Cancelamento de shows e festivais no Brasil sob a ótica jurídica
Cenário atual demanda organização das empresas e compreensão dos consumidores
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O calendário de shows e grandes eventos no Brasil enfrenta um momento de reestruturação, marcado por uma onda de cancelamentos e adiamentos de eventos que variam desde festivais nichados até grandes turnês de artistas renomados. Segundo um levantamento do site Mapa dos Festivais, até maio de 2024, 18 eventos sofreram alterações, com oito cancelados, nove adiados e um parcialmente cancelado.
Em 2020 e 2021, em razão à pandemia, o setor acumulou um prejuízo de aproximadamente R$ 270 bilhões. No entanto, a retomada foi em grande estilo: o setor de eventos ao vivo em 2023 trouxe um crescimento expressivo, com um aumento de mais de 130% no número de festivais de música no país, em comparação com 2022. O público, ansioso por experiências sociais após longos períodos de isolamento, mostrou-se disposto a investir em ingressos para shows e eventos ao vivo.
Contudo, a realidade é que o setor de eventos ao vivo enfrentou e tem enfrentado desafios que afetam tanto consumidores quanto promotores. Em um primeiro momento, o aumento da oferta de eventos inflacionou o mercado e os cachês dos artistas. Em seguida, o aumento significativo nos custos para a realização dos eventos, junto com a insegurança financeira e as preocupações com eventos climáticos extremos, contribuíram e ainda contribuem para a instabilidade do setor. Os consumidores têm demonstrado insatisfação com os preços elevados e a forma de aquisição dos ingressos, a qualidade geral dos eventos (desde alimentação até a curadoria dos artistas) e a infraestrutura precária dos locais e estabelecimentos escolhidos. O resultado é uma onda de cancelamentos e readequações de turnês e festivais que envolvem desde eventos nichados a megaturnês e festivais com nomes de bandas e artistas consagrados.
Embora os consumidores frequentemente se sintam frustrados com os cancelamentos e remarcações, é importante reconhecer que as empresas promotoras de eventos também enfrentam grandes desafios em tais circunstâncias. A logística envolvida na organização de um show ou festival é complexa e cara, e o impacto financeiro de um cancelamento pode ser significativo. Além das questões contratuais com fornecedores e artistas, há também a preocupação com a reputação da empresa, que pode ser seriamente prejudicada por cancelamentos, especialmente em um mercado tão competitivo.
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil: houve um padrão semelhante em outros países, como o Reino Unido, onde a Associação de Festivais Independentes (AIF) relatou, em 2023, uma redução de festivais de 600 para menos de 500. Festivais de menor e médio porte são os mais afetados, enfrentando dificuldades para atrair patrocínios e manter a viabilidade econômica, sendo os mais propensos a cancelamentos repentinos.
Mas, afinal, quais alternativas restam ao consumidor quando ele compra ingressos para turnês e shows e tais eventos são cancelados ou remarcados?
Quando um evento é cancelado ou remarcado, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) estabelece determinados direitos ao consumidor. A depender de uma análise pormenorizada dos motivos que levam ao cancelamento ou remarcação do show, a empresa promotora do evento, em tese, deve comunicar previamente os consumidores a respeito e possibilitar a devolução facilitada dos valores dispendidos com a compra dos ingressos, retornando-se as partes ao status quo prévio à aquisição do ingresso. Deve-se prestigiar a boa-fé contratual e o dever de informação, mantendo o consumidor com as expectativas alinhadas quanto ao ocorrido.
Os tribunais brasileiros têm considerado as circunstâncias que levam ao cancelamento e as dificuldades enfrentadas pelos promotores de eventos ao julgar casos sobre o tema. Em geral, a jurisprudência tende a favorecer a devolução integral do valor pago pelo ingresso, incluindo taxas e outros encargos, a fim de evitar prejuízos ao consumidor ou enriquecimento indevido dos promotores de eventos. Ainda, é possível que a empresa promotora do evento seja alvo de ações individuais com pedido de indenização pelos custos e gastos correlatos ao show, como transporte e hospedagem. Nestes casos, cabe ao consumidor comprovar os prejuízos suportados. Não basta indicar que a hospedagem e transporte se deu em função do evento cancelado; exige-se a prova efetiva de que o consumidor não pode usufruir desses serviços e amargou prejuízos concretos. Por fim, a jurisprudência tende a afastar o pedido dos consumidores de indenização por danos morais potencialmente associados ao cancelamento ou remarcação dos shows e eventos ao vivo, incluindo a hipótese de o consumidor não ter disponibilidade para comparecer ao evento remarcado, por se tratar de situação que, em regra, não é capaz de lesar intimamente os consumidores, sendo parte de frustração natural da vida em sociedade.
O setor de eventos ao vivo enfrenta um momento de transformação, com desafios que impactam tanto consumidores quanto promotores de eventos. A jurisprudência tem buscado um equilíbrio entre a proteção do consumidor e a viabilidade econômica dos eventos, garantindo que as empresas possam continuar a oferecer entretenimento de qualidade, sem que intempéries que ocasionem o cancelamento repentino dos eventos impliquem em prejuízos extremos para qualquer um dos lados da relação de consumo. Tal equilíbrio será crucial para a manutenção de um ambiente de entretenimento vibrante e acessível para todos.
No mesmo sentido, é necessário buscar um equilíbrio entre os interesses dos promotores e organizadores de shows e eventos e os artistas e bandas que são contatados para as aparições e interpretações no país. Sob a perspectiva contratual, é crucial que promotores e organizadores de shows e eventos adicionem cláusulas detalhadas em seus contratos com artistas e bandas, com vistas a mitigar os impactos financeiros e operacionais dos cancelamentos e remarcações. Dentre outras disposições, tais cláusulas devem prever as condições para cancelamento e adiamento, abordando aspectos como termos e condições sob os quais os cancelamentos ou adiamentos podem ocorrer, penalidades, prazos de notificação e responsabilidade pelos custos adicionais.
Estabelecer mecanismos claros para o cancelamento e remarcação dos eventos, incluindo definição de novas datas e alocação de custos adicionais, pode ajudar a mitigar riscos de disputas e a reduzir os impactos financeiros adversos para ambas as partes. Essas disposições contratuais promovem maior clareza e previsibilidade, contribuindo para a estabilidade do setor e permitindo que promotores e artistas naveguem com maior segurança jurídica pelos imprevistos.
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