Covid-19 e o Direito Penal
Temas penais que merecem atenção em tempos de emergência de saúde pública
Assuntos
Em meio à pandemia do novo coronavírus e das diversas notícias relacionadas ao tema, muito se tem falado sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública no país. Tais medidas foram estabelecidas no artigo 3º da Lei nº 13.979, publicada em 06 de fevereiro, e podem consistir em isolamento, quarentena, determinação de realização de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, dentre outras.
Cumpre distinguir, à luz da legislação vigente, esses dois conceitos que têm sido largamente utilizados no noticiário e em pronunciamentos das autoridades:
- Isolamento: destinado à separação de pessoas doentes ou contaminadas, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do vírus; e
- Quarentena: visa à restrição de atividades ou isolamento de pessoas suspeitas de contaminação.
Regulamentando a lei, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 356, que autoriza médicos e agentes de vigilância epidemiológica a determinar a medida de isolamento pelo prazo máximo de quatorze dias, podendo se estender por igual período. Já a quarentena somente pode ser determinada por ato administrativo formal de Secretário de Saúde de Estado ou Município ou do Ministro da Saúde, pelo prazo de até quarenta dias, podendo se estender pelo tempo necessário para reduzir a transmissão comunitária e garantir a manutenção dos serviços de saúde no território.
Mais recentemente, aos 17 de março, foi publicada a Portaria Interministerial nº 5/2020, editada pelos Ministérios da Justiça e da Saúde, que possibilita a profissionais de saúde, dirigentes da administração hospitalar, dentre outros, solicitar o auxílio de força policial nos casos de recusa ou desobediência por parte de pessoa submetida às medidas. Ademais, a portaria invoca a possibilidade de responsabilização criminal daqueles que descumprirem as medidas preventivas previstas na citada lei, afirmando a incidência dos delitos previstos nos artigos 268 e 330 do Código Penal – respectivamente, infração de medida sanitária preventiva e desobediência a ordem de funcionário público.
Enfatize-se que essa portaria não inaugura ou amplia – e nem poderia fazê-lo, pois somente lei em sentido estrito pode dispor sobre matéria penal (v. artigo 22, inciso I da Constituição) – a possibilidade de aplicação de tais dispositivos, que sempre tiveram previsão no Código Penal, mas apenas destaca a sua possível incidência nesse contexto, e tampouco exaure os exemplos de normas penais que podem ter particular incidência no contexto da pandemia. Como se verá a seguir, existem diversos outros tipos penais que, embora não aludidos na portaria em comento, merecem atenção no cenário atual.
Cabe lembrar, contudo, que a maioria dos crimes aqui tratados – com as exceções assinaladas em cada caso – são infrações de menor potencial ofensivo, definidas nos termos da Lei nº 9.099/95 (artigo 61), visto que suas penas máximas previstas em lei não excedem dois anos. Assim, por força da mesma lei (artigo 69, parágrafo único), o autor pode ser detido para encaminhamento à delegacia e lavratura de termo circunstanciado de ocorrência, mas não se lhe pode impor prisão em flagrante e tampouco exigir fiança caso assuma o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal em data designada. Deve, pois, a autoridade conciliar tais regras processuais com as determinações de prevenção de contágio, identificando o autor do fato e registrando a ocorrência, mas evitando o comparecimento à delegacia e o contato com terceiros de pessoa contaminada ou com suspeita de contaminação, a fim de prevenir o agravamento da crise sanitária sem precedentes, sem prejuízo da responsabilização criminal adequada.
Perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do Código Penal)
O referido tipo penal estabelece pena de reclusão de um a quatro anos e multa àquele que, consciente de que está contaminado, pratica qualquer ato capaz de produzir contágio com a intenção de transmitir a outras pessoas uma doença grave. O autor do crime deve ter, portanto, uma vontade específica de transmitir o vírus, o que restringe a incidência desse tipo penal. Caso a conduta de fato prejudique a saúde da vítima ou resulte em morte, o autor poderá responder pelos crimes de lesão corporal (na modalidade ofensa à saúde de outrem) ou de homicídio, respectivamente previstos nos artigos 129 e 121 do Código Penal. Em razão da pena máxima de quatro anos, não se trata, aqui, de infração de menor potencial ofensivo, podendo haver prisão em flagrante e aplicação de medidas cautelares restritivas de liberdade.
Perigo à vida ou saúde de outrem (artigo 132 do CP)
De aplicabilidade mais abrangente, esse dispositivo prevê pena de detenção de três meses a um ano para quem expuser a vida ou saúde de terceiro a perigo direto e iminente. Pune-se também o dolo eventual que, no cenário concreto, é a conduta daquele que sabe estar contaminado, ou desconfia que o esteja, e não adota as devidas precauções para evitar a transmissão do vírus, assumindo o risco de contaminar outras pessoas, com indiferença quanto à eventual ocorrência de contaminação.
Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial (artigo 135-A do CP)
Essa infração pode ser praticada por quem represente estabelecimento hospitalar, e, para uma corrente mais ampliativa, também por médicos e funcionários como enfermeiros, recepcionistas e seguranças. Tais pessoas estarão sujeitas a penas de detenção de três meses a um ano e multa, se condicionarem o atendimento médico emergencial ao oferecimento de garantia financeira ou ao preenchimento prévio de formulários administrativos. O parágrafo único do mesmo artigo estabelece que a pena será aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resultar lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resultar a morte.
Infração de medida sanitária preventiva (artigo 268 do CP)
Incidirá nesse crime, sujeito a penas de detenção de um mês a um ano e multa, quem infringir determinação, por parte da autoridade ou profissional competente, de uma das medidas de prevenção previstas na lei, e após o cumprimento de todas as devidas formalidades estabelecidas pela lei e pelas portarias – no caso do isolamento, por exemplo, a determinação médica deverá ser acompanhada da assinatura de um termo de “consentimento livre e esclarecido” por parte do paciente.
Omissão de notificação de doença (artigo 269 do CP)
Incide nesse tipo penal, cuja pena é de detenção de seis meses a dois anos e multa, o médico que deixa de comunicar à autoridade pública doença cuja notificação é obrigatória. Complementando o sentido dessa norma penal, a Lei n° 6.259/75, dispõe em seu artigo 7º que é compulsória a notificação de doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional.
Por sua vez, o Regulamento define o conceito de emergência de saúde pública de importância internacional (ESPII) como “um evento extraordinário que pode constituir um risco de saúde pública para outros países devido a disseminação internacional de doenças; e potencialmente requer uma resposta internacional coordenada e imediata“. Em 30/01, a Organização Mundial de Saúde classificou o surto de Covid-19 como uma ESPII, sendo esse o mais alto nível de alerta da Organização. Resulta desse cenário que a contaminação pelo novo coronavírus é doença de notificação compulsória, podendo praticar a conduta do artigo 269 do Código Penal o médico que atenda um paciente portador de tal condição e deixe de notificar a Secretaria de Saúde do respectivo município.
Desobediência (artigo 330 do CP)
Essa infração tem um alcance mais amplo e pode ser praticada por qualquer pessoa que descumpra ordem legal de funcionário público, sujeitando-se a penas de detenção de 15 dias a seis meses e multa. A ordem pode ser de qualquer natureza, mas deve ter inequívoco respaldo legal e ter destinatário específico (não pode se tratar de ordem genérica, e, ademais, deve ser dirigida a uma pessoa física determinada) – além de, naturalmente, ser de conhecimento do destinatário quando da prática da infração.
A título de exemplo, no Estado de São Paulo, o Decreto nº 64.881 determinou a medida de quarentena a partir do dia 24/03 até o dia 07/04, suspendendo a prestação de diversos serviços – com exceção dos serviços públicos e atividades essenciais, conforme estabelecido no Decreto Federal nº 10.282. De igual maneira, no Estado do Rio de Janeiro, o Decreto nº 46.973 determinou a suspensão de eventos com presença de público, ainda que previamente autorizados, visitação a unidades prisionais, aulas nas unidades das redes pública e privada de ensino, dentre outros. Já no Distrito Federal, o Decreto nº 40.520 também trouxe a suspensão de eventos, atividades coletivas e aulas.
Assim, aquele que descumprir ordens dos agentes públicos responsáveis por dar eficácia a tais determinações, como policiais, fiscais de saúde pública e guardas municipais (no caso de determinações de autoridades municipais), poderá responder pelo crime de desobediência.
Acrescente-se que, quanto à circulação de pessoas em vias públicas, os atos normativos fornecem, até o momento, no máximo uma recomendação à sua restrição, o que não tem caráter de ordem, necessário à caracterização do crime de desobediência.
Há que se ter atenção, igualmente, à legalidade da ordem emitida, para que o crime se configure. Nesse sentido, uma ordem que pretenda limitar o funcionamento de um serviço essencial – definido no Decreto Federal nº 10.282 como serviço indispensável ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população – não será considerada “ordem legal“, conforme exigido para a configuração do crime.
Crime contra a ordem econômica (Lei nº 8.137/90, artigo 4º, incisos I e II)
Esses delitos concorrenciais, os quais sujeitam seus autores às penas de dois a cinco anos e multa, incriminam quem abuse do poder econômico mediante ajuste ou acordo de empresas com o objetivo de dominar o mercado ou eliminar a concorrência, bem como quem participe de acordo de mercado com vistas à fixação artificial de preços ou de quantidades vendidas ou produzidas. Entendemos que uma situação de emergência de saúde pública como a atual pode fazer que autoridades do Ministério Público e do Judiciário deem um tratamento penal mais severo a delitos econômicos e empresariais eventualmente verificados por elas, a exemplo desses e de crimes contra a economia popular e contra as relações de consumo – nenhum dos quais, aliás, é classificado como infração de menor potencial ofensivo, razão por que cabíveis prisão em flagrante e medidas cautelares diversas.
Crime contra a economia popular (Lei nº 1.521/51, artigo 3º, inciso VI)
Essa espécie de delito contra a economia popular incrimina a conduta de provocar alta ou baixa de preços de mercadorias por meio de notícias falsas ou outros artifícios, atribuindo-lhe penas de detenção de dois a dez anos e multa. No contexto atual, noticiou-se o recurso a dispositivo penal em certas situações de elevação excessiva do preço do álcool em gel, mas é preciso chamar a atenção para a necessidade de que a elevação de preços seja causada por ato intencional e artificioso de pessoa(s) determinada(s), sem o que não se faz possível a responsabilização criminal – o que não significa que não seja possível a adoção de medidas cíveis e/ou administrativas de caráter sancionatório a pessoas físicas.
Crime contra as relações de consumo (Lei nº 8.137/90, artigo 7º, inciso VI)
Uma das diversas hipóteses de delitos contra as relações de consumo previstas na legislação, incrimina-se, aqui, o ato de fraudar preços por meio de retenção de bens para especulação, sujeitando-se seu autor à pena de detenção de dois a cinco anos ou multa.
Por fim, vale anotar que, em meio ao emaranhado de atos normativos e ordens administrativas que vêm emanando das autoridades nas três esferas de poder – federal, estadual (ou distrital) e municipal –, era previsível que ocorressem e já se notam situações em que agentes incumbidos da fiscalização e cumprimento das respectivas medidas se excedam no exercício de suas funções, causando constrangimentos à liberdade de trabalho e mesmo de locomoção, inclusive de pessoas envolvidas na prestação de serviços essenciais. Verificada uma coação à liberdade de locomoção de quem está autorizado a fazê-lo pela legislação aplicável, estará caracterizado constrangimento ilegal passível de ser sanado por meio da impetração de habeas corpus, a qual pode ser subsidiária a outras medidas cíveis, como mandado de segurança, sem prejuízo de que, em casos mais extremos em que haja a causação intencional e arbitrária do constrangimento, poderá o agente público responder, posteriormente, por abuso de autoridade.