As subvenções e a tentativa do governo federal de restabelecer a tributação
A publicação da Lei nº 14.789/2023 deve ampliar a judicialização do tema ao tentar alterar o regime jurídico das receitas oriundas de benefícios fiscais concedidos por Estados e Municípios
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Na extensa pauta tributária que catalisou a atenção de governo, contribuintes e poder judiciário nos últimos tempos, está a tributação (ou não) das receitas oriundas de benefícios fiscais, leia-se, de subvenções concedidas por Estados e Municípios.
A magnitude dos valores envolvidos não foi a única razão para tanto. Recentes decisões com viés favorável aos contribuintes e a resistência por parte das autoridades em aceitar tal fato tornaram essa temática uma das mais controversas ao longo de 2023. E 2024 deverá trazer ainda mais discussão.
De forma bastante resumida: o Superior Tribunal de Justiça entendeu que as receitas das subvenções não poderiam ser tributadas. No caso de créditos presumidos, independentemente de qualquer condição e com base no princípio da imunidade recíproca. No caso dos demais benefícios – denominados “negativos” –, a tributação não seria cabível, desde que os consequentes lucros fossem mantidos em reserva e não chegassem aos acionistas.
Esse foi e continua sendo o panorama jurisprudencial. E que levou o governo a editar a Medida Provisória nº 1.185/2023, convertida na Lei nº 14.789/2023, por meio da qual pretendeu alterar o regime jurídico das subvenções e, dessa forma, “zerar o jogo”, como recurso derradeiro para alcançar tais receitas. Mas, entre a intenção do governo e aquilo que realmente obterá, há um longo caminho a percorrer e obstáculos a serem superados (se é que serão).
Realmente, o argumento utilizado pelo STJ para a não tributação das receitas decorrentes de créditos presumidos prevalece independentemente da alteração da legislação ordinária. Nessa perspectiva, a revogação do artigo 30, da Lei nº 12.973/2015, pela Lei nº 14.789/2023 – que determinava a exclusão de tais receitas do lucro real – é irrelevante, pois, segundo o tribunal, a União não poderia, de acordo com a Constituição, se apropriar daquilo que Estados e Municípios abriram mão de arrecadar. Seja antes ou depois da Lei nº 14.789/2023.
Portanto, a tentativa de alteração do cenário jurídico e, consequentemente, a pretensão de arrecadação pelo governo federal poderão e deverão desaguar no Judiciário. O que significa que novos contenciosos se iniciarão e o assunto deverá ser revisitado, criando mais instabilidade e dúvida. As primeiras liminares concedidas já evidenciam isso.
Há mais. Essa nova lei, a pretexto de restabelecer a tributação de tais receitas, concede um crédito fiscal aos contribuintes que fruírem das chamadas subvenções para investimento, em que a utilização do benefício tem como contrapartida investimentos realizados. O crédito será calculado mediante a aplicação da alíquota de 25% sobre as receitas acumuladas, a partir do pedido de habilitação dele, ou sobre as despesas de depreciação acumuladas, a partir do ato de concessão do benefício, o que for menor entre ambos.
Na aparência, a União estaria aliviando a situação das empresas, na medida em que concede um crédito fiscal. Na prática, insiste em tributar algo que o STJ já considerou indevido.
Sem falar nos contribuintes que já foram ao judiciário no passado e obtiveram decisões definitivas que reconheceram seu direito de não oferecer à tributação tais receitas, justamente pela imunidade recíproca entre os entes políticos. Devem iniciar novas discussões ou prevalece a decisão obtida, mesmo após a nova lei? Tema que, igualmente nessa perspectiva, gerará grande discussão.
Até que tenhamos a simplificação do sistema, um dos objetivos precípuos da reforma tributária, sabemos que as incertezas, dúvidas e questionamentos continuarão existindo. O caso das “subvenções” é um exemplo típico, nítido e inquestionável de que os contenciosos tributários parecem não ter fim no Brasil.
Mais do que isso. Ao lançar mão de uma nova legislação, que não se sustenta pelo mesmo argumento que afastou a tributação no passado (ao menos em relação a crédito presumido), o governo sabe que provocará uma nova corrida ao judiciário por parte dos contribuintes. Com chances reais de novamente perder, a prevalecer a coerência e previsibilidade, uma vez que o STJ já tratou do tema.
Aliás, apelar ao Judiciário pode ser o caminho mais seguro às empresas que querem evitar danos, tendo em vista a nova legislação. Seja para afastar a exigência dos tributos, caso ainda não tenham decisões definitivas; seja para não serem prejudicadas por eventual modulação de efeitos.
É que, se o STJ entender de reapreciar a matéria em sede de repetitivo e, nessa hipótese, vier a alterar seu entendimento – o que seria absurdo, mas não impossível –, aqueles com ações e decisões anteriores podem vir a ter seu direito preservado, e a nova interpretação só se aplicaria aos que não ingressaram com ação (ao menos em relação aos fatos geradores passados). Mais um estímulo equivocado à judicialização de uma discussão, que já deveria ser considerada encerrada.
Por trás da sanha do governo federal em tributar as receitas de subvenções, há uma evidente disfuncionalidade que, cada vez mais, se manifesta. É inegável que boa parte do parque produtivo brasileiro se organizou regionalmente em função de benefícios locais concedidos. Investimentos foram feitos, pessoas foram deslocadas e custos com logística, entre outros, foram absorvidos justamente para que as empresas otimizassem sua carga tributária, a depender das oportunidades disponíveis.
Se parte dos benefícios estaduais for convertida em arrecadação federal, como pretende o governo, afetará a sustentabilidade de vários negócios, além de representar uma enorme distorção, já que ocorrerá a transferência de recursos que naturalmente seriam dos Estados à União.
A judicialização da Lei nº 14.789/2023, como já vem ocorrendo, será mais um capítulo de uma longa história, cujo fim está cada vez mais distante. Esse é um exemplo claro de como nossas autoridades fiscais vêm cometendo os mesmos erros há décadas, além de evidenciar que, antes de melhorar com a reforma, ainda há muito a piorar. Quem viver (e sobreviver) verá.