Proteção de ativos imateriais e domínio público no Metaverso
A territorialidade dos direitos de propriedade intelectual gera discussões sobre os prazos de proteção no Metaverso
Não é difícil imaginar o metaverso, que se propõe a ser uma extensão da realidade, como um ambiente em que ocorra a criação e a utilização de obras e inovações tecnológicas de todas as naturezas. Na condição de ativos imateriais, a proteção de tais obras e inovações se dá por meio da propriedade intelectual, a qual garante ao seu titular direitos de exploração e uso exclusivos que, à exceção de know-how e segredo de negócio, são temporários.
A temporariedade da proteção de ativos imateriais exerce um papel fundamental na lógica da propriedade intelectual. Uma vez encerrado o período de direitos exclusivos do titular, os bens passam a integrar o chamado domínio público, podendo ser utilizados sem prévia autorização ou necessidade de pagamento de royalties. Entende-se que esse modelo favorece a criação de uma base de conhecimento livremente acessível, permitindo o fomento à inovação e à expressão.
Prazos de proteção de direitos de propriedade intelectual
No contexto internacional, acordos multilaterais buscaram uniformizar as legislações para que se tenha previsibilidade sobre os direitos dos titulares. A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, da qual o Brasil é signatário, define que o prazo de proteção mínimo para seus países signatários é de cinquenta anos após a morte do autor. O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS) também estabelece prazos de proteção mínimos para patentes (20 anos), marcas (sete anos renováveis indefinidamente por igual período) e desenhos industriais (dez anos).
Porém, apesar dessa definição de padrões mínimos de proteção a serem internalizados, podem existir divergências entre cada país, já que as obrigações deverão ser implementadas em suas legislações nacionais. Isso está disposto no artigo 5º da Convenção de Berna e no artigo 1º(1) do Acordo TRIPS, que permite aos países-membros aplicar as obrigações assumidas de forma ajustada ao seus sistema e prática jurídicos, desde que não contrariem o teor do acordo.
No Brasil, os prazos de proteção apresentam variações em relação aos parâmetros internacionalmente estabelecidos. Para obras protegidas por direito de autor, os direitos patrimoniais do autor subsistem por 70 anos, independentemente de registro, contados a partir do dia 1° de janeiro do ano subsequente ao da sua morte, exceto para obras audiovisuais e fotográficas, que iniciarão a contagem a partir do dia 1º de janeiro subsequente à sua divulgação. Programas de computador, embora sujeitos a direitos autorais, são protegidos por 50 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da sua publicação ou, na ausência desta, da sua criação, também sem necessitar de registro. Para patentes de invenção e de modelo de utilidade, os prazos são de, respectivamente, 20 e 15 anos contados desde o depósito do pedido de registro perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Desenhos industriais são protegíveis por até 25 anos (dez anos contados da data do depósito do pedido de registro, prorrogável por três períodos sucessivos de cinco anos cada), enquanto os registros de marcas são válidos por dez anos desde a data da concessão do registro, e prorrogáveis por períodos iguais e sucessivos.
Direitos morais de autor
Nesse aspecto, importante notar que, além da faceta econômica e patrimonial dos direitos de propriedade intelectual, existem, sobretudo nos direitos autorais, os chamados direitos morais, que compreendem os direitos de reivindicação de autoria, de ser reconhecido como autor, de conservação do ineditismo, de integridade da obra, dentre outros.
No sistema brasileiro de Droit D’Auteur, ou sistema europeu continental, tais direitos são entendidos como direitos da personalidade e, portanto, inalienáveis e irrenunciáveis. Porém, no sistema de Copyright, ou sistema anglo-saxão, os direitos autorais só são reconhecidos em casos limitados e, de qualquer forma, é possível renunciá-los. Ressalta-se que, embora a regra geral da Convenção de Berna e do Acordo TRIPS seja atribuir direitos morais aos autores, ela não é considerada obrigatória, em especial aos países cujas legislações são baseadas no sistema anglo-saxão (vide artigo 9.1 do Acordo TRIPS).
Sob a égide do sistema brasileiro, ainda que os direitos patrimoniais de autor expirem, o que permite a livre utilização de uma obra por terceiros, os direitos morais aqui citados são transmitidos aos sucessores do autor, permanecendo, assim, válidos após a sua morte, e durante a vigência do prazo e proteção. Vale dizer, a lei brasileira também atribui ao Estado brasileiro a responsabilidade pela defesa da integridade e da autoria de obras caídas em domínio público.
Aplicação de regras territoriais
Conforme visto, há a possibilidade de divergências entre as legislações nacionais em relação aos prazos de proteção dos bens intelectuais. Além disso, como existem ativos que necessitam de registro para que aos seus titulares seja atribuído o direito de exclusividade (patentes, marcas, desenhos industriais), o período de proteção depende da data de cada registro ou pedido de registro dentro de um determinado território. Portanto, um ativo intelectual pode estar em domínio público em alguns países e não em outros.
A legislação mexicana de direitos autorais, por exemplo, prevê que obras serão protegidas por 100 anos contados da morte do autor. Se considerarmos que o Brasil aplica, por diretriz da Convenção de Berna, o princípio do tratamento nacional (aplicando a lei pátria às obras estrangeiras, independentemente de sua origem), uma obra intelectual produzida no México entrará em domínio público no Brasil 30 anos antes do que no seu país de origem, podendo ser utilizada livremente por terceiros no Brasil antes que essa utilização possa ocorrer no México. Situação inversa poderia ocorrer com obras originadas no Brasil, as quais seriam protegidas por 70 anos no México, uma vez que a entrada em domínio público ocorre conforme o limite temporal do país de origem.
Conflitos e soluções possíveis
A falta de previsibilidade em relação aos prazos de proteção de direitos de propriedade intelectual não é uma problemática exclusiva do metaverso. Nos primórdios da Internet, a facilidade de copiar e transmitir arquivos digitais, acrescida da ausência de limites territoriais, também levou a debates sobre o alcance e aplicação desses direitos, e até hoje existem discussões nesse sentido. Afinal, como visto acima, é possível que uma obra criada no México já esteja em domínio público no Brasil, embora continue sendo protegida em seu país de origem.
No entanto, considerando que uma das principais propostas discutidas no âmbito de aplicações do metaverso se refere à criação de um ambiente descentralizado, é natural que surjam diversas dúvidas sobre a aplicabilidade de normas jurídicas a esse universo virtual.
Em um contexto globalizado, a definição do direito material aplicável leva à incursão nas regras de conexão do direito internacional privado: discute-se a sujeição ao artigo 8º (para bens, a lei aplicável é a do país onde estiverem situados) ou ao artigo 9º (as obrigações são qualificadas e regidas pela lei do país em que se constituírem), ambos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). O limite para aplicação de leis estrangeiras está no artigo 17 do mesmo diploma, para o qual não terão eficácia no Brasil as leis que ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Nesse aspecto, é necessário cautela em relação aos direitos morais de autor, por estes serem regidos pela lei de seu país de domicílio, conforme artigo 7º da LINDB. Já para ativos de propriedade intelectual que dependem de registro, o Código de Bustamante, em seu artigo 115, dispõe que a lei aplicável é a do local do registro.
No entanto, muitas vezes, é complexo delimitar um local físico para bens intangíveis. O cenário se torna ainda mais desafiador se pensarmos em bens criados dentro do ambiente do metaverso, onde não existe um território delineado, cuja proteção independe de registro – como, então, definir os prazos de proteção aplicáveis a eles?
Nota-se, pois, ser útil que, ao menos, sejam criadas regras basilares que encaminhem a uma solução para eventuais conflitos. Nesse sentido, uma saída é pensar em tratados internacionais específicos para esse tema, que estabeleçam formas de compatibilizar as normas nacionais.
Metaverso e bases jurídicas
Mais uma vez, os avanços tecnológicos desafiam as legislações. Ao propor um ambiente sem fronteiras ou jurisdições, o metaverso nos força a repensar a proteção tradicional e territorial da propriedade intelectual. Tal qual ocorreu após a chegada da Internet, o objetivo final é evitar que os ativos de propriedade intelectual fiquem vulneráveis a exploração e uso indevidos e, ao mesmo tempo, conservar os benefícios advindos de um domínio público robusto.
Nota-se que mesmo os esforços de uniformização promovidos, em especial, pela Convenção de Berna e pelo Acordo TRIPS, não são suficientes para responder todas as dúvidas em relação ao período de exclusividade concedido aos titulares de ativos de propriedade intelectual, sem, ao menos, que haja divergência de intepretação. Assim, embora o metaverso ainda esteja em desenvolvimento, trazer essas discussões com antecedência e debater soluções criativas e eficientes é essencial para construir bases jurídicas sólidas para o futuro.
Para mais informações, acompanhe a série especial Propriedade Intelectual e Metaverso.
*Com colaboração de Júlia Leite Contri.