar os honorários advocatícios da parte adversa, que podem chegar a 20% do valor em disputa.
Não há dúvida de que essa prerrogativa é fundamental para a promoção de justiça social, mas seu uso vem sendo repetidamente desvirtuado no contexto da litigância predatória. No mapeamento antes mencionado, constatou-se que, dentre os 143 acórdãos pesquisados, em 97 deles (67,8%) o benefício da justiça gratuita foi pleiteado e deferido, em casos que depois foram reconhecidos como litigância predatória. Embora os magistrados pudessem decidir pela revogação da gratuidade da justiça, isso ocorreu somente em sete casos isolados (4,9%).
Não bastasse, em muitos desses casos, invoca-se a proteção do Código de Defesa do Consumidor para reivindicar a inversão do ônus da prova, o que transfere a incumbência de provar os fatos alegados para o fornecedor de serviços ou produtos.
Com isso, o Poder Judiciário se torna palco de demandas que podem gerar ganhos expressivos em caso de procedência ou, mesmo, acordo, mas que, de outro, não oferecem quaisquer riscos de perdas financeiras, mesmo em caso de improcedência ou extinção. Mais ainda, uma eventual inversão do ônus da prova pode resultar no acolhimento de um pleito irreal e ilegítimo, mesmo diante da ausência de provas.
De rigor, assim, que, diante da constatação de caso de litigância abusiva, as alegações, provas e circunstâncias de cada demanda judicial sejam analisadas de forma detida, para que o magistrado decida se deve revogar a assistência judiciária gratuita e, por consequência, condenar a parte no pagamento do ônus sucumbencial.
Ademais, uma vez apurado o abuso, o magistrado deve ponderar se é o caso de aplicação de sanções processuais à parte ou a seus patronos, tais como a aplicação de multa processual ou a denúncia da conduta para a Ordem dos Advogados do Brasil ou o Ministério Público.
A manutenção pelo CNJ de um controle nacional, consolidando informações sobre as partes e patronos que comprovadamente incorreram em situações de litigância predatória, seria também um instrumento valioso para os magistrados, já que essa espécie de comportamento, em geral, se repete.
Vale relembrar a máxima do saudoso ministro e professor Sálvio de Figueiredo Teixeira, que, mais do que nunca, é precisa e oportuna: “o processo não é um jogo de esperteza, mas instrumento ético da jurisdição para efetivação dos direitos da cidadania”.
Para mais informações sobre o tema, conheça a prática de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho.
*Com a colaboração de Clara Forte Augusto Laranja.