Você já parou para refletir sobre o papel do advogado no ambiente de transformação digital? Marketplace, criptomoeda, blockchain, inteligência artificial, big data, proteção de dados pessoais, economia compartilhada, cibersegurança e tantos outros temas do mundo digital são abordados diariamente em artigos, palestras, eventos e entrevistas.
Mas antes de você tirar alguma conclusão sobre o conteúdo deste artigo, não pretendo neste espaço fazer mais uma reflexão sobre o impacto da galopante inovação tecnológica na vida das pessoas e a dificuldade de resolvermos problemas modernos com os conceitos legais ou normas existentes.
Direito e transformação digital
Há mais de 20 anos atuando como advogado em temas de tecnologia, essa sempre foi a minha rotina profissional: tentar encontrar soluções legais razoáveis e com risco administrado para o empresário poder navegar no mar da insegurança jurídica, até que uma decisão judicial ou uma norma legal ou administrativa possa trazer maior previsibilidade e estabilidade ao processo decisório dentro da empresa (para o bem ou para o mal).
Ou seja, por mais que o ritmo das inovações que caracterizam a transformação digital seja tão intenso como nunca testemunhamos, a única diferença neste histórico recente é o próprio ritmo em si.
Mas ele não vai mudar o fato de como advogados são chamados a resolver os problemas de seus clientes: encontrar soluções empresarialmente palatáveis em um cenário no qual a insegurança é a regra.
Um dos impactos claros dessa intensidade de inovações passou a ser perceptível no modo como o advogado deve compreender a sua própria profissão.
Nenhum advogado pode mais se dar ao luxo de se dizer especialista em alguma área sem entender os efeitos da inovação tecnológica em sua esfera de conhecimento e, portanto, sem ser também um pouco atuante no chamado direito digital.
Há ao menos dois motivos para essa percepção. Primeiramente, o volume colossal de recursos financeiros despejados em pesquisa e desenvolvimento (leia-se startups) para criar novos produtos ou serviços, ou mesmo migrar os já existentes e tradicionais para o digital, ou ainda, gerar maior eficiência na gestão empresarial, vem se traduzindo em uma nova realidade: as relações humanas e empresariais têm migrado paulatinamente para o ambiente digital.
Em várias situações, os ambientes físicos de comunicação, de compras e de serviços já ficaram em segundo plano ou mesmo deixaram de existir (as operações em bolsa de valores, os bancos sem agência e as declarações de imposto de renda servem como exemplos do que quero dizer).
E creio que estamos apenas no início de um processo de gigante transformação.
Transformação digital e mudança de paradigma
Em segundo lugar, quanto mais as relações acontecem no ambiente digital, mais este será o local natural onde encontrar os recursos e transações financeiras.
E, se tudo migra para o digital, será impossível falar nos tradicionais conceitos jurídicos sem uma visão de como eles se adequam (ou não) a essas novas realidades.
Talvez o exemplo mais enfático seja o universo das relações de trabalho na economia compartilhada (aplicativos de mobilidade urbana são o principal exemplo, mas há diversos outros serviços cobertos por essa nova realidade): os conceitos e proteções jurídicas da Consolidação das Leis do Trabalho são próprias para salvaguardar condições mínimas e decentes de trabalho a partir de uma realidade típica da economia industrial e que, em larga escala, foi muito útil para proteger e salvaguardar esses mesmos direitos quando o sistema de produção industrial passou a modular a forma de prestação de serviços.
Mas jamais será possível compreender a mudança de paradigma trazida pela economia compartilhada sem entender o verdadeiro papel da empresa que desenvolve o aplicativo: ela não é dona dos chamados meios de produção, pois apenas aproxima a oferta da demanda.
Isso não significa que as pessoas não devam tem condições dignas de trabalho nesse ambiente (e por isso decisões inovadoras e nova regulação são bem-vindas), mas adotar o padrão legal e normativo da economia industrial para a economia compartilhada simplesmente não faz sentido.
Ainda vamos testemunhar decisões judiciais contraditórias a esse respeito, até que o “novo normal” se estabeleça.
Advogados na linha de frente das transformações digitais
O advogado estará na linha de frente de momentos de transformação digital que interferem diretamente nas relações jurídicas ao saber questionar conceitos tradicionais que não parecem ter aderência nos novos cenários permeados pela inovação tecnológica.
Isso vale para os especialistas em direito do trabalho, penal, civil, ambiental, etc. Ou seja, não comporta exceções: ele precisa conhecer e estar familiarizado com o direito digital para aplicação no seu campo de conhecimento e saber fazer a releitura de conceitos e interpretações a partir dessas novas realidades.
O novo generalista é, pois, aquele que consegue ter um repertório de interpretações não somente dos sistemas e relações jurídicas da economia e relações humanas tomadas sob o aspecto tradicional, mas também a partir do estudo e compreensão de como a tecnologia impacta as relações jurídicas na sua área de conhecimento e atuação.
E assim deve ser sua rotina profissional, até que o ambiente da transformação digital seja de fato o “novo normal”, o que talvez não deva demorar tanto tempo pelo ritmo das inovações, colocando-lhe novamente a chancela de especialista.